domingo, 25 de maio de 2003

Mutações do bem e do mal

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Dos primeiros animais unicelulares até a espécie inteligente que domina o planeta, todos os seres vivos são produto de mutações". Assim termina o filme "X-Men 2", no qual forças do bem e do mal travam mais uma batalha de sua guerra sem fim. Ou seja, somos todos mutantes, os humanos e as criaturas de poderes extraordinários que, no filme, os humanos chamam de mutantes. A diferença é que, evolutivamente, essas criaturas estão um passo ou dois adiante. Elas são nossas descendentes, mesmo se desprezadas e temidas.

Esse tema imediatamente transporta o filme da ficção científica à esfera sociopolítica. Sem dúvida, o filme é superdivertido, com ritmo desenhado para um público com capacidade de foco de não mais do que 15 segundos. Você sai cansado só de assistir. Mas o filme fala também de temas bem mais delicados, de preconceitos sociais, da aceitação do diferente, das consequências da pesquisa científica -em particular na área da genética- e de sua manipulação política.

Preconceitos gostam de divisões simples: preto e branco, homem e mulher, rico e pobre. Assim fica mais fácil separar o bem do mal. Seja a cor da pele, o sexo, a situação social, a polarização simplifica, massifica as distinções superficiais. A deturpação moral, segundo a ótica do preconceituoso, é então equacionada com algo palpável, visível, imediatamente rotulável e identificável.

Nem todos os mutantes no filme são imediatamente identificáveis. Vários deles parecem humanos normais e agem como tal: têm medo, se enamoram, têm ciúmes. Fora, claro, o fato de serem todos belos, mesmo aqueles mais grotescos, como o mutante alemão Kurt Wagner. Ele é a imagem do mal -um anjo com aspecto demoníaco- estampada em uma criatura absolutamente "do bem", um anjo de fato, oriundo de um circo de Munique, capaz de teletransporte: o fenômeno previsto pela mecânica quântica no qual partículas subatômicas e, quem sabe um dia, objetos, podem se rematerializar em diferentes pontos do espaço quase que instantaneamente. Kurt Wagner é ainda mais sensacional, uma criatura que une teletransporte e livre-arbítrio, ele mesmo determinando onde vai ou não reaparecer.

Alguém pergunta a um dos fisicamente mais grotescos -Mística, uma mutante com pele azulada, olhos amarelos e curvas acentuadíssimas, capaz de adotar qualquer forma animal, inclusive a de mulheres belíssimas- por que ela não permanece em uma dessas formas, evitando o seu aspecto assustador. A mensagem de sua resposta é simples: "Porque eu não deveria ter de me transformar para ser aceita".
Claro, ela é belíssima, mas não segundo critérios humanos. Conceitos de beleza não podem ser separados de valores morais, limitados como são por construções estéticas dependentes do contexto social e cultural onde são criadas. O belo é o que se conforma aos padrões do óbvio, do que não gera surpresas, do que não é diferente. O belo não assusta.

Entra em cena a engenharia genética, a manipulação do gene, oferecendo, ao menos em teoria, a possibilidade da construção de mutantes. O homem tira as rédeas da evolução das mãos da natureza. O processo de seleção natural está fundamentalmente interligado às mutações genéticas que, por definição, são aleatórias: elas ocorrem, por exemplo, devido à interação de radiação -oriunda do espaço e da Terra- e reações químicas com os genes. Ao alterar deterministicamente a estrutura dos genes, o cientista genético se torna escritor de um capítulo (ou mais) na longa história da evolução da vida na Terra. A espécie humana torna-se capaz de se reinventar.

Toda grande inovação tecnológica implica uma redefinição de poder. O avião transporta pessoas, apaga incêndios em florestas e joga bombas. A fissão nuclear gera energia, ajuda no combate ao câncer e é usada em bombas. A engenharia genética ajuda no combate à fome (ou pode), no combate a inúmeras doenças (se deixarem) e na fabricação de "bombas" biológicas (já ocorre).
O filme "X-Men 2" mostra isso: mutantes com poderes mais avançados são ainda essencialmente humanos -as diferenças são físicas, não morais. O poder, em mãos inspiradas, pode gerar o bem. Mas, em mãos despreparadas ou imorais, humanas ou mutantes, irá necessariamente gerar o mal.

