domingo, 31 de julho de 2005

Quem desenhou o Designer?

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

A questão do Design Inteligente (DI) é o novo capítulo da infeliz guerra entre a ciência e a religião. Não que os proponentes do DI aceitem abertamente esse rótulo; para eles o DI é ciência e deve ser tratado como tal. Afinal, não dizem que o designer é Deus. Apenas que uma inteligência, qualquer que seja a sua natureza, é necessária para explicar a complexidade da vida. Talvez o designer seja um ET? A possibilidade, para os que defendem o DI, não deve ser descartada. Ou será que deve?


A hipótese do DI não é científica. Ela não é observável ou verificável em laboratórios


Para analisar o DI, deve-se explicar o significado de uma hipótese científica. Antes de fazer isso, justifico por que uso este espaço para discutir DI. Tenho certeza de que aqueles que o rejeitam acham que eu não deveria sequer discutir o assunto; que dar espaço ao tema é lhe dar mais credibilidade do que merece. Muitos cientistas se recusam a participar de mesas redondas com defensores do DI, alegando que fazê-lo é completamente inútil, que os que acreditam em DI o fazem por razões que não são científicas e que discussões públicas de 60 minutos não serão suficientes para convencê-los.

Eu discordo. Talvez seja mesmo impossível usar argumentos racionais para convencer aqueles que acreditam cegamente nas premissas do DI. Mas não são essas as pessoas que devem ser alvo das atenções dos cientistas. São milhões de outras, a maioria silenciosa, que está confusa, curiosa, tentando entender o que está acontecendo. Por que os cientistas, se estão tão seguros de suas teorias, não aparecem em público para derrubar de uma vez por todas o movimento do DI? Para elas, argumentos do tipo "para um cientista, é perda de tempo engajar-se nesse debate" soam como desculpa de alguém que já está derrotado ou que tem medo do confronto. Enquanto os cientistas continuam calados, os criacionistas e os defensores do DI proclamam suas "verdades" aos quatro ventos, o mais alto possível.

Dito isso, voltemos à questão da hipótese científica. Uma hipótese é considerada científica se for passível de validação empírica. Em bom português, é o "ver para crer", o oposto do "crer para ver", que é a premissa da religião. É muito mais fácil "ver" um milagre quando se acredita que milagres são possíveis. No ver para crer científico, uma hipótese deve ser acompanhada de testes que determinem se está certa ou errada. Se estiver certa, ela explica os fenômenos que se propõe a explicar. Um exemplo: átomos existem e são formados de prótons e nêutrons no núcleo e de elétrons à sua volta. Baseados nessa hipótese, cientistas constroem teorias que explicam milhares de fenômenos observados no laboratório, incluindo as propriedades das moléculas orgânicas responsáveis pela vida.

Segundo a discussão acima, a hipótese do DI (somos o produto de uma inteligência) não é científica. Ela não é observável ou verificável em laboratórios. A menos, claro, que o designer, aparentemente tímido já faz uns bons 3 bilhões de anos, resolva nos contatar, revelando o que aprendeu conosco ou os objetivos do experimento. Mesmo que nossa inteligência seja infinitamente inferior à dele, tenho certeza de que poderíamos entender ao menos parte da coisa. Talvez pudéssemos então perguntar o que, para mim, é a questão mais fundamental de todas: "Senhor designer, quem foi que o desenhou?". E se o designer disser que não sabe, que talvez também seja parte de um experimento, ficaremos então sabendo qual a identidade secreta do Designer. É bom usar letra maiúscula, pois é assim que devemos nos referir a Deus.

domingo, 24 de julho de 2005

Psiquiatria bioeletrônica

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Em seu romance de ficção científica "A Pedra Filosofal", o inglês Colin Wilson relata a história de um neurocientista que faz uma descoberta fenomenal: a aliança da eletrônica com as ciências cognitivas pode transformar cérebros normais em supercérebros, com poderes inimagináveis. O cientista implanta eletrodos em certas regiões da córtex cerebral frontal, a área da inteligência, estimulando-as com pequenas correntes elétricas. Os resultados são surpreendentes: ele passa a ter uma capacidade racional infinitamente superior à normal, incluindo poderes paranormais e conexões com o passado e o futuro. O supercérebro pode viajar no tempo sem sair do lugar.


Se uma nova terapia pode aliviar sofrimento, deve ser desenvolvida. Mas o temor das fantasias ficcionais existe


Recentemente, o filme "O Candidato da Manchúria" revisita o tema, adaptando-o ao clima de intriga política e corrupção corporativa que existe hoje nos EUA. No filme, soldados são usados como cobaias em um experimento, onde eletrodos são implantados nos seus cérebros com o intuito de controlar as suas memórias e desejos. Não só os soldados se lembram apenas daquilo que os seus controladores permitem, mas suas memórias podem ser fabricadas por um processo de hipnose induzido pelos eletrodos. Ou seja, a tecnologia pode ser usada maquiavelicamente para criar autômatos humanos. Inclusive o futuro presidente dos EUA.

Passando da ficção à ciência, a tecnologia de implante de eletrodos no cérebro está sendo desenvolvida em vários países, incluindo Canadá, Alemanha, EUA e Bélgica. O intuito dos neurocirurgiões não é criar autômatos mas aliviar o sofrimento causado por várias doenças psiquiátricas, como a obsessão compulsiva, o mal de Parkinson e a depressão profunda.

A técnica, chamada de Estimulação Cerebral Profunda (ECP), é surpreendentemente semelhante àquela das obras ficcionais. Microeletrodos com a espessura de um cabelo humano e seis milímetros de comprimento são inseridos em regiões profundas do cérebro, que variam com a doença a ser combatida. O processo de inserção é complicado, já que o cirurgião deve evitar a perfuração de artérias e se certificar de que o local certo foi atingido. Os eletrodos estimulam eletricamente o cérebro, interferindo com os canais de comunicação entre os neurônios.

