sábado, 31 de outubro de 2009

O símbolo perdido




Dan Brown aproveita a fixação popular com a pseudociência



Robert Langdon, o professor-herói dos romances de Dan Brown, está de volta. Desta vez, sua batalha é travada bem mais perto de casa. Em vez das ruas de Paris e de Roma, o professor de "simbologia" de Harvard (uma categoria acadêmica que, aliás, não existe: semiótica talvez fosse mais adequado) luta pela sua vida e pelo despertar de uma nova era para a humanidade nas ruas e monumentos de Washington.

A premissa do livro é fascinante: e se a sabedoria do passado, dos egípcios, dos alquimistas, dos videntes e dos magos, guardada corajosamente por maçons, rosacruzes e outros membros de sociedades secretas, estivesse de alguma forma ligada com a ciência moderna -em particular com as ciências neurocognitivas, que exploram o funcionamento do cérebro?

Será que a mente humana tem poderes ocultos que ainda não foram explorados e que têm o potencial de mudar o curso da história? Não vou estragar o livro contando o seu enredo. O que podemos fazer aqui é explorar se as ideias que Brown propõe no livro têm algo de concreto. A premissa é que a Bíblia e a maioria dos textos sagrados têm, essencialmente, a mesma mensagem: nós, humanos, somos deuses.

Senão na prática, ao menos em potencial. Não é à toa que a Bíblia começa com Adão e Eva, imortais, caminhando junto a Deus no Jardim do Éden e culmina, após a perda dessa imortalidade devido à descoberta do pecado, com a Ressurreição. No livro, Brown interpreta a Bíblia e outros textos sacros e profanos como manuais que explicam como podemos voltar a ser deuses.

Os maçons são os guardiães desses segredos, que são preciosos demais para serem revelados. Daí os códigos, os símbolos e a trama mirabolante de como decifrar o mapa que revela onde os segredos se encontram. Esse é o papel da religião na história.

A ciência entra através da heroína, Katherine Solomon. Sua pesquisa que, claro, é secretíssima, concentra-se na chamada "ciência noética", supostamente a ciência que estuda os poderes do cérebro. O mais importante deles é a capacidade da mente de interagir com a matéria: em princípio, podemos mover a matéria com o poder do pensamento. Quem se lembra do israelense Uri Geller e dos vários "entortadores de colher" que eram populares nos anos 1970? Eles seriam exemplos dos superdotados, dos humanos com poderes telecinéticos extremamente avançados.

Brown usa -de forma brilhante, devo dizer- a fixação popular com a pseudociência, ligando-a ao conhecimento dos antigos: eles já sabiam disso tudo, mas, após séculos de perseguição, esse conhecimento foi quase esquecido. Agora, graças à ciência moderna, estaríamos redescobrindo a sabedoria dos nossos antepassados: a ciência justificando a religião no laboratório, mostrando que, de fato, nós somos mesmo semideuses.

O livro de Brown é um símbolo da sua convicção de que, se trabalharmos juntos, podemos transformar o mundo. Sua visão otimista é bastante louvável, se bem que ele também menciona que esse mesmo conhecimento pode ser usado para o mal. O vilão da história está aí para provar isso.

Infelizmente, não existe qualquer evidência concreta de que a mente pode agir sobre Pa matéria. Os truques de Uri Geller são facilmente repetidos por mágicos. O cérebro não parece ser capaz de gerar uma interação mecânica com os objetos à sua volta. Por outro lado, temos ainda muito a aprender sobre os poderes da mente. Nesse meio tempo, se a força do pensamento pode fazer alguma coisa, é através das ações e escolhas que fazemos -essas sim, capazes de melhorar o mundo em que vivemos.

domingo, 18 de outubro de 2009

Tensão criadora


Roald Hoffmann argumenta que nem sempre o mais simples é o mais belo


Na semana passada, tive o prazer de assistir uma palestra proferida pelo Prêmio Nobel de Química Roald Hoffmann, que esteve visitando a minha universidade nos EUA por algumas semanas.

Hoffmann é conhecido de muitos no Brasil. Participamos juntos do Carnaval no Rio, quando saímos com a Unidos da Tijuca fantasiados de Santos Dumont em 2004. A escola, com um tema de ciência e criatividade, ficou em segundo lugar, motivo de grande festa. Aqui em Dartmouth, Hoffmann veio como químico, poeta, sobrevivente do Holocausto e dramaturgo. É óbvio que Hoffmann não é um Nobel típico. A palestra a que me refiro tratava de química e criatividade. Foram tantas ideias interessantes que queria dividir algumas com os leitores. O título era já bem instigante: "A tensão criativa da química".

"Mesmo que exista uma estrutura que permeie a realidade, existem 36 meios de representá-la." Aqui já vemos uma noção de pluralidade do conhecimento: existem muitos meios de construir o conhecimento sobre o mundo -e a ciência não é o único.

