domingo, 28 de setembro de 1997

A origem do mundo

28/08/97

OTAVIO FRIAS FILHO

Costumamos pensar em religião e ciência como coisas opostas. O caso Galileu é o momento a partir do qual a hostilidade entre elas se tornou explícita e a religião passou a recuar. Foi obrigada a tomar seus dogmas como meras metáforas. Aceitou que Deus não interfere na natureza, desde que se admita que Ele possa ter criado suas leis.
Entre os séculos 17 e o atual, entre Galileu e Einstein, a física criou modelos que reproduzem de forma ''realista'' o funcionamento do mundo que nos cerca. Esses modelos tiveram de ser corrigidos muitas vezes, mas eram basicamente satisfatórios. Era possível acreditar que estávamos conhecendo aos poucos o universo.

Acontece que ao se aventurar pelo mundo desconhecido de três ''infinitamentes'' _o pequeno, o veloz e o distante_ os modelos da física entraram em colapso. Não é que as conclusões afrontassem o senso comum (isso também ocorria com a física clássica), elas simplesmente não podiam ser representadas de modo descritivo.

Ou seja, a ciência deveria abandonar o ''realismo'' para se contentar, também ela, com a metáfora, ainda por cima provisória, parcial. Por exemplo: a luz é composta de ondas ou de partículas? Resposta: conforme o critério de observação subatômica ela pode atuar como uma coisa ou outra, mas não sabemos o que ela ''é''.

Essa é, em resumo, a questão discutida no livro ''A Dança do Universo'' (Companhia das Letras, 434 págs.), de Marcelo Gleiser, cientista brasileiro radicado nos Estados Unidos. Manejando a prosa de divulgação com felicidade, o autor transmite a idéia de uma física jovial, compreensível, irônica para com os próprios desenganos.

E reconciliada, para surpresa geral, com a religião. Claro que Gleiser fixa muito bem a diferença entre os respectivos métodos, que não devem se misturar. Mas na base de ambas estaria uma mesma incapacidade para dar a resposta final, tributárias ambas daquilo que Einstein chamou de ''sentimento cósmico-religioso''.

A impossibilidade de conhecer o que está além das aparências é o problema mais antigo da filosofia. Sempre didático, o livro compila as primeiras tentativas dos pré-socráticos: para Tales, a essência era a água; para Heráclito, a eterna mudança simbolizada pelo fogo; para Parmênides, ao contrário, era a permanência.

Essas imagens não são necessariamente piores do que dizer que a essência é composta de ''ondas'' ou ''partículas'' conforme o ponto de vista _eis o que o livro sugere, com bem-humorada resignação. Há diferenças palpáveis. Os antigos achavam, por exemplo, que o universo tinha 4.000 anos; nós sabemos que tem cerca de 15 bilhões.

Em contrapartida não sabemos mais o que ''é'' o tempo... A ciência está absolvida porque nos ajudou a viver mais e melhor: não há dúvida. Como forma de conhecimento, porém, ela é tautológica, substitui metáforas por outras metáforas. A matemática descreve o funcionamento do nosso próprio cérebro, toda ciência é ''humana''.

Cosmologia estuda o Universo por meio de "fósseis"

.
A cosmologia estuda a origem, evolução e estrutura do Universo como um todo. O cosmólogo tem um papel semelhante ao do paleontólogo, que tenta reconstruir toda uma época remota através de achados esparsos, fósseis incompletos, testemunhos semidestruídos pela implacável passagem do tempo.

Mas como reconstruir a história do Universo? Para falarmos de história, temos de abordar o passado, presente e futuro, adaptando nossa experiência humana da passagem do tempo ao Universo.

Em 1948 foram propostos dois modelos cosmológicos, completamente antagônicos.
Em um deles, proposto na Inglaterra por F. Hoyle, H. Bondi and T. Gold, e conhecido como modelo do estado padrão, o Universo não evolui, permanecendo o mesmo no tempo e no espaço.
No outro modelo apresentado, conhecido como o do Big Bang, podemos reconstruir a história do Universo como fazemos com um filme, com um princípio, meio e fim.