Como vários distúrbios psiquiátricos são associados a bloqueios ou disfunções neuronais, a idéia é que os impulsos elétricos podem restituir às regiões danificadas um nível razoável de funcionamento. A técnica está em desenvolvimento, mas os testes preliminares são animadores.
Em torno de 30 mil operações desse tipo foram já feitas no mundo, especialmente no tratamento do mal de Parkinson. Em muitos, o estímulo elétrico alivia imediatamente a paralisia muscular associada com a doença. Um paciente do doutor Bart Nuttin, da Bélgica, que sofria de transtorno obsessivo-compulsivo, mudou de comportamento quase instantaneamente. A técnica aponta para uma nova era da psiquiatria e psicologia, onde medicamentos e terapia são apenas parte do tratamento.

Questões éticas são inevitáveis. Para os que sofrem de distúrbios psiquiátricos potencialmente tratáveis por ECP, não existe dúvida: se uma nova terapia pode aliviar o sofrimento de pacientes, deve ser desenvolvida o mais rapidamente possível. Mas o temor das fantasias ficcionais existe. Talvez um dia seja possível manipular o núcleo de memórias de alguém, ou até comportamentos, com intenções criminosas. Mas proibir ou ignorar um avanço capaz de aliviar o sofrimento de milhões é crime muito maior.

segunda-feira, 18 de julho de 2005

O planeta Gleiser

O planeta Gleiser
Astrofísico, escritor, roteirista: uma viagem pelo universo íntimo do único cientista pop do Brasil

ELIANE BRUM

» Confira a íntegra da entrevista com o cientista Marcelo Gleiser

MARCELO GLEISER
Dados pessoaisNasceu no Rio, tem 46 anos, três filhos. Vive nos Estados Unidos há 23 anos

CarreiraProfessor de Física do Dartmouth College, nos EUA, publicou cinco livros, ganhou vários prêmios, entre eles dois Jabutis, o José Reis de Divulgação Científica e o Presidential Faculty Felows, da Casa Branca
Últimas realizaçõesUm romance sobre a vida do cientista Johann Kepler e dois roteiros de cinema
Montagem sobre fotos de Maurilo Clareto/ÉPOCA e reprodução

Fotos: arq. pessoal
O PEQUENO GLEISER
Caçula temporão, depois de dois garotos, os pais, Izaac e Haluza, torciam que fosse uma menina. Na foto, com 1 ano
Se houve um início, o dele foi a morte. Marcelo Gleiser perdeu a mãe, Haluza, aos 6 anos, em ''circunstâncias trágicas''. No escuro desde então, quis se tornar ''o primeiro judeu vampiro da História''. Com 10 anos, pegava um ônibus em Copacabana para se abrigar do sol carioca entre as largas paredes da Biblioteca Nacional. O pequeno Gleiser não conhecia outro atalho para a Transilvânia que não fosse o dos livros. A biblioteca era o castelo do menino. ''Queria entrar num plano em que minha mãe existisse.'' Dentro de uma mala preta, que escondia embaixo da cama, progredia sua primeira investigação científica: pilhas de anotações sobre Drácula e a imortalidade. ''Tinha medo de que meu pai descobrisse e pensasse que eu fosse louco.'' A infância foi para ele uma longa jornada noite adentro.
A aurora só viria bem mais tarde e outras perdas depois. ''Esse começo é a pedra filosofal da minha vida'', diz. ''Sou produto dessa perda. Quando se perde algo tão importante, você passa o resto da vida criando por causa dessa destruição. É como uma compensação. Quando era adolescente, percebi que tinha duas opções: ou me tornava uma pessoa mórbida ou tentava criar a partir da perda. Fui até o fundo do buraco para perceber que a resposta não estava lá. A resposta não estava em descobrir a vida depois da morte, mas a vida que estava acontecendo aqui e agora. Então me entendi.''
O cientista que virou pop está há mais de 1 bilhão de segundos de seu big bang particular. Aos 46 anos, transformar-se em vampiro foi a única façanha que Marcelo Gleiser não conseguiu. É o tipo que parece ter conquistado tudo. Tornar-se um cientista de expressão internacional já seria proeza suficiente para uma vida. Em 1994, Gleiser era exatamente isso. Pesquisador e professor de Física e Astronomia do Dartmouth College, uma das mais prestigiadas universidades americanas, suas descobertas sobre o cosmos foram premiadas pela Casa Branca.
FORMATURA
Aos 11 anos, recebendo o diploma da 5ª série das mãos do pai
Desde a primeira aula de seu curso em Dartmouth, batizado de Física para Poetas, Gleiser conseguiu arrebatar uma multidão de estudantes das áreas mais variadas. O cientista que nunca encontrou consolo na religião compartilhava com seus alunos - como hoje o faz com seus leitores - a descoberta com a qual dissipou suas trevas mais íntimas. ''A busca científica é uma entrega ao mistério maiúsculo, é essencialmente espiritual'', diz. ''Nessa procura, que você faz às cegas, apalpando o desconhecido, você está inventando o que significa ser você. Somos todos feitos de estrelas. Todo o carbono, o manganês, o cálcio que tem em seu corpo vieram de uma supernova que explodiu perto da nebulosa solar há 5 bilhões de anos. Quando você se coloca como um ser cósmico, a perda se transforma em algo mais aceitável porque é a lei do Universo. Quando você destrói alguma coisa, outra é criada.''
Gleiser criou muito. Dez anos depois do primeiro prêmio, um nada para o Universo, ele se expandiu. Tanto que se dá ao luxo de mudar de área, uma ousadia para poucos na Ciência: vai se dedicar à Astrobiologia - o estudo da vida na Terra e em outros planetas. Isso depois de escrever dois livros de divulgação científica e ganhar dois Jabutis - o principal troféu da literatura brasileira. Acabou de lançar o Micro Macro, coletânea de suas colunas na Folha de S.Paulo. Prepara-se para publicar o primeiro romance, 100 mil palavras sobre a vida de Johann Kepler (1571-1630), o medidor dos céus. Quem leu, diz que ele ficará mais famoso do que já é.
Ele vive numa casa na floresta. O rio passa quase na porta
A geografia de Gleiser não ficou circunscrita à literatura. Uma peça do grupo Arte Ciência, inspirada no primeiro best-seller (A Dança do Universo), estreou no Festival de Curitiba, fez temporada em Portugal e estará nos palcos de São Paulo em agosto. Em maio de 2006 vai estrear nos cinemas O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues. O roteiro foi escrito pelo cineasta com a colaboração do cientista. Conta a história de um astrofísico que volta ao Brasil - as coincidências, jura ele, acabam aí. No papel, José Wilker. ''Em meu filme anterior, Deus É Brasileiro, o Marcelo já tinha colaborado comigo, esclarecendo dúvidas científicas sobre a criação do mundo'', conta Diegues. ''Ele é um cientista moderno, preocupado com o homem no centro de sua ciência. Tem compaixão, imaginação e humor.'' Outro roteiro, em parceria com o americano David Glass, circula por Hollywood. Esse é um filme de ficção científica de US$ 130 milhões em que a Terra é ameaçada por tempestades solares, bem ao gosto cataclísmico dos americanos - com a diferença, sublinha Gleiser, que tem ''a Física correta''.

