domingo, 30 de dezembro de 2012

Celebrando nosso pião celeste


Como o eixo de rotação está mudando lentamente, giram também os céus, e as estrelas mudam de posição

Enquanto o Brasil passa pelos dias mais longos do ano, próximos ao solstício de verão, aqui no norte dos EUA passamos pelo exato oposto, os dias mais curtos, com noites que duram 15 horas, muita neve e frio. A Terra é um planeta de extremos, e nós, que nos espalhamos por ela, experimentamos isso tudo.

Hoje, em torno da minha casa, está tudo nevado, com as árvores nuas, lenha queimando na lareira, o famoso Natal branco que, inexplicavelmente, tentamos copiar no Brasil. Em vez de renas, o trenó do Papai Noel brasileiro tinha de ser puxado por tucanos e araras.

Essa diversidade climática vem essencialmente da inclinação do eixo de rotação da Terra em 23,5º. A Terra é um pião celeste, girando em torno de si mesmo, meio que caindo, descrevendo uma leve elipse em torno do Sol.

Se enxergássemos o Sistema Solar de longe, ele pareceria um disco plano, com o Sol no centro (ou quase) e os planetas a circundá-lo. A inclinação da Terra é em relação a esse plano, chamado de plano da eclíptica. A maioria absoluta das pessoas acha que o calor do verão e o frio do inverno vêm da distância entre a Terra e o Sol: inverno, mais frio, Terra mais distante; verão, o oposto. Poucos sabem que as estações são consequência da inclinação da Terra.

Dizemos que a Terra tem um movimento de precessão, o mesmo de um pião caindo. No caso da Terra, isso se deve a ela não ser uma esfera perfeita, sendo um pouco achatada nos polos e estufada no Equador. A força gravitacional combinada da Lua e do Sol age sobre o Equador, criando um torque que tenta alinhar o eixo de rotação da Terra com o plano da eclíptica, tentando fazer a Terra "cair".

Mas não se preocupem, a Terra não vai cair. (Se bem que Urano gira quase deitado, provavelmente devido a uma enorme colisão durante o período de formação do Sistema Solar, 4,6 bilhões de anos atrás.)
Esse movimento, a precessão dos equinócios, tem um período de aproximadamente 26 mil anos, ou um grau a cada 72 anos (para completar o círculo de 360º).

Como o eixo de rotação da Terra está mudando lentamente de posição, giram também os céus. Mais precisamente, as estrelas vão aos poucos mudando de posição. Por exemplo, agora o eixo de rotação terrestre está a um grau da estrela Polaris, no norte. Isso significa que uma foto de exposição longa mostrará o céu girando em torno de um ponto ao norte, pertinho dessa estrela. Em 13 mil anos, Polaris vai estar do lado oposto do eixo.

Foi neste ano que a sonda espacial Voyager 1, cuja missão começou em setembro de 1977, passou dos limites do Sistema Solar, a primeira nave humana a conseguir tal feito.

Viajando a 61 mil km/h, ela se destina ao espaço interestelar, o deserto escuro entre as estrelas. A uma distância atual do Sol 121 vezes maior do que a Terra, nosso planeta já é quase invisível para as suas câmeras, um pálido ponto azul, como disse Carl Sagan, onde tudo o que criamos, toda a nossa história, encontra-se em meio ao nada.

Entre os festejos de mais uma mudança de calendário, por que não parar durante dez segundos e festejar nossa casa celeste, este pálido pião azul, exuberante e vivo em meio a tanta escuridão e frio?

domingo, 23 de dezembro de 2012

Reflexões sobre o bem e o mal


 Tão importante quanto o orgulho pelo que se realiza é a humildade de ver o quanto ainda está inacabado 

 O mundo não acabou e estamos aqui, vésperas de mais um Natal. Foi um ano importante para a física e a cosmologia. O tão procurado bóson de Higgs foi encontrado, se bem que não sabemos ainda que bóson é ele. Existem dúvidas que só mais dados podem sanar.

 Seja o Higgs esperado ou um seu primo, vejo isso como um assunto a ser celebrado por toda a humanidade. Não porque a descoberta vá mudar a vida de muita gente, ou porque uma nova tecnologia que resolverá os problemas mundiais de fome e energia vira daí.

 O Higgs representa o triunfo de nossa imaginação e empreendimento, o casamento entre criatividade e engenhosidade que representa o que há de melhor em nossa espécie.

 Pense que a ideia de uma tal partícula veio do cérebro de um punhado de físicos trabalhando na Europa e nos EUA em meados dos anos 1960, quando o Brasil entrava pelo longo túnel da ditatura militar.

