domingo, 30 de setembro de 2007

Duas culturas


Como teorias tão especulativas e tão difíceis de testar podem ser tão populares?

Quando a expressão "duas culturas" é mencionada, pensa-se logo no físico e escritor inglês C. P. Snow, que no final da década de 1950 argumentou que a rixa entre as culturas científica e humanística ameaçava a produção acadêmica. Esta poderia tornar-se estéril, destituída de idéias verdadeiramente novas. Hoje, quero abordar uma outra rixa que, apesar de mais interna à física, repercute em várias áreas. Trata-se da disputa entre os físicos que trabalham na teoria das supercordas e, essencialmente, todos os outros.

Antes de mais nada, um esclarecimento. "Supercordas" é o nome dado às teorias da física de altas energias que visam mostrar que tudo que existe na natureza é manifestação de uma única força. A física descreve o mundo natural em termos de interações entre os vários tipos de força. Após 400 anos de pesquisa e experimentação, a versão atual dessa narrativa resume tudo que percebemos e medimos em termos de quatro forças: as forças gravitacional e eletromagnética, que conhecemos bem, e as forças nucleares forte e fraca que, como diz o nome, só atuam dentro do núcleo atômico.

Albert Einstein passou os últimos 30 anos de sua vida tentando encontrar uma formulação na qual as forças gravitacional e eletromagnética fossem, na verdade, uma única força, capaz de se manifestar de dois modos.

Apesar de ter falhado na empreitada, a idéia persistiu, em parte porque a maioria dos físicos vive numa cultura monoteísta, em parte pelo sucesso que outras unificações tiveram na física e em parte porque a função da física é tentar obter a descrição mais simples possível dos fenômenos naturais.

Milhares de físicos continuam tentando encontrar essa força unificada. A idéia mais promissora é, sem dúvida, a das supercordas, a teoria que substitui o elétron e outras partículas fundamentais da matéria por tubos de energia -as supercordas- que existem em nove dimensões espaciais (seis a mais do que as que vemos) e cujos efeitos se manifestam a distâncias muito menores do que as que podem ser medidas experimentalmente, ao menos no futuro próximo.

Nada de errado em construir teorias especulativas sobre o mundo. A maioria das grandes idéias científicas surge exatamente assim, por meio de especulações. Mas o que vem ocorrendo é um ressentimento crescente entre os físicos que trabalham em outras áreas, que afirmam que as supercordas atraem gente e dinheiro demais.

Dinheiro, aqui, significa financiamento para pesquisa e o número de empregos nessa área, tanto em pós-doutorados quanto em vagas para professores. "Como teorias tão especulativas, que jamais foram demonstradas e que têm chances apenas remotas de serem testadas com a tecnologia atual, podem ser tão populares e bem-sucedidas?" -perguntam os físicos de outras áreas. O problema é de natureza filosófica, já que a essência da física é a construção de teorias "testáveis" sobre o mundo. Se uma teoria não pode ser testada, ou se pode ser modificada a cada vez que é demonstrada incorreta, feito um peixe escorregadio que ninguém consegue agarrar, o que essa teoria explica? Ela é uma teoria física ou apenas especulação metafísica? Essa é a rixa.

O sucesso das supercordas vem do seu apelo mítico: a teoria das teorias, o mundo numa equação, a "mente de Deus" etc. Mas não é por isso que devem ser desmerecidas. Mesmo se erradas, muito se aprende com elas.

Se certas, serão a coroação de quase três milênios de platonismo. Nesse meio-tempo, o ideal não seria cortar o financiamento dessa área de pesquisa, mas ampliar o das outras. Um bolo maior alimenta mais gente.

domingo, 23 de setembro de 2007

Como fazer galáxias


A força de atração gravitacional é sempre superior

No último século, nossa visão cósmica passou por uma profunda transformação. O cosmo cresceu assustadoramente, virou uma entidade dinâmica, sempre em expansão, povoado por uma variedade imensa de objetos.

Parece até brincadeira, mas até a década de 1920 se acreditava que a Via Láctea fosse a única galáxia no cosmo. Claro, astrônomos viam outras "nebulosas", mas a maioria pensava que elas faziam parte da nossa galáxia. Alguns, porém, afirmavam que essas nebulosas eram outros "universos-ilhas", galáxias como a nossa. Não havia consenso.