Com essa capacidade de propagação, esperava-se que, por uma espécie de lei física das compensações, Gleiser fosse corcunda. Ele é loiro, tem olhos azuis, 1,79 metro, 68 quilos. Mantém o físico de atleta: em 1975 foi campeão brasileiro de vôlei. Seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o técnico da seleção de ouro do vôlei masculino. ''Desde menino ele sempre foi tão lindo que tirava o fôlego das pessoas'', conta o irmão mais velho, Luiz Gleiser, diretor de núcleo da TV Globo. ''Por isso, está acostumado a ter sempre muita gente olhando para ele. Gosta de aparecer.''
PAIZÃO Gleiser, com a filha Tali, de 9 anos (à dir.), e uma amiguinha, em fevereiro
Diante da platéia, Gleiser discorre sobre buracos negros e supercordas de um jeito que todos entendem. Os fãs ficam fascinados, orbitam ao redor dele com idades e profissões as mais variadas - de office-boys a socialites. ''Nos livros dele parece que o Universo se abre'', resume a brasiliense Aline Guimarães, de 22 anos. Sem poder viajar para São Paulo no fim de junho para prestigiar a última aparição de Gleiser no Brasil, Aline despachou a tia para representá-la. ''Ele ajudou a encontrar meu caminho. Vou trocar a Psicologia pela Física. Como o Universo, estou em expansão!''
Gleiser vive hoje em Hanover, no Estado de New Hampshire. Sua casa se esparrama em uma floresta emoldurada por montanhas. O rio passa quase na porta. Semanas atrás ele cortava grama - tarefa que detesta - quando Jô Soares ligou querendo dirimir algumas dúvidas sobre a relatividade. Caetano Veloso é outro de seus fãs famosos: conta que se inspirou na obra de Gleiser para compor ''Livros''.
Dentro da paisagem de calendário, Gleiser faz alpinismo, passeia de caiaque e pesca trutas - mas as devolve vivas à agua, embora um tanto machucadas. ''Quando ele era pequeno, se equipava e saía todo compenetrado para pescar'', conta o irmão Luiz. ''Só pegava uns peixinhos. Ficava vendo o céu e cismando.'' Gleiser brinca que fica ''pensando no que a truta está pensando''. Pensa tanto na truta que atualmente estuda - seriamente - o que seria o cúmulo do politicamente correto: pincelar com iodo a garganta dos peixes para que não tenham uma infecção.
CENÁRIO PERFEITO
A vista de sua casa no meio da floresta, em Hanover.
Gleiser pode ganhar até US$ 10 mil por palestra, mas faz de graça para quem não pode pagar. Divide a mesa não só com astros da Ciência, mas também com superstars como a cantora Laurie Anderson. Entre seus mentores estão o médico e escritor cult Oliver Sacks, que costuma recebê-lo de chinelo e pijamas em seu apartamento de Nova York. ''Gleiser possui uma mente larga o suficiente para abarcar tanto os mitos primordiais da criação como os últimos avanços da cosmologia'', elogia Sacks. ''Seus livros são maravilhosos.''
Outro amigo é o prêmio Nobel de Química de 1981, Roald Hoffmann. ''Gleiser é a estrela mais brilhante de uma pequena constelação que consegue escrever numa língua que todos entendem'', derrama-se Hoffmann. ''O que faz com que se destaque é sua disposição de se engajar na condição humana. Ele nos conta não apenas sobre os engenhosos modos com que tentamos entender o mistério que nos cerca, mas também a nós mesmos.'' Hoffmann e Gleiser, aliás, desfilaram pela Unidos da Tijuca em 2004, vestidos de Santos Dumont. Gleiser não samba, mas assegura que se ''mexe'' bastante.
Viaja pelo mundo em cruzeiros de caçadores de eclipses. É trabalho
O cientista vive com a segunda mulher, Kari, uma bela psicóloga. Os três filhos do primeiro casamento, com uma agente imobiliária, são Andrew, de 16 anos, Eric, de 12, e Tali, de 9. Passam uma parte do tempo com a mãe, outra com o pai. Gleiser sente-se só. ''Quero voltar ao Brasil assim que minha filha caçula for à universidade'', conta. ''Sinto falta de sentar num bar com um amigo e largar a alma na mesa. Nos Estados Unidos convido as pessoas para ir lá em casa. Elas vão e parecem se divertir. Mas depois ninguém me chama. Fico pensando: será que fiz alguma coisa errada? Não quero envelhecer assim.''
Gleiser adora cozinhar, especialmente pratos tailandeses. E sabe tudo sobre vinhos. Os gostos cinematográficos passeiam de Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski a Steven Spielberg. Os literários viajam dos contos de Poe e da poesia de Fernando Pessoa aos contemporâneos José Saramago e Salman Rushdie. Prefere música erudita, em cujas sinfonias migrou de Mahler para Brahms, mudança que atribui a uma certa calmaria da maturidade.
FAMÍLIA
Com a mulher, Kari, e o filho Eric, de 12 anos
Com a matemática só se reconciliou na universidade, gostava mesmo era de tocar violão. Até hoje improvisa. Só não foi músico porque o pai, o dentista Izaac, garantiu que morreria de fome. ''Essa idéia de que existe ritmo em tudo na natureza já ressonava na minha cabeça de forma inconsciente. Uma certa dança das coisas.'' Para falar sobre a dança do Universo, Gleiser costuma embarcar em cruzeiros marítimos pelos mares do mundo em companhia de uma espécie singular de turistas: os caçadores de eclipses. Pagam em torno de US$ 1.500 para que ele esteja lá. Num deles foi de Zanzibar a Madagáscar, em outro navegou pelo Mar Negro. Aproveita para fazer mergulho. Para relaxar dessa vida, ele pratica ioga.
Esse Gleiser solar data do final da adolescência. Por volta dos 20 anos, ele decidiu se deitar no divã. Procurou um gigante, Hélio Pelegrino. O psicanalista escutou sua precoce trajetória de perdas e o despachou para a rua, dizendo mais ou menos o seguinte: ''Você não vai ganhar nada com a psicanálise. O mais importante na vida é a pró-cura. Você procura através da Ciência''. Os amigos de Gleiser ficaram revoltados: ''Pô, o cara te deu alta na entrevista!''.
Marcelo Gleiser procura até hoje.
Medindo a alma de Kepler
Marcelo Gleiser fala sobre seu primeiro romance, ainda inédito
Escrita primeiro em inglês, a biografia de Johann Kepler consumiu quase três anos da vida de Marcelo Gleiser. Será lançada pela Cia. das Letras em 2006. O título - Skybound - ainda não tem tradução em português.
Maurilo Clareto/ÉPOCA
ÉPOCA - Como foi escrever um romance?
Marcelo Gleiser -
Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Sou fascinado por Kepler, que criou a ciência dele como se fosse um apóstolo. Dizia que a geometria é a linguagem que criamos para entender a mente divina. Era um cara torturado, que só encontrava paz nas esferas. Sua mãe quase foi queimada como bruxa, ele viveu no tempo da Guerra dos 30 Anos entre católicos e protestantes. Esse livro é uma metáfora para os dias de hoje. É um espelho porque o mundo está novamente polarizado por guerras religiosas. Mas é mais do que isso, porque conto a partir de duas linhas temporais, a do próprio Kepler e a de seu mentor, Michael Mastlin. Ninguém o conhece. Esse é o lance. Esse livro é o Amadeus da Ciência.
ÉPOCA - Você se refere ao Amadeus de Peter Shaffer, transformado depois em filme por Milos Forman, sobre a relação entre Mozart e Antonio Salieri?
Gleiser -
A diferença é que o Salieri não era professor do Mozart, como o Mastlin era. O Mastlin se desesperava porque era um bom astrônomo, mas nunca faria o que o Kepler fez. O livro é também essa angústia da mediocridade, de você ser criativo o suficiente para perceber a genialidade do outro.
ÉPOCA - O que isso tem de você?
Gleiser -
Eu já me senti burro e gênio. Já tive alunos brilhantes e alunos burros. Já fui considerado brilhante e burro por meus professores. Esse tema é universal. O novo contra o velho. Dedico esse livro a meus mentores vivos e mortos.
ÉPOCA - O que é ficção e o que não é?
Gleiser -
Todos os fatos do livro aconteceram. É um romance biográfico. Segui os passos do Kepler por três semanas: Alemanha, Áustria, Praga. Sentei à mesa em que ele sentava, li o livro que ele estava lendo. Tenho a correspondência trocada entre Kepler e Mastlin. Li toneladas de coisas. Tentei encarnar a vida dele. Reescrevi três vezes.
ÉPOCA - Foi difícil?
Gleiser -
Nunca chorei escrevendo um livro de não-ficção. Neste chorei. É verdade o que os escritores falam, de que os personagens dominam a gente. Eles me puxavam pela mão. Estavam vivos dentro de mim. Então, quando passavam por um momento difícil ou catártico, eu chorava. Eu me deprimi muito quando o livro acabou. Entendi por que algumas mulheres se deprimem depois do parto. Na gravidez aquele filho é seu, está dentro de você. De repente sai e está lá fora, é uma outra pessoa. Eu me sinto assim.
ÉPOCA - Todo esse caminho, e agora esse romance, ajudou-o a lidar com a morte?
Gleiser -
Não. Tenho medo de morrer. Que eu saiba, é o fim.