Quando George Gamow propôs a versão original do modelo, ele assumiu certas condições iniciais para descrever o princípio do filme.

Inspirado pelas descobertas (e também pelas destruições) da física nuclear durante a Segunda Guerra Mundial, Gamow assumiu que no início o Universo era extremamente quente e denso, uma sopa cósmica de partículas elementares, que incluem os prótons, elétrons e nêutrons.
De acordo com o modelo do Big Bang, o início não é exatamente o início! É como se chegássemos ao cinema perdendo o começo do filme.

Aqui nos deparamos com uma escolha. Podemos voltar atrás, tentando cada vez mais chegar perto do início, ou ir em frente, e tentar reconstruir o que aconteceu com o Universo a partir desse estado inicial quente e denso.

George Gamow escolheu seguir em frente. Com isso, ele conseguiu garantir o triunfo de seu modelo sobre o do estado padrão.

Em 1929, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble descobriu que o Universo está em expansão. Medindo posições de galáxias muito distantes, Hubble mostrou que elas estavam se afastando umas das outras.

Mas expansão implica passagem do tempo. Dentro do modelo do Big Bang, expansão implica queda de temperatura; a sopa cósmica se resfria continuamente, com a passagem do tempo relacionada com a queda da temperatura. Gamow e seus colaboradores mostraram que, ao se resfriar, a composição da sopa mudava.

Quando o Universo tinha um segundo de vida (em dados atuais), prótons e nêutrons se juntaram para formar certos núcleos de elementos leves, como por exemplo hélio (dois prótons e dois nêutrons).

Gamow e sua equipe calcularam que em torno de 25% do Universo deve ser composto de hélio. Essa previsão foi confirmada por observações feitas nas duas últimas décadas.
A história continua. Quando o Universo tinha 300 mil anos -um intervalo de tempo minúsculo comparado com sua idade atual de aproximadamente 15 bilhões de anos-, elétrons se juntaram aos núcleos formando átomos, principalmente hidrogênio, que constitui 75% da matéria universal.

Gamow mostrou que, como resultado do processo de formação dos átomos, o Universo deveria estar banhado de radiação, com a temperatura de 270° C negativos.
A descoberta dessa radiação em 1965 foi o grande triunfo do modelo do Big Bang. Já o modelo do estado padrão, incapaz de explicar a existência e propriedades desta radiação, teve de ser abandonado.

A grande vantagem que o cosmólogo tem sobre o paleontólogo é a de poder prever com exatidão quais fósseis devem ser encontrados.

A radiação cósmica e os núcleos de elementos leves são justamente os fósseis dessas eras primordiais, que o cosmólogo usa para reconstruir a história do Universo.

sábado, 27 de setembro de 1997

Cientista crê em vida fora da Terra

da Redação Folha
Marcelo Gleiser diz ter "uma certeza quase estatística" de que existe vida fora da Terra. Leia, a seguir, a continuação da entrevista que o físico concedeu à Folha:

Folha - Por que você acha importante levar o conhecimento da ciência para o público em geral?
Marcelo Gleiser - Do ponto de vista mais filosófico, a ciência faz parte da cultura geral da sociedade. Os cientistas são membros da sociedade. Eles geram idéias, da mesma forma que artistas ou escritores. Acho que deve fazer parte do trabalho do cientista levar para as pessoas essas idéias.

Do ponto de vista mais prático, temos de levar em conta que ciência custa caro. E quem financia a ciência é o contribuinte, por meio de recursos públicos. É importante justificar a importância de seu trabalho para que esses recursos continuem vindo. O cientista não deve ficar numa posição confortável em seu laboratório, achando que pode ficar quietinho e que esse cheque sempre estará vindo. Ele tem de justificar a aplicação desse dinheiro, que poderia ser empregado para ajudar a abrir uma escola ou sanear uma favela.

Folha - Isso quer dizer que você critica os cientistas que são contrários à divulgação científica.
Gleiser - Exatamente.

