domingo, 4 de maio de 2003

Metafísica e cosmologia

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Metafísica e cosmologia? Será que essas duas palavras deveriam estar juntas no mesmo título? Afinal, qualquer pessoa que estudou um pouco de ciência na escola sabe que ciência e metafísica não se misturam. O nome metafísica, historicamente, surgiu nas primeiras coleções da obra de Aristóteles, designando o assunto que ele tratou após a física.

No dicionário, metafísica designa o ramo da filosofia que busca compreender a natureza do ser e da realidade (ontologia) e a origem e a estrutura do Universo (cosmologia). No uso popular, é qualquer filosofia especulativa, esotérica ou mística, o que vai "além" da física.

Certas teorias da cosmologia moderna misturam de fato física e metafísica. Isso, na minha opinião, é extremamente perigoso. E olha que minha pesquisa é, em grande parte, centrada em questões cosmológicas. A cosmologia, como ela é entendida no meio científico, é a parte da física (e não da metafísica) que estuda a estrutura e as propriedades do Universo. Sendo parte da física, ela deve tentar descrever o Universo através de modelos matemáticos quantitativos que possam ser testados através de observações.

Esse ponto é essencial: uma teoria física só é científica se ela puder ser testada quantitativamente. Caso contrário, torna-se especulação filosófica que, apesar de extremamente importante para o conhecimento, não é ciência. É metafísica.
O problema é legitimidade. A fase moderna da cosmologia começou em 1917, quando Einstein aplicou a sua então recente Teoria da Relatividade Geral para calcular a geometria do Universo. Segundo a teoria, se conhecemos a quantidade total de matéria (e energia) no Universo, podemos então determinar a sua geometria. Einstein, sendo um herdeiro da tradição platônica e não tendo grande evidência observacional em contrário, supôs que o Universo fosse estático (não muda no tempo) e esférico.

Seguiram-se décadas de especulação cosmológica, em que vários modelos foram propostos, baseados mais em intuição e preconceitos do que em observações. Claro, essa especulação toda não gerou uma reputação muito invejável para o trabalho dos cosmólogos. Faltavam dados observacionais que pudessem testar modelos, eliminando alguns e confirmando outros. Mas, ao menos, os modelos propostos podiam ser testados.

A situação começou a mudar em 1965, quando se descobriram os primeiros sinais da radiação cósmica de fundo, um fóssil de quando o Universo tinha apenas 300 mil anos, previsto pelo modelo do Big Bang. De lá para cá, a cosmologia ganhou cada vez mais legitimidade, devido a uma série de descobertas e observações, incluindo algumas que detalham as propriedades dessa radiação cósmica. A cosmologia entrou em sua maioridade. Especulações são postas à prova.
Essa legitimidade é extremamente importante, pois coloca a cosmologia em pé de igualdade com outras áreas da física, como a física atômica ou a hidrodinâmica. Infelizmente, na última década a cosmologia voltou a ser inundada por especulações intestáveis e, portanto, não científicas. Por exemplo, a discussão da existência de infinitos universos, inclusive com cópias de cada um de nós.

O argumento, filosoficamente, é trivial: em um Universo infinito tudo é possível. Nós vivemos em uma bolha com um raio de 14 bilhões de anos-luz, a distância que a luz viajou desde o Big Bang. Segundo o argumento, além de nossa bolha existem infinitas outras. O leitor que conhece o conto "A Biblioteca de Babel", de Jorge Luis Borges, sem dúvida já reconheceu paralelos (a biblioteca reúne todos os livros possíveis, escritos e não escritos.)

O problema é que essa idéia é baseada numa suposição errônea: que o Universo é infinito. O que podemos medir do Universo é limitado pela bolha de 14 bilhões de anos-luz. Nela vemos um universo com geometria plana. Mas os metacosmólogos dão um passo além, supondo que essa é a mesma geometria do resto do Universo, infinitamente plano. E isso é algo que não podemos medir: vivemos em uma bolha e podemos apenas medir o que existe nela. O resto é especulação metafísica. Divertida, mas não científica.

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