O planeta Gleiser

O planeta Gleiser



Astrofísico, escritor, roteirista: uma viagem pelo universo íntimo do único cientista pop do Brasil

ELIANE BRUM

MARCELO GLEISER

Dados pessoais
Nasceu no Rio, tem 46 anos, três filhos. Vive nos Estados Unidos há 23 anos

Carreira
Professor de Física do Dartmouth College, nos EUA, publicou cinco livros, ganhou vários prêmios, entre eles dois Jabutis, o José Reis de Divulgação Científica e o Presidential Faculty Felows, da Casa Branca

Últimas realizações
Um romance sobre a vida do cientista Johann Kepler e dois roteiros de cinema



Fotos: arq. pessoal
O PEQUENO GLEISER
Caçula temporão, depois de dois garotos, os pais, Izaac e Haluza, torciam que fosse uma menina. Na foto, com 1 ano

Se houve um início, o dele foi a morte. Marcelo Gleiser perdeu a mãe, Haluza, aos 6 anos, em ''circunstâncias trágicas''. No escuro desde então, quis se tornar ''o primeiro judeu vampiro da História''. Com 10 anos, pegava um ônibus em Copacabana para se abrigar do sol carioca entre as largas paredes da Biblioteca Nacional. O pequeno Gleiser não conhecia outro atalho para a Transilvânia que não fosse o dos livros. A biblioteca era o castelo do menino. ''Queria entrar num plano em que minha mãe existisse.'' Dentro de uma mala preta, que escondia embaixo da cama, progredia sua primeira investigação científica: pilhas de anotações sobre Drácula e a imortalidade. ''Tinha medo de que meu pai descobrisse e pensasse que eu fosse louco.'' A infância foi para ele uma longa jornada noite adentro.