 Mas, em ciência, uma ideia só ganha aceitação quando é verificada por experimentos. Isso deveria ser óbvio, já que o objetivo principal da ciência é explicar (ou pelo menos descrever) como funciona o mundo que vemos e medimos.

 Passaram-se quase cinco décadas até que a tal partícula, ou algo como ela, fosse encontrada, num esforço que envolveu milhares de cientistas e engenheiros e que custou bilhões de dólares.

 Esse tipo de empreendimento, caro e envolvendo tanta gente empenhada em um atingir um objetivo comum, não deixa de ter semelhanças com as construções das grandes obras da humanidade, de Stonehenge e das pirâmides egípcias às catedrais medievais e ao Telescópio Espacial Hubble.

 Provamos, a cada vez que obtemos sucesso, que somos mesmo uma espécie única, capaz de grandes feitos quando trabalhamos juntos, seja por livre e espontânea vontade, como no Grande Colisor de Hádrons, a máquina construída na Suíça onde foi descoberto o Higgs, e até sob condições violentas, como ocorria no antigo Egito.

 A cada obra concluída o espírito humano se renova, orgulhoso com o que fez. Mas tão importante quanto esse orgulho é a humildade de ver o quanto ainda não foi feito, o quanto ainda continua inacabado ou incompreendido.

 Se um dos objetivos da ciência é aliviar o sofrimento humano, seria inocente acreditar que tal objetivo será um dia alcançado. Livrar-nos das iniquidades sociais não seria suficiente, mesmo se possível.

 Temos a Natureza, com sua força indomável, sempre a nos pegar de surpresa, como no caso do furacão Sandy aqui nos EUA neste ano, provavelmente uma indicação do tipo de clima extremo que está por vir. Exemplos no Brasil não faltam. Temos também a natureza humana, encalhada numa luta perene entre o bem e o mal, como vemos nas ações tão belas de uns e nas horripilantes de outros.

 Dentro dessa constante polaridade que é nossa existência, o que de melhor podemos fazer, acho eu, é afirmar nossa convicção de que podemos melhorar, de que novas belas obras estão sendo construídas, e não só as de grande porte. Do esforço de cada um vem a esperança de que o bem, mesmo se inevitável contraparte do mal, tem ao menos a chance de superá-lo.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Medo do fim

Como pessoas inteligentes creem numa besteira dessas, após centenas de profecias apocalípticas na história?

 SEGUNDO AS profecias que andam aterrorizando uma boa fração da população mundial, esta será minha última coluna. Sexta-feira, dia 21, o mundo acaba. Venho recebendo dezenas de mensagens de pessoas visivelmente preocupadas, achando que desta vez é pra valer, que não temos como escapar. Leitores, podem se acalmar. Garanto que sexta-feira, dia 21, será apenas mais um solstício de verão, o dia mais longo do ano.

No sábado de manhã, você estará tomando seu café tranquilamente, com um sorriso nos lábios, convencido de que essa história de profecia de fim de mundo é mesmo uma bobagem. Tudo será devidamente esquecido e a vida continuará como antes. Pelo menos, até a próxima profecia. No caso dessa, o calendário maia recomeça a cada 13 "baktuns", e cada ciclo tem 5.126 anos.

O calendário maia foi iniciado no dia 13 de agosto de 3114 a.C. É apenas o fim de um ciclo e o começo de outro, típico de culturas que acreditam num tempo circular, ao oposto da nossa, na qual o tempo é linear, com apenas um começo e um fim. Nenhum tablete de barro ou papiro misterioso prevê o fim do mundo. Ao contrário, os pouquíssimos documentos que sobreviveram à dilapidação tropical e ao fanatismo dos padres espanhóis, que queimaram tudo o que encontraram, não oferecem qualquer indicação de fim de mundo. O mesmo ocorre com a ciência.

Várias causas foram oferecidas para provocar o fim: a reversão dos polos magnéticos da Terra, a colisão com um asteroide, instabilidade solar, o planeta Nibiru, alinhamento galáctico etc. A Nasa preparou respostas para todas essas "ameaças" em seu portal e em um vídeo. (Se você entende inglês, eis o link do video: http://www.youtube.com/watch?v=QY_Gc1bF8ds) A história do planeta Nibiru, por exemplo, foi inventada pela médium americana Nancy Lieder, que diz ter um implante na cabeça que permite a ela se comunicar com alienígenas do sistema planetário Zeta Reticuli, a 39 anos-luz de distância.