Folha - Mas como você justifica a necessidade de investir recursos em cosmologia, tendo em vista as necessidades sociais que existem?
Gleiser - Essa quantidade de dinheiro é irrelevante se for comparada com a que é investida em outras áreas da ciência. A cosmologia é uma fatia muito pequena desse bolo, mas ela tem de estar lá. Ela responde a questionamentos que as pessoas sempre tiveram com relação a questões grandiosas sobre a origem do mundo. É importante que seja assegurado o trabalho de pesquisadores que lidam com essas questões.

Outro aspecto interessante é que o estudo da cosmologia depende de pesquisas experimentais que exigem muita sofisticação tecnológica, usando satélites e outros instrumentos, cujo desenvolvimento sempre traz benefícios diretos e indiretos para a sociedade.
No fundo, essa pergunta é errada. A divisão de recursos públicos deveria ser feita de forma a atender todas as áreas importantes, sem que os investimentos em uma área sejam prejuízos para outra.

Folha - Você acredita que existe vida inteligente fora da Terra?
Gleiser - Acredito. Mais que isso, tenho uma certeza quase estatística. Existem cerca de 400 bilhões de estrelas só em nossa galáxia, que é a Via Láctea. E se estima que existam cerca de 100 bilhões de galáxias no Universo. Esses números são tão absurdamente enormes que seria muito improvável que somente nosso planeta tenha reunido condições atmosféricas para desenvolver vida. E isso considerando somente o que nós entendemos como vida, o que pode ser uma visão muito pequena.

Só na Via Láctea, deve haver milhões de planetas com condições de surgimento de vida. E estou certo também que nosso planeta não é o único no Universo que tenha produzido vida inteligente. Considerando esses números astronômicos, seria muito privilégio. Quanto mais aprendemos sobre o Universo, mais insignificantes nos tornamos. Acho que nossa inteligência, apesar de ser tão importante para nós, não é a única do Universo.

Marcelo Gleiser estréia coluna na Folha

.

O físico brasileiro Marcelo Gleiser, 38, passa a assinar aos domingos, a partir de amanhã, a coluna "Micro/Macro", na nova seção "Futuro" do caderno Mais!. Sua obra "A Dança do Universo" pulou do quinto para o quarto lugar no ranking dos livros mais vendidos _gênero não-ficção_ do Datafolha em setembro, que o Mais! apresenta amanhã.

Formado em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Gleiser obteve seu doutorado pela Universidade de Londres e, desde 1991, leciona física teórica no Dartmouth College, em Hanover, uma das mais conceituadas instituições de ensino e pesquisa dos EUA.

Em 1994, o físico fez parte de um seleto grupo de jovens cientistas que receberam, cada um, US$ 500 mil do governo dos EUA para seus projetos de pesquisa. Até junho do próximo ano, Gleiser deverá estar no Laboratório Nacional Fermilab, em Batavia, perto de Chicago, de onde deu entrevista à Folha, por telefone.

Folha - Seu estudo tem sido interpretado como religioso. Você concorda com isso?
Marcelo Gleiser - Não concordo. Eu tenho, na verdade, falado muito sobre o papel da religiosidade no processo criativo do trabalho científico, e não sobre o que seria sua influência na atividade da pesquisa. Conheço vários pesquisadores que são religiosos no sentido mais ortodoxo dessa palavra. Mas eles, sejam judeus, católicos ou muçulmanos, não misturam sua fé com a pesquisa. O que eu tenho ressaltado é a religiosidade que esteve presente em toda a história na inspiração de vários cientistas. Newton, por exemplo, foi uma pessoa extremamente religiosa. O mesmo acontecia com Kepler, que descobriu as leis do movimento dos planetas. Einstein falava do sentimento religioso cósmico, que, para ele, era o que motivava as pessoas a fazerem ciência. Quando falo que tenho uma atitude religiosa, me refiro a uma atitude de meditação, de tentar desvendar os mistérios da natureza.

Folha - Por que o curso ministrado por você é chamado de "Física para Poetas"?
Gleiser - O nome correto da disciplina é "Entendendo o Universo da Física através dos Tempos". Nela eu apresento a evolução dos conceitos da física sem recorrer ao instrumental matemático. Ela é voltada para alunos de outras áreas, como ciências sociais, letras e filosofia, que normalmente não têm um treino matemático. Eu trato os conceitos da física desde os gregos, na Antiguidade, até os dias de hoje, com a mecânica quântica, a relatividade, o Big Bang e a física de partículas elementares. "Física para Poetas" é uma denominação que geralmente é dada para diversos cursos em que a abordagem tem um certo lirismo, sem exigir a matemática.