A aurora só viria bem mais tarde e outras perdas depois. ''Esse começo é a pedra filosofal da minha vida'', diz. ''Sou produto dessa perda. Quando se perde algo tão importante, você passa o resto da vida criando por causa dessa destruição. É como uma compensação. Quando era adolescente, percebi que tinha duas opções: ou me tornava uma pessoa mórbida ou tentava criar a partir da perda. Fui até o fundo do buraco para perceber que a resposta não estava lá. A resposta não estava em descobrir a vida depois da morte, mas a vida que estava acontecendo aqui e agora. Então me entendi.''

O cientista que virou pop está há mais de 1 bilhão de segundos de seu big bang particular. Aos 46 anos, transformar-se em vampiro foi a única façanha que Marcelo Gleiser não conseguiu. É o tipo que parece ter conquistado tudo. Tornar-se um cientista de expressão internacional já seria proeza suficiente para uma vida. Em 1994, Gleiser era exatamente isso. Pesquisador e professor de Física e Astronomia do Dartmouth College, uma das mais prestigiadas universidades americanas, suas descobertas sobre o cosmos foram premiadas pela Casa Branca.

FORMATURA
Aos 11 anos, recebendo o diploma da 5ª série das mãos do pai

Desde a primeira aula de seu curso em Dartmouth, batizado de Física para Poetas, Gleiser conseguiu arrebatar uma multidão de estudantes das áreas mais variadas. O cientista que nunca encontrou consolo na religião compartilhava com seus alunos - como hoje o faz com seus leitores - a descoberta com a qual dissipou suas trevas mais íntimas. ''A busca científica é uma entrega ao mistério maiúsculo, é essencialmente espiritual'', diz. ''Nessa procura, que você faz às cegas, apalpando o desconhecido, você está inventando o que significa ser você. Somos todos feitos de estrelas. Todo o carbono, o manganês, o cálcio que tem em seu corpo vieram de uma supernova que explodiu perto da nebulosa solar há 5 bilhões de anos. Quando você se coloca como um ser cósmico, a perda se transforma em algo mais aceitável porque é a lei do Universo. Quando você destrói alguma coisa, outra é criada.''

Gleiser criou muito. Dez anos depois do primeiro prêmio, um nada para o Universo, ele se expandiu. Tanto que se dá ao luxo de mudar de área, uma ousadia para poucos na Ciência: vai se dedicar à Astrobiologia - o estudo da vida na Terra e em outros planetas. Isso depois de escrever dois livros de divulgação científica e ganhar dois Jabutis - o principal troféu da literatura brasileira. Acabou de lançar o Micro Macro, coletânea de suas colunas na Folha de S.Paulo. Prepara-se para publicar o primeiro romance, 100 mil palavras sobre a vida de Johann Kepler (1571-1630), o medidor dos céus. Quem leu, diz que ele ficará mais famoso do que já é.


A geografia de Gleiser não ficou circunscrita à literatura. Uma peça do grupo Arte Ciência, inspirada no primeiro best-seller (A Dança do Universo), estreou no Festival de Curitiba, fez temporada em Portugal e estará nos palcos de São Paulo em agosto. Em maio de 2006 vai estrear nos cinemas O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues. O roteiro foi escrito pelo cineasta com a colaboração do cientista. Conta a história de um astrofísico que volta ao Brasil - as coincidências, jura ele, acabam aí. No papel, José Wilker. ''Em meu filme anterior, Deus É Brasileiro, o Marcelo já tinha colaborado comigo, esclarecendo dúvidas científicas sobre a criação do mundo'', conta Diegues. ''Ele é um cientista moderno, preocupado com o homem no centro de sua ciência. Tem compaixão, imaginação e humor.'' Outro roteiro, em parceria com o americano David Glass, circula por Hollywood. Esse é um filme de ficção científica de US$ 130 milhões em que a Terra é ameaçada por tempestades solares, bem ao gosto cataclísmico dos americanos - com a diferença, sublinha Gleiser, que tem ''a Física correta''.

Com essa capacidade de propagação, esperava-se que, por uma espécie de lei física das compensações, Gleiser fosse corcunda. Ele é loiro, tem olhos azuis, 1,79 metro, 68 quilos. Mantém o físico de atleta: em 1975 foi campeão brasileiro de vôlei. Seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o técnico da seleção de ouro do vôlei masculino. ''Desde menino ele sempre foi tão lindo que tirava o fôlego das pessoas'', conta o irmão mais velho, Luiz Gleiser, diretor de núcleo da TV Globo. ''Por isso, está acostumado a ter sempre muita gente olhando para ele. Gosta de aparecer.''

PAIZÃO Gleiser, com a filha Tali, de 9 anos (à dir.), e uma amiguinha, em fevereiro

Diante da platéia, Gleiser discorre sobre buracos negros e supercordas de um jeito que todos entendem. Os fãs ficam fascinados, orbitam ao redor dele com idades e profissões as mais variadas - de office-boys a socialites. ''Nos livros dele parece que o Universo se abre'', resume a brasiliense Aline Guimarães, de 22 anos. Sem poder viajar para São Paulo no fim de junho para prestigiar a última aparição de Gleiser no Brasil, Aline despachou a tia para representá-la. ''Ele ajudou a encontrar meu caminho. Vou trocar a Psicologia pela Física. Como o Universo, estou em expansão!''

Gleiser vive hoje em Hanover, no Estado de New Hampshire. Sua casa se esparrama em uma floresta emoldurada por montanhas. O rio passa quase na porta. Semanas atrás ele cortava grama - tarefa que detesta - quando Jô Soares ligou querendo dirimir algumas dúvidas sobre a relatividade. Caetano Veloso é outro de seus fãs famosos: conta que se inspirou na obra de Gleiser para compor ''Livros''.

Dentro da paisagem de calendário, Gleiser faz alpinismo, passeia de caiaque e pesca trutas - mas as devolve vivas à agua, embora um tanto machucadas. ''Quando ele era pequeno, se equipava e saía todo compenetrado para pescar'', conta o irmão Luiz. ''Só pegava uns peixinhos. Ficava vendo o céu e cismando.'' Gleiser brinca que fica ''pensando no que a truta está pensando''. Pensa tanto na truta que atualmente estuda - seriamente - o que seria o cúmulo do politicamente correto: pincelar com iodo a garganta dos peixes para que não tenham uma infecção.

