domingo, 25 de abril de 1999

Big Bang em xeque

Uma das condições mais importantes para o sucesso do empreendimento científico é que teorias sejam constantemente testadas, mesmo após ser consideradas corretas. Quando um cientista propõe uma nova teoria ou modelo que descreve certos fenômenos naturais, espera que seus colegas testem suas idéias de todos os modos possíveis. Caso o modelo seja aprovado nos vários testes, ele será aceito como um modelo de sucesso. Caso contrário, ele terá de ser abandonado ou reformulado. O ceticismo do cientista, que, às vezes, irrita pessoas de outras áreas, é o que mantém a ciência saudável. Portanto, quando se fala que alguma teoria está em "crise", isso não significa algo necessariamente negativo. Um exemplo apropriado é o modelo cosmológico do Big Bang. Segundo esse modelo, proposto na segunda metade dos anos 40 por George Gamow e colaboradores, o Universo teve uma infância muito quente, quando a matéria estava dissociada em seus componentes mais fundamentais. O importante, aqui, é que o Big Bang implica um Universo com uma origem temporal. Essa propriedade incomodou muito alguns físicos ingleses, que, em 48, propuseram um modelo alternativo, o chamado modelo do "estado-padrão" (MEP). Em sua versão original, o MEP previa um Universo eterno, sem origem temporal. Esses dois modelos duelaram até meados dos anos 60, quando observações da radiação cósmica de fundo, cuja existência é prevista no modelo do Big Bang, confirmaram as idéias de Gamow. Mas os proponentes do MEP, especialmente Fred Hoyle, um dos grandes astrofísicos deste século, não desistiram facilmente. Na edição de abril da revista norte-americana "Physics Today", Hoyle e dois colaboradores voltam à carga, tentando renovar o interesse por uma nova versão do MEP, o modelo do estado "quase-padrão", ou MEQP. Segundo esse modelo, o Universo alterna ciclos de expansão e contração, nunca chegando a um estado inicial de contração total em que a densidade da matéria e a sua temperatura sejam infinitas. Nós estamos no meio de um período de expansão. Hoyle diz que tanto a radiação de fundo quanto todos os elementos químicos (com exceção do hidrogênio) são produzidos em estrelas. Isso vai contra o modelo do Big Bang, que diz que os elementos químicos mais leves, como, por exemplo, o hélio, foram produzidos durante os instantes iniciais de existência do Universo. Já a radiação de fundo teria sido produzida quando o Universo tinha em torno de 300 mil anos de existência. Segundo o MEQP, o núcleo de galáxias é uma fornalha produtora de matéria, ejetando estrelas e outros objetos pelo espaço. Os mecanismos físicos que geram tal produção de matéria dependem de suposições não menos radicais do que as usadas na descrição do estado inicial do Universo no Big Bang. Os proponentes do MEQP afirmam que a radiação de fundo é produzida em reações termonucleares que ocorrem em estrelas durante a conversão de hidrogênio em hélio. O problema dessa idéia é que observações dessa radiação mostram que ela é extremamente homogênea, tendo a mesma temperatura em todas as direções do céu, com precisão de 1 em 100 mil partes. Atingir isso com estrelas é muito difícil; Hoyle usa certos cristais de carbono exóticos para conseguir tal feito -mesmo assim, de modo inconclusivo. Após uma análise mais detalhada, fica claro que o modelo do estado quase-padrão tem vários problemas, maiores que os do modelo do Big Bang. A crítica é bem-vinda e saudável, mas não parece levar a uma profunda reformulação de nossas idéias cósmicas. Como disse meu colega Andreas Albrecht, a chave para o progresso é que, quanto maior a quantidade de dados experimentais e de observação, menos importantes são os debates filosóficos a favor desta ou daquela teoria.

domingo, 18 de abril de 1999

O cabo-de-guerra cósmico



Quando olhamos para o céu noturno, as estrelas nos parecem distribuídas aleatoriamente, sem padrão determinado. As constelações formam grupos de estrelas organizados de forma sugestiva, mas, se olharmos para o céu como um todo, não existe um padrão pelo céu inteiro. Olhando com mais cuidado, vemos uma "névoa" alongada e difusa que corta o céu quase que de ponta a ponta, a Via Láctea.

Em 1924, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble mostrou que a Via Láctea é apenas uma entre muitas galáxias, cada uma contendo desde vários milhões até centenas de bilhões de estrelas. Hubble mostrou também que as galáxias estão, em geral, se afastando da Via Láctea, com velocidades proporcionais à sua distância: quanto mais longe a galáxia, maior é sua velocidade de recuo. Esse movimento é chamado "fluxo de Hubble", como se as galáxias estivessem sendo carregadas por uma corrente de um rio cósmico. Essa é a expansão cosmológica que pode ser consequência do Big Bang.