Apenas em 1924, o astrônomo americano Edwin Hubble, munido de um telescópio de 100 polegadas (o diâmetro do espelho coletor de luz), pôs fiz ao debate: Hubble provou que os universos-ilhas estavam fora da nossa galáxia, sendo, portanto, galáxias também. O cosmo era muito maior do que se imaginava, com um número de galáxias imenso, chegando a centenas de bilhões. Por sua vez, cada galáxia tem uma enormidade de estrelas, de alguns milhões a centenas de bilhões. Bilhões de ilhas com bilhões de "árvores" iluminadas.

Essa fantástica visão era apenas o começo. Em 1929, Hubble fez outra descoberta fundamental, talvez uma das mais importantes na história da ciência: o Universo está em expansão!
As galáxias estão, na maioria, se afastando umas das outras. Ora, se isso é verdade, a conclusão natural é que, no passado, elas estiveram mais próximas. Num passado muito distante, estariam amontoadas. Este seria o momento "inicial", o Big Bang. Mas o assunto hoje são as galáxias. Como surgiram? A idéia de que o Universo está em expansão vai contra a noção de que galáxias são um aglomerado de matéria. Será que não deveriam se dispersar pelo espaço devido à expansão? O que as mantém coesas?

Para entendermos isso, uma pequena digressão. A coesão das coisas é devida a forças atrativas. No caso das galáxias, a força em atuação é a gravidade, sempre atrativa. Se as galáxias não se dispersam, é porque a atração gravitacional de sua matéria é superior aos efeitos da expansão. Mas que matéria é essa? Outra descoberta surpreendente: a matéria que vemos -que compõe as estrelas e as nebulosas- é apenas uma pequena fração da matéria total que existe numa galáxia.

A maior parte da matéria nas galáxias é invisível. Não só invisível, mas não tem nada a ver com a matéria comum, feita de prótons, nêutrons e elétrons.

Ela é a chamada matéria escura, que não emite luz, interagindo com a matéria comum apenas por meio de sua atração gravitacional. Não podemos vê-la diretamente, mas sabemos que existe pelo modo como a matéria que brilha se move em sua presença.

Portanto, para galáxias existirem, precisamos de matéria comum e de matéria escura. Mas está faltando algo de muito importante, especialmente se queremos entender como as galáxias nasceram durante a infância do Universo. Para que matéria se condense, é necessária uma semente, um amontoado inicial de matéria que atraia mais matéria. Que sementes são essas? Segundo as teorias atuais, essas sementes foram criadas durante os primeiros instantes de existência do cosmo, cerca de 14 bilhões de anos atrás. Elas são os restos mortais de um tipo de matéria exótica que já não existe -fósseis do Big Bang.

Sabemos que essa idéia deve estar correta porque prevê outros efeitos que foram observados recentemente.

Dentre eles, que o Universo tem uma geometria plana. Matéria comum, matéria escura, sementes primordiais de energia. O céu é cheio de surpresas, a maioria delas invisíveis aos olhos.

domingo, 16 de setembro de 2007

Vendo o invisível


No final do século 19, não se sabia o que era um átomo
Aos leitores intrigados pelo título, pensando que se refere a fantasmas e outras entidades sobrenaturais, peço desculpas.

O "invisível" aqui está relacionado com o mundo do muito pequeno, dos átomos e seus componentes. Quando aprendemos na escola que tudo é feito de átomos, pouco sabemos sobre como essa profunda descoberta foi feita.

A história é longa e tem seu prelúdio na Grécia Antiga, em torno de 400 a.C., quando dois filósofos, Leucipo e Demócrito, propuseram que tudo era composto de pequenos tijolos indivisíveis, que chamaram de átomos.

Muita coisa aconteceu de lá até o final do século 19, que é quando a nossa história começa de fato. Resumindo esses 2.300 anos, posso dizer que os átomos foram esquecidos, relembrados por gigantes como Newton, esquecidos mais uma vez, até serem resgatados por John Dalton e outros pioneiros que mostraram que os elementos químicos tinham de ser feitos de átomos de massas diferentes. Porém, até o final do século 19, ninguém sabia o que era um átomo.

Em 1897, o inglês J. J. Thomson abriu as portas para o mundo dos átomos ao descobrir o elétron. Thomson mostrou que os átomos de todos os elementos não são indivisíveis, como se acreditava até então, mas sim formados por partículas (ou "corpúsculos", como ele os chamou) ainda menores. Thomson examinou a radiação que se propaga no chamado tubo catódico, uma versão menos sofisticada dos antigos tubos de TV, concluindo que se tratava de partículas com carga elétrica negativa. A menor massa que se conhecia, a de um átomo de hidrogênio, o mais leve e abundante dos elementos químicos, era duas mil vezes maior que a dessas partículas.