CENÁRIO PERFEITO
A vista de sua casa no meio da floresta, em Hanover.

Gleiser pode ganhar até US$ 10 mil por palestra, mas faz de graça para quem não pode pagar. Divide a mesa não só com astros da Ciência, mas também com superstars como a cantora Laurie Anderson. Entre seus mentores estão o médico e escritor cult Oliver Sacks, que costuma recebê-lo de chinelo e pijamas em seu apartamento de Nova York. ''Gleiser possui uma mente larga o suficiente para abarcar tanto os mitos primordiais da criação como os últimos avanços da cosmologia'', elogia Sacks. ''Seus livros são maravilhosos.''

Outro amigo é o prêmio Nobel de Química de 1981, Roald Hoffmann. ''Gleiser é a estrela mais brilhante de uma pequena constelação que consegue escrever numa língua que todos entendem'', derrama-se Hoffmann. ''O que faz com que se destaque é sua disposição de se engajar na condição humana. Ele nos conta não apenas sobre os engenhosos modos com que tentamos entender o mistério que nos cerca, mas também a nós mesmos.'' Hoffmann e Gleiser, aliás, desfilaram pela Unidos da Tijuca em 2004, vestidos de Santos Dumont. Gleiser não samba, mas assegura que se ''mexe'' bastante.

Viaja pelo mundo em cruzeiros de caçadores de eclipses. É trabalho

O cientista vive com a segunda mulher, Kari, uma bela psicóloga. Os três filhos do primeiro casamento, com uma agente imobiliária, são Andrew, de 16 anos, Eric, de 12, e Tali, de 9. Passam uma parte do tempo com a mãe, outra com o pai. Gleiser sente-se só. ''Quero voltar ao Brasil assim que minha filha caçula for à universidade'', conta. ''Sinto falta de sentar num bar com um amigo e largar a alma na mesa. Nos Estados Unidos convido as pessoas para ir lá em casa. Elas vão e parecem se divertir. Mas depois ninguém me chama. Fico pensando: será que fiz alguma coisa errada? Não quero envelhecer assim.''

Gleiser adora cozinhar, especialmente pratos tailandeses. E sabe tudo sobre vinhos. Os gostos cinematográficos passeiam de Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski a Steven Spielberg. Os literários viajam dos contos de Poe e da poesia de Fernando Pessoa aos contemporâneos José Saramago e Salman Rushdie. Prefere música erudita, em cujas sinfonias migrou de Mahler para Brahms, mudança que atribui a uma certa calmaria da maturidade.

FAMÍLIA
Com a mulher, Kari, e o filho Eric, de 12 anos

Com a matemática só se reconciliou na universidade, gostava mesmo era de tocar violão. Até hoje improvisa. Só não foi músico porque o pai, o dentista Izaac, garantiu que morreria de fome. ''Essa idéia de que existe ritmo em tudo na natureza já ressonava na minha cabeça de forma inconsciente. Uma certa dança das coisas.'' Para falar sobre a dança do Universo, Gleiser costuma embarcar em cruzeiros marítimos pelos mares do mundo em companhia de uma espécie singular de turistas: os caçadores de eclipses. Pagam em torno de US$ 1.500 para que ele esteja lá. Num deles foi de Zanzibar a Madagáscar, em outro navegou pelo Mar Negro. Aproveita para fazer mergulho. Para relaxar dessa vida, ele pratica ioga.

Esse Gleiser solar data do final da adolescência. Por volta dos 20 anos, ele decidiu se deitar no divã. Procurou um gigante, Hélio Pelegrino. O psicanalista escutou sua precoce trajetória de perdas e o despachou para a rua, dizendo mais ou menos o seguinte: ''Você não vai ganhar nada com a psicanálise. O mais importante na vida é a pró-cura. Você procura através da Ciência''. Os amigos de Gleiser ficaram revoltados: ''Pô, o cara te deu alta na entrevista!''.

Marcelo Gleiser procura até hoje.




Medindo a alma de Kepler
Marcelo Gleiser fala sobre seu primeiro romance, ainda inédito

Escrita primeiro em inglês, a biografia de Johann Kepler consumiu quase três anos da vida de Marcelo Gleiser. Será lançada pela Cia. das Letras em 2006. O título - Skybound - ainda não tem tradução em português.

Maurilo Clareto/ÉPOCA

ÉPOCA - Como foi escrever um romance?
Marcelo Gleiser -
Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Sou fascinado por Kepler, que criou a ciência dele como se fosse um apóstolo. Dizia que a geometria é a linguagem que criamos para entender a mente divina. Era um cara torturado, que só encontrava paz nas esferas. Sua mãe quase foi queimada como bruxa, ele viveu no tempo da Guerra dos 30 Anos entre católicos e protestantes. Esse livro é uma metáfora para os dias de hoje. É um espelho porque o mundo está novamente polarizado por guerras religiosas. Mas é mais do que isso, porque conto a partir de duas linhas temporais, a do próprio Kepler e a de seu mentor, Michael Mastlin. Ninguém o conhece. Esse é o lance. Esse livro é o Amadeus da Ciência.

ÉPOCA - Você se refere ao Amadeus de Peter Shaffer, transformado depois em filme por Milos Forman, sobre a relação entre Mozart e Antonio Salieri?
Gleiser -
A diferença é que o Salieri não era professor do Mozart, como o Mastlin era. O Mastlin se desesperava porque era um bom astrônomo, mas nunca faria o que o Kepler fez. O livro é também essa angústia da mediocridade, de você ser criativo o suficiente para perceber a genialidade do outro.

ÉPOCA - O que isso tem de você?
Gleiser -
Eu já me senti burro e gênio. Já tive alunos brilhantes e alunos burros. Já fui considerado brilhante e burro por meus professores. Esse tema é universal. O novo contra o velho. Dedico esse livro a meus mentores vivos e mortos.