 Como milhões de pessoas inteligentes acreditam numa besteira dessas e se esquecem de que o mundo ainda não acabou, mesmo após centenas de profecias apocalípticas no decorrer da história? Entre outras coisas, o medo do fim do mundo reflete nosso medo de perder o controle da vida, do nosso destino. Reflete o medo ancestral, encravado em nossa memória coletiva e reconfirmado todos os anos em dezenas de desastres cataclísmicos, de que a natureza é muito mais poderosa do que nós e tem o poder de nos aniquilar a qualquer instante.

 Se nos séculos passados o fim do mundo refletia a ira divina ou a chegada da ressurreição, hoje, com os avanços da ciência, as causas são fenômenos cósmicos devastadores. Mas, como explico em meu livro "O Fim da Terra e do Céu", a simbologia é sempre a mesma: o fim vindo dos céus, sem que possamos nos defender, vítimas de nossos pecados ou de nossa fragilidade.

 Mas não precisa ser assim. Temos um poder enorme para nos defender de medos ancestrais e infundados: a razão. Nossa compreensão da natureza não nos traz apenas celulares e DVDs mas também a certeza de que o conhecimento é a melhor forma de liberdade.

domingo, 9 de dezembro de 2012

A frágil Esfera Azul

Imagem clássica da Terra vista do espaço marcou transição entre exploração cósmica tripulada e robótica a Sexta-feira passada, dia 7, foi o aniversário de 40 anos de uma foto histórica da Terra inteira, vista pela tripulação da Apollo 17.

A foto, tirada de uma distância de 45 mil quilômetros, mostra o planeta em "fase cheia", isto é, com o Sol iluminando-o por trás da Lua, no arranjo Sol-Lua-Terra; para vermos a Lua cheia, o arranjo é invertido: Sol-Terra-Lua. Vemos a África, parte da Antártida e muitas nuvens. Foi a última vez que humanos pisaram num mundo que não o nosso, a sexta missão Apollo a conseguir tal feito. A foto, uma das mais reproduzidas da história, marca um momento de transição: por um lado, a percepção de nosso planeta como uma frágil esfera flutuando na vastidão cósmica deu grande força ao movimento ecológico nos anos 1970.

 Por outro, a própria exploração do espaço também se transformou, já que tripulações humanas ficaram restritas a órbitas "baixas", isto é, próximas da órbita da Terra. Esse é o caso da Estação Espacial Internacional, por exemplo. Outros mundos, como Marte e os outros planetas e luas do Sistema Solar, passaram a ser explorados por máquinas, devido a avanços de tecnologia em robótica e computação. Estendemos nosso alcance ao espaço e aprendemos muito, mesmo que perdendo um pouco do lado heroico que sempre marca viagens ao desconhecido.

 No início deste ano, comemorando os 40 anos da foto histórica, a Nasa lançou uma nova versão da Esfera Azul -compilada remotamente pelo satélite meteorológico Suomi NPP, no dia 4 de janeiro. Desta vez, foi uma máquina, e não os olhos humanos, que controlou a câmera. E são muitas fotos retratando a Terra em hemisférios e ângulos diferentes. Na primeira semana desde seu lançamento no portal Flickr, a imagem -chamada de "Esfera Azul 2012" (a tradução literal é Bola de Gude Azul, mas fica horrível em português), foi vista por mais de 3 milhões de visitantes.

 Do ponto de vista econômico, não há dúvida de que enviar robôs a Marte ou pelas vizinhanças de Saturno é bem mais barato e "safo". Do ponto de vista científico, que não pode ser separado da questão econômica -missões muito caras são, obviamente, muito mais raras-, o ganho tem sido enorme. É o que vemos com a incrível sonda Opportunity, que continua explorando a superfície marciana desde 2004, mesmo que projetada para fazê-lo por apenas 90 dias; e mais recentemente com sua "prima" maior, o jipe-robô Curiosity.

 Segundo a Nasa, o Curiosity acaba de completar sua primeira análise da composição química do solo marciano, encontrando uma rica variedade de compostos, incluindo alguns com carbono. Mas nenhum sinal de vida; não se sabe se esse carbono é nativo de Marte ou se veio de meteoritos ou cometas. Apesar dos avanços, nada se compara à presença humana; o que a sonda faz, com grande lentidão, humanos poderiam fazer rapidamente.

Se quisermos manter vivo o espírito da exploração, temos de continuar enviando humanos a outros mundos. Talvez a solução esteja em colaborações internacionais ou na iniciativa privada. Mesmo com sérios riscos, tenho certeza de que não faltariam candidatos. Grandes exploradores querem voltar, mas sabem que nem sempre voltam.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Recriando o Universo



Como simular o passado num acelerador? Basta lembrar da infância quente e densa do nosso Universo
A cosmologia apresenta um problema de ordem prática um tanto complicado: fica difícil fazer experiências com outros universos no laboratório. Temos o nosso único exemplo e basta. O jeito é estudar as suas propriedades -os tipos de matéria que existem nele, a sua temperatura, o seu tamanho, a sua história- e tentar criar explicações plausíveis que as justifiquem.