Folha - Como os cientistas vêem sua forma de divulgar ciência?
Gleiser - Com relação à divulgação científica, os cientistas podem ser divididos em dois grupos. O primeiro seria o dos pesquisadores que são extremamente céticos sobre qualquer iniciativa de divulgação científica, porque, quando se tenta divulgar ciência para o público não especializado, existe o risco de comprometer o significado dos conceitos científicos. Sempre poderá existir uma certa deturpação porque, ao traduzir as idéias científicas, não estará sendo usada a linguagem adequada. E, como se diz, toda tradução é uma traição. Sempre se poderá perder a precisão dos significados. Isso é inevitável. Por isso, há muitos cientistas que são contra esse tipo de apresentação. Eu pertenço a outro grupo _ que não é nada pequeno e inclui pesquisadores importantes_, que é o dos cientistas que fazem um esforço no sentido contrário, que é o de traduzir, em uma linguagem acessível, os conceitos complicados da ciência. Mesmo que isso seja difícil e incompleto, esse esforço deve ser feito por causa da importância social da ciência. Quando se faz um investimento, sempre há um risco e uma margem de lucro. O risco é o quanto se poderá comprometer o significado das teorias. A margem de lucro é o quanto as pessoas vão entender de ciência. Quanto maior é o risco, maior tende a ser a perda. Assim, quanto maior for a exigência de preservar a rigidez do discurso, menores serão as chances de as pessoas aprenderem ciência.

domingo, 21 de setembro de 1997

Caminhos da ciência do cosmos

Para Gleiser, o futuro do Universo poderá ser previsto em algum momento pela ciência
ADRIANO NATALE
especial para a Folha

A "Dança do Universo" de Marcelo Gleiser é um livro de divulgação científica que focaliza um tema que sempre instigou a imaginação humana: a origem e evolução do Universo. O livro começa com uma discussão sobre os mitos associados à Criação e vai, paulatinamente, descrevendo a mudança da visão que se tinha sobre o Cosmo, até chegar a concepção da ciência moderna sobre a evolução do Universo.

A escolha do capítulo inicial sobre os mitos de Criação é bastante feliz, pois mostra o quanto estes impregnaram a mente humana no desenvolvimento do pensamento cosmológico. O debate entre ciência e religião, que muitas vezes aparece nas discussões populares sobre cosmologia, também é considerado, e Marcelo Gleiser é muito cuidadoso ao delinear os limites entre a ciência e a tecnologia. O leitor irá encontrar passagens da vida de cientistas como Newton, um dos pais da física moderna, e descobrirá como a religião influenciou suas pesquisas. Ele acreditava que através da ciência se aproximava de Deus.

O livro nos leva da ciência grega à ciência moderna, passando pelo Renascimento. Mostra como os gregos, há mais de dois mil anos, imaginavam o Cosmo, colocando a Terra no centro do Universo, e neste as estrelas apareciam como "furos" na esfera celeste. Depois irá descobrir a luta do "teimoso" Galileu contra a Igreja, para provar que o Sol estava no centro do nosso sistema planetário. A partir daí, as descobertas vão surgindo, e assuntos como mecânica quântica, teoria da relatividade, "Big Bang" e outros aparecem de uma forma leve e clara, prendendo a atenção do leitor para fenômenos que geralmente são apresentados de forma árida em muitos livros de divulgação científica.

Gleiser procura desmistificar a imagem estereotipada de cientistas frios, racionalistas e, às vezes, de gênios distantes dos problemas do mundo. Ao intermear as descobertas científicas com aspectos da vida particular de cientistas como Copérnico, Kepler, Newton, Einstein e outros, ele nos mostra que estes eram indivíduos comuns e que muitos dos acontecimentos pessoais e do ambiente histórico acabaram por influenciar a pesquisa e a crença de cada um deles. É claro que Einstein aparece num patamar superior, e o autor não deixa de confessar que é um fã incondicional dele. (Creio ser difícil encontrar físicos que não o sejam!)