domingo, 18 de maio de 2003

Fé cega e ciência amolada

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Outro dia, um caro leitor me enviou uma mensagem com uma pergunta que deve ter ocorrido a muitos outros. Ele disse algo como (aqui parafraseio, mantendo o significado, mas não o conteúdo original): "Você escreveu que nossos corpos são atravessados a cada segundo por bilhões de neutrinos e outras partículas invisíveis, sem que possamos percebê-lo. Para aqueles que não têm acesso à qualquer comprovação concreta dessa afirmativa em um laboratório, ela pode parecer tão fantástica quanto se alguém disser que vê Jesus em seu espelho quando se barbeia todas as manhãs."

Minha reação imediata foi escrever de volta dizendo: "Mas que bobagem. É claro que não se pode comparar uma afirmação científica com uma baseada na palavra de um indivíduo, especialmente sobre um fenômeno sobrenatural, como uma aparição. Afinal, a ciência não se baseia na aceitação cega de afirmativas, mas em testes concretos, quantitativos, aplicados por cientistas escrupulosos". Porém, ao refletir um pouco mais, percebi que a minha afirmação sobre neutrinos bombardeando os nossos corpos não tem a priori mais valor do que qualquer outra afirmação, feita por qualquer outra pessoa sobre qualquer assunto. Afinal, para alguém fora da ciência, dar legitimidade de graça à palavra de um cientista não é assim tão automático quanto os cientistas acreditam. Existe muita gente que ainda não crê que a humanidade chegou até a Lua. Qual é a prova? Um vídeo? Ah, deve ser falso, truque da Nasa, coisa de Hollywood.

Aqui o cientista encontra o desafio de tentar ultrapassar barreiras criadas por sua linguagem especializada e seu treinamento técnico. Para um cientista, a discussão é absurda, uma perda de tempo. É claro que as suas afirmações devem ser levadas a sério: assim é a ciência, construída justamente para evitar a aceitação de afirmações baseadas em especulações e crenças individuais. Em ciência, qualquer hipótese, antes de ser aceita, deve ser averiguada através de testes experimentais, seja em laboratório ou por meio de observações, como no caso da astronomia. Se a opinião de alguém, mesmo se o cientista mais respeitado do mundo, estiver errada, ela não prevalecerá indefinidamente. Talvez, por um tempo, a comunidade aceite-a como plausível. Mas apenas após submetê-la a testes quantitativos ela será definitivamente incorporada (ou não) dentro das idéias ou teorias aceitas. Essa é a faca amolada da ciência, que respeita apenas os resultados comprovados por grupos independentes de cientistas.

Se todo cientista -ou aqueles que escrevem sobre ciência- tivesse o cuidado, em suas apresentações para o público não-especializado, de distinguir o que é fato aceito de meras hipóteses especulativas, a tarefa de convencer o leitor cético seria bem mais fácil. Infelizmente, muitas vezes isso não ocorre, o que resulta em uma grande confusão: fatos concretos, baseados em dados experimentais, são misturados com idéias semi-fantásticas, apresentadas como fenômenos já observados. Há algumas semanas escrevi sobre a idéia de multiversos em cosmologia, que é completamente especulativa, mas que vem sendo apresentada como tendo confirmação observacional. Quem sabe fantasmas não habitam esses multiversos e vêm, de vez em quando, nos visitar?

Descontando esses casos ambíguos, a ciência só obterá legitimidade se fizer parte de um sistema educacional preocupado em explicar o funcionamento do método científico, de como hipóteses e teorias são aceitas ou descartadas, e de como ele é usado na prática, incluindo as suas limitações. Um cientista pode precisar de fé ao embarcar em um longo projeto de pesquisa baseado em uma hipótese especulativa, mas não para aceitá-la após a sua comprovação. Essa é a distinção fundamental entre ciência e fé. Se alguém disser que Jesus aparece em seu espelho pelas manhãs, ele terá que aparecer no espelho para qualquer pessoa ver. Sua imagem terá de ser gravada e reproduzida, analisada e estudada por cientistas, não importando se eles são cristãos, muçulmanos ou budistas. Se alguém lhe disser que bilhões de neutrinos e outras partículas atravessam o seu corpo a cada segundo, é bom você pedir as credenciais dele e perguntar se isso foi comprovado pela comunidade científica ou se é mera hipótese sua. Afinal, ele pode ser o mesmo sujeito que vê Jesus ao se barbear.