ÉPOCA - O que é ficção e o que não é?
Gleiser -
Todos os fatos do livro aconteceram. É um romance biográfico. Segui os passos do Kepler por três semanas: Alemanha, Áustria, Praga. Sentei à mesa em que ele sentava, li o livro que ele estava lendo. Tenho a correspondência trocada entre Kepler e Mastlin. Li toneladas de coisas. Tentei encarnar a vida dele. Reescrevi três vezes.

ÉPOCA - Foi difícil?
Gleiser -
Nunca chorei escrevendo um livro de não-ficção. Neste chorei. É verdade o que os escritores falam, de que os personagens dominam a gente. Eles me puxavam pela mão. Estavam vivos dentro de mim. Então, quando passavam por um momento difícil ou catártico, eu chorava. Eu me deprimi muito quando o livro acabou. Entendi por que algumas mulheres se deprimem depois do parto. Na gravidez aquele filho é seu, está dentro de você. De repente sai e está lá fora, é uma outra pessoa. Eu me sinto assim.

ÉPOCA - Todo esse caminho, e agora esse romance, ajudou-o a lidar com a morte?
Gleiser -
Não. Tenho medo de morrer. Que eu saiba, é o fim.

domingo, 17 de julho de 2005

A dança do magnetismo terrestre

Em suas notas autobiográficas, Einstein conta como ele ganhou uma bússola de presente de seu pai quando tinha cinco anos: "Ainda me lembro ou acredito que me lembro que essa experiência causou um profundo efeito sobre mim. Algo de fundamental tinha de estar escondido por trás das coisas". A bússola de Einstein, como qualquer outra, apontava para o norte, independentemente de onde estivesse: o metal da agulha tende a se alinhar com o campo magnético da Terra, que corre na direção norte-sul. Essa observação, tão óbvia quanto a volta do Sol a cada dia, que marinheiros e pássaros usam para se orientar em suas viagens, não tem nada de trivial.


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Os pólos magnéticos da Terra passam por inversões: de vez em quando, o que é norte vira sul, e vice-versa
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O fato de a Terra ser um gigantesco ímã se deve a uma confluência de fatores, que só agora começam a ser entendidos. Dentre as descobertas relativamente recentes, a mais chocante é a de que os pólos magnéticos da Terra -quase alinhados com seus pólos geográficos (daí a utilidade da bússola)- passam por inversões: de vez em quando, o que é norte vira sul, e vice-versa. A questão é quando será a próxima.

A última inversão de polaridade ocorreu há 780 mil anos, bem mais tempo do que a média de 250 mil anos. Por alguma razão, os intervalos entre elas vêm encolhendo nos últimos 120 milhões de anos. Sabemos disso porque cada inversão deixa uma assinatura nas rochas magnéticas, suscetíveis a mudanças de orientação do magnetismo terrestre quando aquecidas. Ao resfriarem, mantêm a nova orientação, reproduzindo no tempo a coreografia dos pólos magnéticos. Portanto, a próxima inversão está bem atrasada. Vivemos num período de relativa estabilidade que não durará para sempre. E os primeiros sinais estão já aparecendo.

Dados colhidos por satélites em 1980 e em 1999 mostram que ilhas de polaridade oposta no campo magnético terrestre estão crescendo. Imagine uma bola de futebol com o hemisfério sul pintado de azul e o norte de vermelho. As medidas indicam que dentro da região vermelha existem manchas azuis, e vice-versa, e que essas manchas aumentaram nos últimos 20 anos. A suspeita é que elas sejam os precursores da próxima inversão. O campo magnético terrestre se reduziu em 10% desde 1830.

O centro da Terra é uma esfera de metal líquido, principalmente ferro, com volume seis vezes maior que o da Lua inteira. Devido à enorme pressão exercida pela crosta e pelo manto, 2 milhões de vezes maior no centro do que na superfície, a temperatura lá chega a 5.000 C, comparável à superfície do Sol. Como em uma sopa, bolhas de metal mais quente e, portanto, menos denso, tendem a subir. Na subida, elas se resfriam e voltam a afundar. Esse processo, chamado de convecção, transporta calor do centro da Terra para a região entre o centro e o manto. O metal líquido conduz eletricidade. Quando adicionamos a rotação da Terra, temos uma esfera de metal líquido e borbulhante girando, essencialmente um gerador elétrico, ou dínamo. Em geradores comuns, o que gira são fios metálicos que transportam corrente. Desse movimento nasce um campo magnético que varia ao longo do tempo. A Terra é um gigantesco dínamo. Sua corrente muda ocasionalmente de direção, invertendo a polaridade de seu campo magnético.

Simulações em computadores e experimentos em laboratório têm ajudado no estudo das inversões. Um satélite internacional está tomando novas medidas. Mesmo assim, não podemos ainda prever quando a próxima irá ocorrer. No meio tempo, é bom ficar de olho nos pássaros e nas bússolas

domingo, 10 de julho de 2005

Impacto muito profundo

Às vezes, a realidade surpreende até as ficções mais ousadas. Em 1998, os cinemas foram invadidos por dois filmes, "Armageddon" e "Impacto Profundo", ambos contando como a Terra e seus habitantes foram salvos (por um triz, claro) de uma colisão catastrófica com um bólido vindo dos céus. No caso de "Armageddon", o bólido era um asteróide "do tamanho do Texas"; em "Impacto Profundo", era um cometa com dez quilômetros de diâmetro. As missões de salvamento eram semelhantes: ir ao encontro do bólido, pousar em sua superfície e plantar bombas nucleares em seu interior. No caso de "Impacto Profundo", a estratégia não funciona, e o cometa é divido em duas partes. A menor, com 2,5 quilômetros de diâmetro, cai sobre o Oceano Atlântico, causando uma verdadeira devastação. A maior só não cai porque a tripulação da nave resolve ir a seu encontro e detonar quatro bombas simultaneamente.

No dia 4 de julho, cientistas da Nasa praticamente imitaram o filme: orquestraram a colisão de um projétil do tamanho de uma máquina de lavar contra o cometa Tempel 1, viajando a 30.000 km/h, a 120 milhões de quilômetros da Terra. E, como bônus, tiveram o evento filmado e os dados coletados por uma nave-mãe que acompanhava-os a uma distância de 450 quilômetros. O objetivo da missão, chamada Deep Impact (impacto profundo), não era salvar a Terra, mas analisar a composição interior do cometa, ou seja, do que é feito.