Encontrar essa regularidade no coração da matéria é algo extraordinário: os átomos de todos os elementos, que compõem tudo o que vemos na natureza, têm essas partículas neles, que foram mais tarde chamadas de elétrons. Era claro que as diferentes massas atômicas deveriam estar relacionadas com o número de elétrons nos átomos. Sabia-se que os átomos eram eletricamente neutros, o que indicava a presença neles de carga positiva de igual valor. De alguma forma, essa carga positiva deveria contribuir muito mais do que os elétrons para a massa total do átomo. Mas que massa era essa?

O desafio era tentar ver o invisível. Átomos têm diâmetros de aproximadamente um décimo de billionésimo de metro, muito além do poder de microscópios, ao menos os do início do século 20. Ninguém "vê", propriamente, um elétron. O que se mede são seus efeitos, as correntes elétricas que criam, por exemplo. A partir deles, sua existência e suas propriedades são inferidas. Essa é uma diferença fundamental entre a física do dia-a-dia, palpável e concreta, e a física atômica e subatômica, invisível e indireta. Como, então, ver o invisível?

Entra em cena o neozelandês Ernest Rutherford, que estudou com Thomson em Cambridge. Rutherford sabia que os elementos radioativos, como o urânio, emitem radiação de altas energias: por que não usá-la como projéteis atirados contra os átomos, feito balas? Rutherford bombardeou átomos de ouro com partículas alfa.

Para seu espanto, notou que algumas eram ricocheteadas a ângulos de mais de 90 graus, como se houvessem colidido com algo muito denso e pequeno. A maioria passava direto, levemente defletida. Rutherford concluiu que seus resultados só poderiam ser explicados se toda a carga positiva estivesse numa região central dez mil vezes menor do que o átomo!

Descobriu o núcleo atômico, sem jamais tê-lo "visto".

domingo, 9 de setembro de 2007

Relativamente esquecida


A teoria da relatividade não foi sempre coberta de glória e sucesso

Nenhuma teoria científica, com exceção talvez da teoria da evolução de Darwin, é tão popular quanto a teoria da relatividade de Einstein. Fala-se sempre que "tudo é relativo", ou que "E=mc2", e que Einstein foi o maior dos gênios, junto com Newton, cuja teoria da gravitação foi suplantada pela relatividade geral.

Apesar de a teoria da relatividade ser baseada em absolutos e não em relativos, sua fama é merecida. Einstein criou uma nova visão de mundo, revelando uma íntima relação entre espaço, tempo e matéria que revolucionou nossa concepção do Universo.

O que pouca gente sabe é que a teoria da relatividade não foi sempre coberta de glória e sucesso. Desde o início, a maioria dos físicos teve dificuldade em lidar com essa estranha teoria, que tanto contraria a intuição.

É bom lembrar que existem duas teorias da relatividade. A primeira, que Einstein propôs em 1905, com apenas 26 anos, é conhecida como a teoria especial, que trata de movimentos com velocidades constantes. É dela que vem a expressão E=mc2, que representa a equivalência entre matéria e energia: matéria é energia armazenada, e energia pode se transformar em matéria. Na equação, "E" é energia, "m" é massa, e c2 é a velocidade da luz elevada ao quadrado.

Apesar de a teoria especial ter um história muito interessante, é da teoria geral, de 1915, que quero falar hoje.

Foram necessários dez anos para que Einstein passasse da teoria especial para a geral. Se a teoria especial era já um marco na história intelectual da humanidade, a teoria geral é considerada um dos maiores feitos de todos os tempos. Nela, Einstein generaliza a teoria de Newton, mostrando que a gravidade pode ser interpretada com uma curvatura no espaço em torno de uma massa. Einstein lutou durante anos para encontrar a formulação certa da teoria. A matemática é muito difícil, e poucos físicos sabem como lidar com ela. Esse foi um dos primeiros obstáculos da teoria: sua complexidade técnica e conceitual.

O segundo foi a falta de aplicações. Os efeitos da teoria só são sentidos na presença de campos gravitacionais muito fortes. Em situações normais, como na superfície da Terra, a teoria de Newton funciona muito bem. Por isso, os três testes que Einstein propôs para sua teoria ocorriam na vizinhança do Sol: variações na órbita de Mercúrio, o desvio da luz de estrelas distantes ao passarem perto do Sol e a variação na radiação emitida por átomos na superfície da estrela.