Alguns físicos chegaram até a especular se seria possível criar um miniuniverso no laboratório. Infelizmente, isso não parece viável.

Universos como o nosso, que têm um momento de origem, carregam com eles a marca do seu passado no que chamamos de "singularidade", em que o tempo começa (o t=0 do relógio cósmico) e o espaço é um ponto de volume zero.

O problema é que, como as leis da física deixam de fazer sentido na singularidade, não sabemos como lidar com ela. Temos de nos contentar com o nosso único Cosmo, estudando-o da melhor forma possível.

Existem duas formas de estudar as propriedades do Universo: recolhendo informação diretamente, pela observação dos objetos que podemos detectar (estrelas, galáxias, buracos negros), e simulando tais propriedades no laboratório.

Não podemos criar universos na bancada, mas podemos recriar partes da história cósmica. Esses "laboratórios" são de dois tipos: colisores de partículas, como o europeu LHC (Grande Colisor de Hádrons), na Suíça, onde foi descoberto o bóson de Higgs em julho, e simulações em computadores.

Como simular o passado cósmico num acelerador de partículas? Basta lembrar que, segundo o modelo do Big Bang, nosso Universo teve uma infância muito quente e densa, em que a matéria que hoje constitui galáxias, planetas e pessoas estava ainda separada em seus componentes mais fundamentais: elétrons e quarks. (Quarks são os integrantes dos prótons e nêutrons.)

Isso porque as ligações entre as partículas de matéria só ocorrem quando não existem forças capazes de separá-las. No passado cósmico, o calor era tão intenso, e a densidade de partículas tão grande (feito um trem da Central do Brasil no final da tarde), que era impossível, que quarks se juntassem para formar um próton, ou que prótons e elétrons se juntassem para formar um átomo de hidrogênio.

Prótons só se formam em torno de um milionésimo de segundo após o "bang", enquanto átomos só se formam 400 mil anos após o "bang".

Quando cientistas do LHC colidem prótons contra prótons (ou átomos) viajando perto da velocidade da luz, as energias das colisões são tão intensas que reproduzem, por frações de segundo, condições semelhantes às que existiam quando o Cosmo tinha apenas milionésimos de segundo de existência.

Com isso, os físicos viajam ao passado e estudam a infância cósmica de forma controlada. Resultados recentes mostram que algumas partículas que escapam da região da colisão viajando em sentidos opostos mantêm uma estranha ligação entre si: fazem caminhos iguais, como se uma soubesse da outra.

Esse efeito, talvez o emaranhamento da física atômica, não havia sido visto ainda nas colisões de partículas. Ao estudarmos a Natureza com novas ferramentas, o inusitado parece ser inevitável.

sábado, 24 de novembro de 2012

Astroteologia: breve introdução


 Vivemos numa época peculiar, na qual o que antes era província da religião faz parte da ciência 

 Nós, humanos, somos seres limitados. Criativos e inovadores, conseguimos ampliar em muito a nossa compreensão do mundo por meio da aplicação diligente da razão e, complementarmente, das artes.

 Isso porque, se a ciência e as artes têm algo em comum, é justamente a tentativa de estender nossa visão de mundo, de ampliar as fronteiras do conhecimento, revelando aspectos inusitados do real. Um teorema e um poema são reflexões do possível, seja o concreto ou o onírico. A imaginação lança mão de todos os recursos à sua disposição para dar sentido à existência.

 Talvez seja por isso que o teólogo americano Reinhold Niebuhr escreveu que "o homem é o seu maior problema". Nossas filosofias, ciências e religiões são tentativas de compreender a existência apesar de nossa miopia, isto é, de nossas limitações sobre o que vemos e entendemos.

 Nessa busca, não é coincidência que a crença religiosa funcione como uma bússola para tantas pessoas. Como explicar a origem do Universo? Ou da vida? Ou por que temos uma mente capaz de refletir sobre essas questões complexas?

 Tais questões são, hoje, parte da pesquisa científica de ponta. Vivemos numa época peculiar, em que o que antes era província exclusiva da religião faz parte do discurso rotineiro da ciência. Porém, por não termos ainda respostas, essas questões continuam nos assombrando.