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De agora em diante, sabemos que podemos nos defender, caso a ficção se torne realidade mais uma vez
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Cometas são objetos que circulam nas bordas do Sistema Solar, resquícios de sua origem ocorrida há 4,6 bilhões de anos. Pode-se até dizer que são uma espécie de lixo cósmico, detritos que não foram absorvidos quando Júpiter, Saturno, Urano e Netuno foram formados.

Portanto, o material que compõe cometas é o mesmo que existia quando os planetas nasceram. Ao estudá-los, estamos na verdade olhando para a infância do Sistema Solar e, portanto, da Terra. Isso se torna ainda mais importante devido ao fato de a Terra ter sido bombardeada intensamente por cometas durante seu primeiro bilhão de anos. Segundo teorias atuais, a água que temos aqui foi trazida por esses bólidos; o surgimento da vida só foi possível por causa deles.

Existem dois berçários de cometas. Um, chamado de cinturão de Kuiper, fica um pouco além da órbita de Netuno. O outro, a nuvem de Oort, fica bem mais afastado. Tal como planetas, cometas também giram em torno do Sol. De vez em quando, um deles tem sua órbita desestabilizada e viaja em direção ao coração do Sistema Solar. Caso sua rota coincida com a da Terra, um impacto é inevitável. Ou pelo menos era.

Ainda é cedo para relatar o que foi aprendido com a colisão, ao menos no que diz respeito à composição do cometa. Parece que ele contém água, que o seu interior é bem mais duro do que o seu exterior, provavelmente rochoso. O cometa parece ser totalmente negro e conter crateras, algo que não era previsto nesses objetos. Serão meses, anos, até que os dados sejam devidamente analisados. O que é imediatamente óbvio é que temos a tecnologia necessária para interceptar esses objetos celestes. E de modo ainda mais eficiente (mas não tão emocionante) que nos filmes, sem a intervenção direta de humanos. A missão foi controlada da Terra, desde o projeto inicial e lançamento até os 172 dias de viagem que precederam o impacto. Deixamos de ser apenas alvos de possíveis impactos cataclísmicos. De agora em diante, sabemos que podemos nos defender, caso a ficção se torne realidade mais uma vez.

domingo, 3 de julho de 2005

O paradoxo de Fermi (ou onde estão os extraterrestres?)

Enrico Fermi foi um dos grandes físicos do século 20 e da história. Além de descobrir uma das propriedades mais importantes da matéria (a de que partículas como elétrons, prótons e nêutrons, quando sujeitas a alta pressão, exercem uma força repulsiva que explica a condutividade térmica de metais e a estabilidade de estrelas de nêutrons), foi o pioneiro do estudo de reação nuclear em cadeia, importante para bombas atômicas e reatores nucleares. Além de sua legendária rapidez de cálculo e habilidade em estimar respostas para perguntas aparentemente absurdas ("Quantos afinadores de piano moram em São Paulo?", por exemplo), Fermi gostava de criar paradoxos.


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A evidência de que dispomos diz que estamos sozinhos
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No verão de 1950, ele estava em Los Alamos, onde a bomba nuclear americana foi desenvolvida. A revista "New Yorker" tinha publicado uma charge com um ET roubando todas as latas de lixo de Nova York, aparentemente explicando o seu misterioso sumiço. Durante o almoço, Fermi comentou o assunto. De repente, no meio da conversa, ele exclamou: "Cadê todo mundo?". Seus colegas sabiam que Fermi falava dos ETs. Mesmo que ninguém tenha publicado o que foi dito, podemos estimar o teor da discussão.

Nossa galáxia tem 100 mil anos-luz de diâmetro e uma idade aproximada de 10 bilhões de anos. Vamos supor que a vida só é possível em planetas como a Terra, girando em torno de estrelas como o Sol. Foram necessários 5 bilhões de anos para que a vida inteligente se desenvolvesse aqui na Terra, metade da idade da galáxia, a segunda metade. É razoável supor que estrelas como o Sol tenham surgido também durante os cinco primeiros bilhões de anos de existência da galáxia. Portanto, deveria haver várias civilizações inteligentes, muito mais antigas que a nossa, talvez bilhões de anos mais antigas. Supondo que existam, imaginemos uma "apenas" 1 bilhão de anos mais velha. Se os ETs fossem capazes de viajar à 1/10 da velocidade da luz, em 1 bilhão de anos já poderiam ter atravessado a galáxia mil vezes. Ou seja, essa civilização já poderia ter colonizado a galáxia inteira. Cadê todo mundo? Esse é o paradoxo de Fermi.

Inúmeras soluções foram propostas ao longo dos anos. Não tendo espaço para discuti-las em detalhe (o leitor pode consultar o livro de Stephen Webb, "Where is Everybody?") , menciono os três tipos de solução.

1) "Eles estão aqui". A mais popular para os que acreditam em objetos voadores não-identificados e em intrigas secretas, especialmente as atribuídas ao governo americano. Infelizmente, não existem provas convincentes. Uma idéia curiosa é a de que vivemos em uma zona de proteção criada por ETs. "Eles" não querem que saibamos de sua existência. Esse cenário, embora interessante, não pode ser testado.

2) "Eles existem, mas ainda não se comunicaram conosco". Ou porque os sinais ainda não chegaram, ou porque ainda não somos capazes de decodificá-los, ou porque os alienígenas não querem se comunicar.

3) "Eles não existem". Planetas rochosos com água são raros, a vida é rara e a vida inteligente mais ainda, especialmente no mesmo nível mental e tecnológico alcançado por nós.

A evidência de que dispomos aponta em uma direção: estamos sozinhos. Felizmente, ainda não podemos concluir nada com base nisso. A situação pode mudar a qualquer momento, com um sinal de rádio, uma visita com provas. Mas, se estamos sozinhos, temos a responsabilidade de preservar nosso planeta e a vida nele. Até estarmos prontos para colonizar a galáxia.