Hoffmann é um cientista humanista, que vê a ciência dentro de seu contexto histórico-cultural e não imune aos preconceitos que definem tantas das nossas escolhas. Por exemplo, passou um bom tempo falando sobre simplicidade versus complexidade.

Por que amamos o simples? Mostrando a imagem de uma molécula de hemoglobina, extremamente complicada e absolutamente fundamental para a vida, afirmou: "Esta molécula não é bela porque é simples. Mas é bela assim mesmo". A estética da ciência, principalmente devido ao sucesso do reducionismo na física, sempre buscou o mais simples, atribuindo-lhe beleza. A famosa "navalha de Occam", que diz que, se existem duas explicações para o mesmo fenômeno, a mais simples deve ser a verdadeira, implicitamente assume que o mais simples é o mais belo. Será sempre assim?

Mostrando imagens dos parques de Gaudí em Barcelona, de igrejas rococó na Espanha, na Alemanha e na Itália, Hoffmann argumentou que nem sempre o mais simples é o mais belo. Economia na forma pode ser muito importante na física, mas na biologia a complexidade absurda das moléculas parece estar dizendo algo de diferente. A estética da vida e a dos homens pode ter muito mais em comum do que imaginamos.

"A natureza é o que é, mas não é simétrica." Hoffmann retornou a esse tema diversas vezes. O que ele quis dizer com isso? Claramente, simetria é uma ferramenta muito importante nas ciências. O que seria da geometria sem ela? Também na física buscar simetrias sempre leva a grandes simplificações: simetria, simplicidade, beleza e verdade parecem andar de mãos dadas na história da ciência. Mas será que esse paradigma já rendeu o que tinha de render? Não há dúvida de que o simples leva à grandes revelações.

Mas o complexo também. Principalmente quando migramos da física à química e à biologia. O que dificulta as coisas é que o estudo de estruturas complexas precisa de ferramentas diferentes, e poucas existem hoje. "A química é a ciência da transformação, e pessoas não gostam de mudanças." Aqui, Hoffmann se referiu ao menor interesse que o público tem em química, quando comparada à física e à biologia. Basta ver os temas dos livros dedicados à popularização da ciência para confirmar isso. Hoffmann sugeriu que o excesso de rigidez em ocultar o passado alquímico e mítico da química (que ele celebra) acabou por tirar a magia de uma ciência cheia de mágica. Afinal, a química é a ponte entre o átomo e a célula. Quem precisa de mais do que isso para se empolgar com ela?

domingo, 11 de outubro de 2009

Einstein e o Antropólogo



Um físico não pode se dar o luxo de se esconder por trás de arbustos


Imagine ser um dos maiores cientistas da história. Suas teorias revolucionaram a visão de mundo humana, tornando-se sinônimo de genialidade. Sua missão, como a de todo o cientista, é compreender o mundo, descrever de forma racional os mecanismos dos fenômenos naturais. Na história, poucos, pouquíssimos, igualam-se a você. Sua filosofia baseia-se numa fé inabalável na capacidade da razão humana em decifrar os mistérios da matéria. Sem limites.

Dentre seus feitos, um dos mais importantes foi mostrar que matéria nada mais é do que uma forma de energia. Outro, foi mostrar que a luz não é apenas onda mas, também, uma partícula, que ficou conhecida como fóton. Essas ideias virão a ser o arcabouço duma outra revolução do conhecimento, a física quântica. De forma inusitada, as sementes que você havia plantado com suas teorias germinam com uma força incrível.

Num dado momento, porém, atendidas por outras mãos, elas tomam o seu próprio rumo. E, rapidamente, ameaçam arruinar o mundo que você havia construído, baseado na compreensão ilimitada da Natureza, um mundo controlável e sem surpresas. Assim foi a teoria quântica que, aos poucos, tornou-se no pesadelo de Albert Einstein.

Einstein era um físico clássico por excelência. Acreditava que era possível obter uma explicação total da realidade, uma teoria unificada que descrevesse todas as facetas do mundo material. Quando a teoria quântica começou a tomar força, ficou claro que o mundo do muito pequeno era muito mais sutil, e muito mais excêntrico, do que o mundo do dia a dia.

Fenômenos realmente estranhos são de praxe nos átomos. Por exemplo, partículas subatômicas, como elétrons, podem se transformar em partículas de luz e vice-versa. Imagine se, no nosso mundo, um fusca pudesse se transformar num elefante! Partículas não têm sua posição definida com precisão arbitrária: existe sempre um limite, que chamamos de princípio da incerteza, que restringe a quantidade de informação que podemos extrair de um sistema.

Eis uma analogia. Um antropólogo descobre uma nova tribo no Amazonas. Essa tribo nunca teve contato com um ocidental. Inicialmente, o antropólogo consegue observar a tribo sem ser visto, escondido por trás de arbustos. Porém, depois de um tempo, um sentinela o descobre e ele é trazido ao chefe. Após muita confusão, o antropólogo consegue sobreviver e virar convidado da tribo, continuando suas observações. Porém, ele percebe que, após a sua chegada, a tribo já não se comporta da mesma forma: a sua presença, o contato com um estranho, mudou de forma irreversível o comportamento da tribo.