domingo, 11 de maio de 2003

Vida, difração e DNA

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A sabedoria do homem livre consiste em meditar sobre a vida e não sobre a morte." Assim escreveu o filósofo Baruch Spinoza em seu famoso livro "Ética", de meados do século 17. Não por acaso, Erwin Schrödinger, um dos grandes físicos do século 20, usou essa mesma frase em seu livro "O que É Vida?", uma das obras mais influentes no desenvolvimento da biologia molecular e, em particular, da genética após a Segunda Guerra. O livro é uma compilação de uma série de palestras que Schrödinger proferiu na Universidade de Dublin, Irlanda, em 1943.

Admitindo não ser um especialista no assunto, Schrödinger propõe que o fato de a física e a química não serem capazes de explicar o que ocorre em organismos vivos não deve ser visto como uma barreira intransponível, mas como um desafio: o mistério da vida é, essencialmente, província da ciência. Aceita essa razoável premissa, a questão é como abordá-lo cientificamente.
Schrödinger sugere que a "fibra cromossômica", onde reside a informação genética característica de cada indivíduo, é um cristal aperiódico, em distinção daqueles comumente tratados pelos físicos, que são na maioria periódicos. É claro que os cristais periódicos são bem mais simples que os aperiódicos. Schrödinger mesmo faz a comparação: é como olhar para um papel de parede ordinário, com o mesmo padrão se repetindo regularmente, e uma tapeçaria de Rafael, que, sem apresentar uma repetição monótona, oferece uma coordenação de padrões elaborados cujo efeito final é gerar um significado único.

A estrutura periódica dos cristais é revelada por meio de técnicas de difração de raios X. Esses são os mesmos raios X usados por dentistas e médicos, uma radiação eletromagnética de frequência bem mais alta do que a luz visível. A difração é um efeito que resulta da superposição de ondas sucessivas -ora construtiva (duas cristas se somando), ora destrutiva (crista e depressão se cancelando)- quando elas passam por um ou mais obstáculos. Quando raios X são bombardeados sobre um cristal, eles encontram obstáculos -os átomos que compõem o cristal. Se uma placa fotográfica é exposta aos raios X após passarem por um cristal, o resultado é a reprodução detalhada de sua estrutura periódica.

O problema, claro, fica bem complicado quando o cristal não tem uma estrutura periódica, já que o espaçamento entre os átomos não é mais uniforme. Mais ainda, se o cristal tiver milhares ou mesmo milhões de átomos, a tarefa torna-se quase impossível, um quebra-cabeças de proporções gigantescas. Esse era, justamente, o desafio daqueles que tentavam desvendar a estrutura de proteínas usando difração de raios X.

Schrödinger sugere também que a transmissão de características de uma geração a outra ocorre no nível molecular, através de um processo genético de cópia de informação. Em 1944, um ano após as palestras de Schrödinger, o biólogo americano Oswald Avery propôs que os genes são compostos por uma macromolécula conhecida como DNA (ácido desoxirribonucléico). O código da vida, as características de cada animal e pessoa, está registrado na estrutura dessa molécula. O desafio era decifrá-lo.

Entram em cena Francis Crick, um físico especialista em difração de raios X, e James Watson, um biólogo determinado a decifrar a estrutura do DNA. Ambos trabalhavam em Cambridge, Reino Unido, cientes das idéias de Schrödinger de que os genes têm sua estrutura definida ao nível molecular. Em Londres, no King's College, Rosalind Franklin e Maurice Wilkins obtiveram as primeiras imagens, ainda não muito claras, de cristais de DNA usando difração de raios X.

Crick e Watson se lançam de corpo e alma ao desafio e, em abril de 1953, há 50 anos portanto, mostram que o DNA tem a estrutura de uma hélice dupla, com quatro bases nitrogenadas (A, T, C e G) se alternando duas a duas.