Quando começa a descrever a chamada era da física clássica (que vai do Renascimento até o final do século 19), Gleiser mostra um mundo que fica cada vez mais complexo. A ciência abandona a filosofia grega e parte para um mundo onde a observação experimental é fundamental. Fenômenos como eletricidade e magnetismo são descobertos por Oersted, Ampère e Faraday, e o estudo do transporte de calor (ou termodinâmica) aparece com Lavoisier, Carnot e outros. Estes conhecimentos permitiram ter uma noção de como deveriam ser as estrelas e que elas continham os mesmos elementos que se encontravam na Terra. Nesta época, o Universo começa a se agigantar, com a observação de muitos objetos estelares denominados de "nebulosas". Aos poucos, se percebeu que estas "nebulosas" não eram apenas nuvens de gás iluminadas pelas estrelas vizinhas, mas quando observadas com telescópios mais potentes, apareciam como aglomerados de estrelas, e até poderiam ser galáxias com milhões a trilhões de estrelas. Em 1780, um catálogo do astrônomo Messier continha 103 destas nebulosas. Em 1822, Herschel produziu um catálogo com 2.500 nebulosas e o número vem aumentando drasticamente até os dias atuais.

Os fenômenos da física moderna são descritos nos últimos capítulos do livro. Num destes é revelado que no mundo do muito pequeno _como é o mundo dos átomos e das partículas elementares (que são as que formam o átomo)_ tudo o que ocorre escapa ao senso comum do mundo macroscópico ao qual estamos acostumados, e que uma nova teoria, a mecânica quântica, é necessária para entender o que acontece nestas pequenas distâncias. Noutro capítulo, também é esclarecido que no mundo do muito veloz, onde ocorrem fenômenos com velocidades próximas da velocidade da luz, se faz necessária uma reformulação dos conceitos de espaço e tempo, o que deu origem à teoria da relatividade. Estas teorias, unidas às observações astronômicas, mostram que: o Universo está em expansão, que é possível compreender a evolução do Cosmo até instantes muito próximos da origem do Universo, e que o futuro deste poderá ser previsto em algum momento pela ciência. Tudo isto é descrito com poesia e encanto, como o de um garoto, que pela primeira vez abre o portão do jardim de sua casa e descobre que o mundo é muito maior do que achava. E, então, começa a se perguntar o quão grande é a rua e até onde ele poderá ir.

Adriano Natale é professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista

sexta-feira, 19 de setembro de 1997

Hollywood dá uma chance à ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Carl Sagan escreveu o livro ''Contato'' em 1985, quando já era mundialmente conhecido como um sério divulgador de ciência para o público não especializado.

Em sua cruzada contra o que chamava de ''ignorância científica'' e os perigos sociais que essa ignorância pode causar, Sagan lançou mão de todos os recursos oferecidos pela mídia, de livros e artigos em jornais e revistas até sua famosa série para televisão, ''Cosmos'' _que fascinou toda uma geração_, trazendo para a sala de estar a imensidão do Universo e a surpreendente criatividade da Natureza.

Mas cinema, em geral, é diferente. Como mostrar, de forma precisa, porém comercialmente rentável, um pouco do que é fazer ciência hoje em dia?

O mercado cinematográfico está cheio de filmes de ficção científica em que o que menos importa é o que os cientistas ''de verdade'' têm a dizer ou como a pesquisa científica realmente é feita. É o mundo dos estereótipos, do gênio louco com cara de Einstein, em geral com sotaque alemão, querendo destruir o mundo, ou pelo menos parte dele.

Ou então são seres extraterrestres, humanóides perversos, reflexos dos nossos próprios medos sociais, do que somos capazes de fazer com nós mesmos.

Foi então com tremendo alívio que soube que Hollywood resolveu dar uma chance para os cientistas sérios, com a versão cinematográfica do livro de Sagan, em que ele constrói um cenário plausível do que aconteceria se realmente recebêssemos sinais de rádio provenientes de outro planeta, no caso, localizado na constelação da Lira, a 26 anos-luz da Terra. (Ou seja, ondas eletromagnéticas _incluindo ondas de rádio_ provenientes de planetas em Lira, viajando a 300 mil km/seg, demoram 26 anos para chegar até nós.)