No Universo, a gravidade é a arquiteta suprema; ela produz as várias estruturas "compactas" que vemos no cosmos, desde sistemas solares e galáxias até aglomerados de milhares de galáxias ou mesmo aglomerados de aglomerados. Quando a força da gravidade é forte o suficiente, a estrutura pode se desviar do fluxo de Hubble, ganhando movimento em outras direções. Como exemplo, a galáxia de Andrômeda (M31) está localizada a cerca de 2 milhões de anos-luz da Via Láctea. A atração entre as duas galáxias é grande o suficiente para fazer com que Andrômeda esteja se aproximando de nossa galáxia, em movimento inverso ao fluxo de Hubble; o cabo-de-guerra cósmico entre o fluxo de Hubble e a atracão gravitacional entre as duas galáxias é vencido pela gravidade. Esses movimentos locais, causados pela gravidade e que geram desvios do fluxo de Hubble, são conhecidos como "movimentos próprios".

No início dos anos 70, alguns astrônomos começaram a estudar esses movimentos próprios como indicadores da distribuição de massa em certas regiões do Universo. Como esses movimentos são causados pela gravidade, e esta resulta da atração entre concentrações de massa, a direção e a intensidade desses movimentos podem mapear a distribuição de massa por distâncias enormes. É como se quiséssemos estudar a posição e a massa do Sol observando os movimentos de planetas à sua volta.

Os resultados foram surpreendentes. Ficou claro que galáxias em aglomerados ricos (com muitas galáxias), chamados aglomerados de Abel, se comportam como abelhas em uma garrafa, com velocidades da ordem de 1.000 km/s. Mais ainda, esses aglomerados, como um todo, também têm movimentos próprios. Ou seja, concentrações de massa ainda maiores que os aglomerados devem existir para provocar tais puxões cósmicos. Em 1988, um estudo dos movimentos de uma amostra de galáxias elípticas revelou a possível existência de uma enorme concentração de massa, situada a cerca de 60 megaparsecs (1 megaparsec é igual a 3,2 milhões de anos-luz), que ficou conhecida como "Grande Atrator". Mais recentemente, foi descoberta outra estrutura, com uma extensão linear de 100 megaparsecs, chamada "Grande Parede".

O problema com essas medidas (e há outras ainda mais recentes) é que elas parecem contrariar um dos princípios mais fundamentais da cosmologia, o "princípio cosmológico", que diz que o Universo, em média, é homogêneo (o mesmo em qualquer lugar) e isotrópico (o mesmo em qualquer direção). Mesmo que a média seja sobre distâncias de centenas de megaparsecs, a descoberta de movimentos próprios de aglomerados indica a existência de concentrações de massa que dificilmente fazem parte de um Universo homogêneo e isotrópico. Ainda é prematuro criticar o princípio cosmológico, embora seja possível que ele perca o cabo-de-guerra para os movimentos próprios.

domingo, 11 de abril de 1999

A coragem do jovem Einstein



As primeiras décadas do século 20 foram marcadas por uma profunda revisão de nossos conceitos relativos à natureza física do mundo. Primeiro, a teoria da relatividade de Einstein reformulou a concepção de espaço e de tempo, mostrando como as definições então aceitas eram limitadas. Segundo a física newtoniana, o espaço e o tempo eram entidades absolutas, independentes do estado de movimento do observador. Einstein mostrou que existe uma inter-relação entre espaço e tempo, que são mais apropriadamente tratados como uma entidade única, o espaço-tempo quadridimensional (quatro dimensões, três para o espaço e uma para o tempo).

Essa "unificação" do espaço com o tempo leva a consequências que contrariam nosso bom senso. Por exemplo, Einstein mostrou que objetos em movimento têm suas dimensões contraídas na direção do movimento (a "contração espacial") e que relógios em movimento batem mais devagar (a "dilatação temporal"). Nós não vemos esses efeitos, pois eles só são perceptíveis quando os movimentos ocorrem a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo). Uma das consequências da teoria da relatividade é que nós vivemos em uma realidade aproximada, newtoniana, que esconde toda uma outra realidade relativística, onde comprimentos e intervalos temporais são sujeitos a mudanças.

Mas a teoria da relatividade não foi a única a expandir as fronteiras de nossa realidade física. Uma outra revolução conceitual ocorreu quase que ao lado da que houve na compreensão da estrutura do espaço-tempo causada pela relatividade: a revolução em nossa compreensão da física do muito pequeno, a física quântica. Mesmo com a invenção do microscópio tendo, desde o final do século 17, revelado um mundo diferente do nosso, povoado por células etc., esse era ainda um mundo que seguia as leis newtonianas de movimento. Mas experiências no século 19 obtiveram resultados inexplicáveis pela física clássica.

A explicação desses resultados experimentais forçou um realinhamento conceitual da física que pegou a maioria dos físicos de surpresa. A palavra "forçou" é mesmo muito adequada. Tudo começou quando o físico alemão Max Planck sugeriu, em 1900, que átomos não recebiam nem emitiam energia continuamente, mas em pequenos "pacotes", ou quanta. Essa idéia era perturbadora; até então, energia era tratada como uma quantidade contínua. Planck tentou, durante anos, explicar sua idéia de forma "clássica", isto é, mostrar que a descontinuidade da energia era consequência de conceitos determinísticos baseados na física newtoniana. Mas seus esforços foram em vão: a interação entre átomos e radiação era mesmo efetuada por meio de pequenos pacotes de energia e seus múltiplos, da mesma forma que transações monetárias são feitas em termos de centavos e seus múltiplos. O centavo é o "quantum" monetário.