Schrödinger estava correto: o código genético reside mesmo no nível molecular, definido e propagado de geração em geração. Como ele disse, mesmo que os cientistas sejam na sua maioria especialistas em uma determinada área do conhecimento, almejam sempre expandi-lo. Sua obra é prova de que a coragem de pular as fronteiras entre as disciplinas muitas vezes cria pontes inesperadas.

domingo, 4 de maio de 2003

Metafísica e cosmologia

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Metafísica e cosmologia? Será que essas duas palavras deveriam estar juntas no mesmo título? Afinal, qualquer pessoa que estudou um pouco de ciência na escola sabe que ciência e metafísica não se misturam. O nome metafísica, historicamente, surgiu nas primeiras coleções da obra de Aristóteles, designando o assunto que ele tratou após a física.

No dicionário, metafísica designa o ramo da filosofia que busca compreender a natureza do ser e da realidade (ontologia) e a origem e a estrutura do Universo (cosmologia). No uso popular, é qualquer filosofia especulativa, esotérica ou mística, o que vai "além" da física.

Certas teorias da cosmologia moderna misturam de fato física e metafísica. Isso, na minha opinião, é extremamente perigoso. E olha que minha pesquisa é, em grande parte, centrada em questões cosmológicas. A cosmologia, como ela é entendida no meio científico, é a parte da física (e não da metafísica) que estuda a estrutura e as propriedades do Universo. Sendo parte da física, ela deve tentar descrever o Universo através de modelos matemáticos quantitativos que possam ser testados através de observações.

Esse ponto é essencial: uma teoria física só é científica se ela puder ser testada quantitativamente. Caso contrário, torna-se especulação filosófica que, apesar de extremamente importante para o conhecimento, não é ciência. É metafísica.
O problema é legitimidade. A fase moderna da cosmologia começou em 1917, quando Einstein aplicou a sua então recente Teoria da Relatividade Geral para calcular a geometria do Universo. Segundo a teoria, se conhecemos a quantidade total de matéria (e energia) no Universo, podemos então determinar a sua geometria. Einstein, sendo um herdeiro da tradição platônica e não tendo grande evidência observacional em contrário, supôs que o Universo fosse estático (não muda no tempo) e esférico.

Seguiram-se décadas de especulação cosmológica, em que vários modelos foram propostos, baseados mais em intuição e preconceitos do que em observações. Claro, essa especulação toda não gerou uma reputação muito invejável para o trabalho dos cosmólogos. Faltavam dados observacionais que pudessem testar modelos, eliminando alguns e confirmando outros. Mas, ao menos, os modelos propostos podiam ser testados.

A situação começou a mudar em 1965, quando se descobriram os primeiros sinais da radiação cósmica de fundo, um fóssil de quando o Universo tinha apenas 300 mil anos, previsto pelo modelo do Big Bang. De lá para cá, a cosmologia ganhou cada vez mais legitimidade, devido a uma série de descobertas e observações, incluindo algumas que detalham as propriedades dessa radiação cósmica. A cosmologia entrou em sua maioridade. Especulações são postas à prova.
Essa legitimidade é extremamente importante, pois coloca a cosmologia em pé de igualdade com outras áreas da física, como a física atômica ou a hidrodinâmica. Infelizmente, na última década a cosmologia voltou a ser inundada por especulações intestáveis e, portanto, não científicas. Por exemplo, a discussão da existência de infinitos universos, inclusive com cópias de cada um de nós.

O argumento, filosoficamente, é trivial: em um Universo infinito tudo é possível. Nós vivemos em uma bolha com um raio de 14 bilhões de anos-luz, a distância que a luz viajou desde o Big Bang. Segundo o argumento, além de nossa bolha existem infinitas outras. O leitor que conhece o conto "A Biblioteca de Babel", de Jorge Luis Borges, sem dúvida já reconheceu paralelos (a biblioteca reúne todos os livros possíveis, escritos e não escritos.)

O problema é que essa idéia é baseada numa suposição errônea: que o Universo é infinito. O que podemos medir do Universo é limitado pela bolha de 14 bilhões de anos-luz. Nela vemos um universo com geometria plana. Mas os metacosmólogos dão um passo além, supondo que essa é a mesma geometria do resto do Universo, infinitamente plano. E isso é algo que não podemos medir: vivemos em uma bolha e podemos apenas medir o que existe nela. O resto é especulação metafísica. Divertida, mas não científica.