Einstein mostrou que sua teoria explicava a minúscula variação na órbita de Mercúrio, algo que a teoria de Newton não fazia. Mas existiam outras teorias rivais que, apesar de não serem tão completas, poderiam explicar o efeito. O desvio da luz das estrelas só pode ser observado durante eclipses. Após muitas tentativas frustradas por mau tempo e guerras, em 1919 uma expedição para o Ceará observou o desvio que aproximadamente concordava com a teoria. O resultado causou uma sensação, transformando Einstein num ícone, mesmo que o teste não fosse definitivo. O outro, a variação da radiação atômica, podia ter também outras explicações.

O físico Max Born, amigo de Einstein, afirmou em 1955 que, para ele, a teoria era como uma bela obra de arte, para ser apreciada à distância. Após o furor dos anos 1920, pouco aconteceu até a década de 1960. Foi então que novas descobertas na astrofísica provaram a força da teoria. Hoje, vivemos num Universo ensteiniano repleto de pulsares, quasares e buracos negros, que é manifestação concreta da teoria.

Nem mesmo Einstein poderia ter imaginado o alcance das suas idéias.

domingo, 2 de setembro de 2007

Vida sob pressão


A água não sai do copo, mesmo que ele esteja para baixo

Todo mundo que já desceu uma serra de carro ou viajou de avião sentiu aquela inconveniente pressão nos ouvidos.

Outra situação semelhante ocorre quando mergulhamos. Quanto mais fundo, maior a pressão. Quem faz mergulho sabe que é importante despressurizar os ouvidos com freqüência. O fato de a pressão aumentar quando descemos uma ladeira ou mergulhamos nos diz algo sobre as propriedades dos gases (no caso, o ar) e dos líquidos (no caso, a água).

O tímpano é o nosso detector de pressão mais sensível, uma membrana que vibra com a variação de pressão do ar e que, com isso, nos permite ouvir. Se as janelas dos aviões não fossem extremamente rígidas, se despedaçariam quando o avião subisse. Isso porque a pressão no interior do avião é mantida igual a do nível do mar, enquanto lá fora, a altas altitudes, é bem menor. A pressão que sentimos nos ouvidos é essencialmente o peso do ar (ou da água) sobre nossas cabeças. Vivemos literalmente sob pressão.

Em meados do século 17, um cientista irlandês deu o primeiro passo na compreensão desses fenômenos. Robert Boyle (1627-1691) simboliza uma era de profunda transição na história, com um pé no passado pré-científico e outro no futuro, marcando o início da ciência moderna. Nessa era, a distinção entre alquimia e química ou também entre astrologia e astronomia estava apenas começando.

Boyle foi o 14º filho do homem mais rico da Irlanda. Chegando à Inglaterra, juntou-se a outros intelectuais e "filósofos naturais" e criou uma sociedade secreta chamada "Colégio Invisível", onde eram debatidas as últimas novidades científicas. Na época, o clima político da Inglaterra não estava muito para a defesa da liberdade de pensamento.

Essa sociedade seria depois chamada de Sociedade Real (do inglês "Royal Society"), uma das instituições científicas mais prestigiosas do mundo.

Boyle, quando não fazia experimentos alquímicos, explorava as propriedades do único gás conhecido na época, o ar. Montou um laboratório na Universidade de Oxford em 1653 que incluía a mais potente bomba de vácuo já construída, uma máquina capaz de sugar o ar de um vasilhame fechado. Quanto mais poderosa a bomba, menos ar fica no vasilhame e melhor é o "vácuo" em seu interior. Você pode se tornar numa bomba de vácuo usando sua boca para sugar o ar de uma garrafa vazia. Nada recomendável.

Eis um experimento que todos podem fazer que demonstra a importância da pressão atmosférica exercida pelo ar. Encha um copo até a borda com água e tape-o com uma carta de baralho. Usando um dedo para manter a carta no lugar, vire o copo de cabeça para baixo. Remova o dedo, como se fosse deixar a carta cair no chão.

O que acontece? A água não sai do copo, mesmo que esteja virado! (Só para garantir, é bom fazer isso sobre uma pia). A força exercida pelo ar é maior do que o peso da água.
Usando sua bomba, Boyle obteve a primeira lei quantitativa que descrevia propriedades mensuráveis da matéria (do ar). Encheu pela metade uma bexiga de ovelha (feito um balão de aniversário murcho) e colocou-a num vasilhame. Retirando o ar do recipiente, percebeu que a bexiga inflou.

A ausência de ar do lado de fora da bexiga causou um desequilíbrio, deixando que o ar de dentro expandisse. Boyle mostrou que, à temperatura constante, o volume de uma amostra de ar varia inversamente com a pressão: menor pressão, maior volume.

Essa lei simples abriu as portas para um estudo quantitativo das propriedades dos gases e para uma ciência matemática da matéria.