As idéias de Planck inspiraram o então jovem Einstein a pensar mais profundamente sobre a natureza da radiação eletromagnética, cuja porção visível nos é familiar em forma de luz. No mesmo ano em que ele propôs a teoria da relatividade especial (1905), Einstein publicou um artigo em que indica que a própria luz tem um comportamento dual, atuando ora como onda, conforme era aceito na época, ora como partícula. Como prova de sua conjectura, Einstein explicou um resultado experimental conhecido como efeito fotoelétrico, pelo qual a radiação ultravioleta pode remover elétrons de uma placa metálica eletricamente neutra, tornando-a carregada. O Prêmio Nobel que ele ganhou em 1921 não foi pela teoria da relatividade, mas pelo efeito fotoelétrico. Ambas as idéias demonstram a coragem intelectual do jovem Einstein que, aos 26 anos, lançou as sementes das duas grandes revoluções da física desse século. E essas não foram as únicas duas sementes que o jovem Einstein plantou então...

domingo, 4 de abril de 1999

Uma breve história do calendário

Com a aproximação iminente do novo ano, século e milênio, nada mais apropriado do que darmos uma olhada na grande aventura que foi a elaboração de um calendário aceito globalmente. Claro, certas culturas e religiões não ligam para essa passagem de milênio, já que, para elas, a passagem do tempo é assinalada de modo completamente diverso. Antes de entrarmos na história do calendário aceito hoje, o Gregoriano, vale a pena visitarmos outros ainda em uso.

Para os judeus, o calendário começa no dia em que o Universo foi criado, segundo o Gênesis, no Antigo Testamento. O segundo milênio começou em 1761 a.C., uma data sem significado para o calendário Gregoriano ou para os judeus. Aliás, segundo Benjamin Gampel, professor de Estudos Medievais do Seminário Teológico Judaico de Nova York, para os judeus, o início de mais um milênio não é celebrado de forma mais especial do que outros anos. Já para os muçulmanos, a passagem do tempo é medida em ciclos lunares medidos a partir da fundação da primeira comunidade islâmica, em Medina, na península Árabica, pelo profeta Maomé. O ano 2000 dos muçulmanos cairá em 2562 no calendário Gregoriano.

Nem tampouco o dia coincide. A passagem do Ano Novo será celebrada pelos muçulmanos nesse ano no dia 11 de abril, se a Lua crescente for avistada, anunciando o novo mês lunar. Caso contrário, o Ano Novo será no dia seguinte. Já os chineses celebraram o Ano Novo no dia 17 de fevereiro, e os judeus irão celebrá-lo no dia 11 de setembro.

Desde as primeiras comunidades agrícolas, marcar a passagem do tempo sempre foi uma atividade muito importante. A própria sobrevivência da comunidade dependia do conhecimento de quando plantar ou colher, ou quando chegam as chuvas ou a seca. A regularidade desses eventos foi equacionada com a regularidade dos movimentos celestes; o céu podia ser usado como um gigantesco relógio, impulsionado pelos deuses. Para adicionar significado a esses eventos naturais, sua chegada era marcada por festivais religiosos, em que a comunidade se reunia para celebrar mais um ano de fartura ou para apaziguar os deuses na esperança de um ano melhor. O calendário passou a ser identificado com eventos religiosos, criando uma aliança que persiste até hoje.

O problema ao criar um calendário simples é que o céu não se presta a nossa contagem em números inteiros. Por exemplo, o intervalo entre dois ciclos lunares é de 29,53 dias, o que faz com que um mês lunar tenha 29 (ou 30 dias), e um ano lunar (12 meses lunares), um total de 354,36 dias, menos do que um ano solar, de 365,2422 dias.

Essas inconsistência e outras fizeram com que Julio César promovesse uma reforma no calendário. Para corrigir o problema, ele decretou que o ano 46 a.C. tivesse 445 dias e que todos os anos seguintes tivessem 365. A cada quatro anos, um dia seria adicionado ao mês de Fevereiro, que teria então 29 dias. O calendário Juliano criava um excesso de três anos "bissextos" a cada 385 anos, provocando uma discrepância na datação dos equinócios e solstícios. Como o equinócio do outono (primavera no Hemisfério Norte) marca o início da Páscoa, a Igreja resolveu interferir. Ao lado do astrônomo Clavius, o Papa Gregório 13 inaugurou um novo calendário, o "Gregoriano", decretando que quinta-feira, 4 de outubro de 1582, no calendário Juliano, seria seguida por sexta-feira, 15 de outubro, no calendário Gregoriano. Onze dias desapareceram da história por decreto papal!

Como a reforma veio da Igreja Católica, nem todos ficaram muito satisfeitos. A Inglaterra só adotou o calendário Gregoriano em 1752, enquanto os protestantes na Alemanha acreditavam que o novo calendário era obra do diabo. Confusões e disputas religiosas resolvidas, a contagem continua em direção ao novo milênio, que, mesmo arbitrário, não deixa de ser emocionante.