Com átomos, a situação é ainda mais difícil. Ao medirmos um sistema, mudamos o seu comportamento de forma irreversível. Ao contrário do antropólogo, o físico não tem o luxo de poder se esconder por trás de arbustos e observar o sistema sem ser visto: no mundo dos átomos e das partículas, medir é interferir: ao observarmos um sistema, mudamos irreversivelmente o seu comportamento.

Juntando isso ao princípio de incerteza, chegamos ao dilema de Einstein: se prepararmos o mesmo sistema da mesma forma várias vezes, e medirmos a mesma propriedade (por exemplo, a posição do elétron num átomo de hidrogênio a uma certa temperatura), cada medida que fizermos não dará o mesmo resultado. Temos de repeti-la muitas vezes e usar estatística: o elétron tem uma parcela de chance de estar aqui, outra de estar lá etc. Einstein queria ser como o antropólogo. Mas a tribo dos átomos é muito diferente da tribo dos homens.

domingo, 4 de outubro de 2009

Frankenstein revisitado



Se pudéssemos nos clonar e armazenar nossas memórias, seríamos imortais


É difícil não associar o nome "Frankenstein" com o monstro criado na versão cinematográfica de 1931, dirigida por James Whale, famosamente interpretado por Boris Karloff: uma criatura mentalmente perturbada, um assassino que mal podia ser considerado humano.

Quem leu o romance de Mary Shelley, entretanto, sabe que a história original era bem outra. E o seu significado, muito mais profundo.

A jovem vitoriana criou um ser muito mais sofisticado do que aquele retratado por Hollywood. No livro, publicado em 1818, o monstro não tinha nada de retardado ou de psicopata. Inteligente, conversava com o seu criador, lia livros e sonhava em ser amado. Foi aí que o problema começou.

O monstro, entendendo que a sociedade jamais o aceitaria, pede ao seu criador uma companheira com quem pudesse dividir os seus dias nos confins da Terra, longe de tudo e todos. Horrorizado, o doutor se recusa a fazer isso. Não criaria uma raça de monstros que logo se multiplicariam e destruiriam toda a raça humana.

Frankenstein é um romance de ficção científica. Ele explora a questão dos limites da ciência. Será que a ciência pode sobrepujar a morte? Se puder, será que deve fazê-lo? Ou será que existem questões que a ciência simplesmente não deve abordar?

No início do século 19, a ciência de ponta explorava as propriedades da eletricidade. Na Itália, Luigi Galvani havia descoberto a "eletricidade animal". Ele mostrou que os músculos de um sapo morto se contraem quando uma corrente elétrica passa por eles.

A conexão entre a eletricidade e a vida foi imediata. Se a eletricidade pode animar um sapo morto, por que não uma pessoa? Seria possível que o segredo da vida se ocultasse nos poderes da eletricidade? Seria esse o segredo da imortalidade?

Não há dúvida de que a eletricidade está ligada à vida. Basta assistirmos a algum seriado sobre medicina na televisão, como o popular House, para vermos corações serem reanimados por correntes elétricas. O segredo do sucesso do romance de Mary Shelley foi ter combinado a ciência de ponta de sua época com um dos maiores tabus da sociedade: o controle, por mãos humanas, da vida e da morte.

Infelizmente (ou felizmente?), para ressuscitar os mortos, nós temos que ultrapassar uma outra barreira, bem maior do que a circulação de impulsos elétricos pelo corpo. Ela é conhecida como decaimento da matéria.

Mesmo ao nível celular, e mesmo enquanto vivos, existem mecanismos celulares e genéticos que controlam o envelhecimento. Aparentemente, é possível diminuir a taxa de envelhecimento celular (ao menos em ratos de laboratório) administrando certas proteínas. Ao nível genético, ratos que têm a ação do gene mclk1 comprometida envelhecem mais devagar.

Talvez, em algumas décadas, essas técnicas levem a um controle da taxa de envelhecimento em humanos. Mesmo assim, viver 120 anos não é a mesma coisa que ser imortal.

Uma proposta mais ambiciosa e, no momento, digna de um romance de ficção científica do século 21 (o nosso Frankenstein?), é a do cientista e inventor americano Ray Kurzweil.

Ele especula que talvez um dia seja possível armazenar as nossas memórias como fazemos com a informação em computadores. Se pudéssemos também criar clones de nós mesmos, poderíamos, ao menos em princípio, programar o cérebro dos clones com a nossa "essência" de modo a propagar nossa existência indefinidamente.


Vamos supor que, um dia, algo assim seja possível. Será que estaríamos inventando o fim da humanidade, como temia o doutor Frankenstein? Ou será esse o nosso destino?