O resultado é surpreendentemente bom. Robert Zemeckis, dirigindo seu primeiro filme após ''Forrest Gump'', mais uma vez analisa as várias tensões que ditam a dinâmica da sociedade norte-americana, aqui abrangendo o fanatismo religioso, a hipocrisia dos políticos (e de certos cientistas), o poder do Estado sobre as descobertas científicas com possíveis implicações sociais, o problema do financiamento da pesquisa fundamental, disputas de poder entre cientistas e, talvez mais importante no contexto do filme, o debate entre ciência e religião.

Politicamente correto, o papel do cientista que desvenda os misteriosos sinais de rádio cabe a uma mulher, Eleanor Arroway (Jodie Foster), que representa a pureza do pensamento científico rigidamente firmado em regras racionais, a encarnação do próprio pensamento de Sagan.

Crença em Deus
Eleanor é sujeita a tremendas pressões para que aceite a necessidade de Deus e da fé, como ''85% da população mundial''. Em uma cena, um teólogo galã pergunta a Eleanor se ela acredita em Deus. Sua resposta é a esperada: ''Não, a menos que tenha alguma prova concreta de Sua existência''.

Sabendo da forte ligação entre Eleanor e seu pai, morto quando ela ainda era menina, o teólogo pergunta novamente: ''Você amava seu pai? Então prove''.
A narrativa deixa a critério de cada um a resolução desse aparente paradoxo entre ciência e fé.
Será que criamos Deus para não nos sentirmos tão sós na vastidão do cosmos? E o que acontece com essa fé se existe vida inteligente em outros planetas? Essas são algumas das perguntas levantadas.

A possibilidade de vida inteligente fora da Terra é, sem dúvida, extremamente fascinante. Caso eles sejam muito mais avançados do que nós, a premissa desse filme, imagine o quanto não poderíamos aprender. Quantos enigmas poderiam ser finalmente desvendados, quanta sabedoria poderia ser facilmente adquirida.

No filme, a superioridade moral e intelectual dos extraterrestres é, de certa forma, humilhante. Quando finalmente o ''contato'' é estabelecido, fica claro o quanto não estamos preparados para receber esse conhecimento superior, o quanto somos ainda imaturos, perdidos em nossas guerras de ambição e intolerância social.

A forma de contato escolhida pelos seres extraterrestres é a menos chocante possível, benevolente e familiar. Ironicamente, o ''contato'' assume dimensões religiosas, ficando claro o quanto ainda estamos despreparados para essa libertação espiritual.
Em termos das idéias científicas exploradas no filme, são detectáveis pequenos problemas, que não comprometem a narrativa.

Mas como viajar 26 anos-luz até Lira e voltar em apenas um filme? Para ser mais preciso, em 18 horas, segundo a narrativa. Aliás, aqui aparece um problema de roteiro. Aparentemente, Eleanor se esquece de usar esse tempo de duração de sua viagem quando está tentando convencer os parlamentares a acreditarem em sua história.
Buracos de verme

Dentro das exóticas possibilidades, o filme explora a existência de túneis na geometria do espaço chamados de ''wormholes'', buracos de verme, passagens quase imediatas entre pontos no Universo separados por vastas distâncias. Ao invés de termos que subir e descer uma montanha para chegarmos a uma vila, atravessamos a montanha diretamente por um túnel.
Apesar de aparentemente esotéricos, esses buracos são já parte do vocabulário de físicos em todas as partes do mundo.

Claro, fabricar pontes através do Universo com papel e lápis é infinitamente mais simples do que construí-las no espaço interestelar. Mas como as descobertas de hoje serão as invenções de amanhã, o que é impossível com a tecnologia atual pode vir a se tornar verdade no futuro.
Pelo menos essa fé, a de que continuaremos sempre a descobrir novos meios de ampliar nossas fronteiras no Universo, o cientista tem de se permitir. E quem sabe, teremos até a ajuda de algum E.T. para isso.