 Talvez um dos dilemas da humanidade seja a angústia de poder contemplar o divino sem sê-lo. Temos a capacidade de imaginar a perfeição, a ausência de dor, a imortalidade; mas, tirando a ficção e a fé, não temos como transcender nossa realidade carnal, os limites temporais e espaciais. Ou será que temos?

 Considerando que a ciência moderna tem apenas quatro séculos (marcando seu início com Kepler e Galileu), e percebendo o quanto já fizemos em tão curto prazo, imagine o que nos espera em mil anos?

 Ou 10 mil anos, se, claro, não nos destruirmos antes disso. A ciência nos permite já uma manipulação dos genes de criaturas, a ponto de podermos modificar o que comemos e mesmo alcançar curas diversas.

 Extrapolando a expansão tecnológica para o futuro, alguns afirmam que, em algumas décadas, chegaremos a um ponto em que nossa hibridização com máquinas será tão profunda que não poderemos mais nos dissociar delas. Caso essas previsões se concretizem -e, a meu ver, já estão ocorrendo-, seremos, como escrevi aqui recentemente, uma nova espécie, além do humano.

 Agora imagine que, tal como nós, outras criaturas inteligentes em algum canto da galáxia descobriram a ciência. Só que o fizeram, digamos, 1 milhão de anos antes de nós, o que em termos cósmicos não é nada.

 Essas criaturas teriam se transformado completamente ao se hibridizar com máquinas. Seriam, talvez, apenas informação, existindo em campos energéticos no espaço.

 Teriam o poder de criar vida, escolhendo suas propriedades. Poderiam, por exemplo, ter nos criado, ou a alguns de nossos antepassados, como parte de um experimento. Poderiam, por exemplo, estar nos observando, como nós observamos animais no zoológico ou no laboratório. Essas entidades imateriais, mas existentes, seriam nossos criadores. Seriam eles deuses, mesmo se não sobrenaturais?

domingo, 18 de novembro de 2012

Sonhos de supersimetria


 É difícil dizer quando uma hipótese propondo um novo fenômeno deve ser descartada pelos cientistas 

 Quando os cientistas aceitam que uma hipótese está errada? Em princípio, a coisa é simples: formula-se uma hipótese para explicar um fenômeno já conhecido ou propor a existência de algo novo. Experimentos são montados com o intuito de verificar a hipótese. Caso o fenômeno já seja conhecido, a hipótese é comparada com hipóteses rivais. A que for mais simples e explicar melhor o que foi observado é escolhida.

 A partir daí, ela fica sendo a explicação aceita até que novos fenômenos venham contradizê-la. O segundo caso, hipóteses científicas que propõem novos fenômenos, é bem mais complicado.

 A complicação vem de como as hipóteses são construídas. Em geral, especialmente na física e na astronomia, hipóteses são baseadas em modelos matemáticos, descrições aproximadas de como a Natureza opera. Todo modelo é uma aproximação, ou seja, nenhum é réplica perfeita do real. Consequentemente, nenhum modelo é completo.

 Por exemplo, na física de partículas, que estuda os menores componentes da matéria, tudo o que conhecemos se resume ao Modelo Padrão, que explica as partículas descobertas até agora e as quatro forças com que interagem entre si.

 Sua estrutura é relativamente simples: 12 partículas de matéria arranjadas em três "famílias". A mais conhecida descreve a matéria da qual somos compostos (elétrons, prótons e nêutrons). As duas outras descrevem partículas que surgem em experimentos de altíssimas energias, como os do LHC, famoso pela descoberta do bóson de Higgs.

 Mas, como todo modelo é incompleto, existem lacunas no Modelo Padrão. Para preenchê-las, físicos propõem extensões do Modelo Padrão, novos modelos com mais partículas. O teste dessas hipóteses é sempre descobrir as novas partículas propostas pelos modelos.

 Deles, o mais famoso é o que invoca uma nova simetria da natureza, a supersimetria. Essa simetria dobraria o número de partículas que existem na Natureza.

 Se a supersimetria existe, deveríamos encontrar um monte de novas partículas. Isso parece ruim, mas a ideia é que a supersimetria explicaria vários problemas que existem no Modelo Padrão, os quais não temos espaço para abordar. (Trato disso em meu livro "Criação Imperfeita".)

 A supersimetria também pode resolver um enigma cósmico, a existência da matéria escura, que afeta a rotação das galáxias.

 Por causa disso, físicos no LHC e em outros experimentos vem buscando partículas previstas por teorias supersimétricas. Até o momento, nada. Recentemente, um raro decaimento ("decomposição") de uma partícula conhecida como méson B criou mais problemas para a supersimetria, que prevê que o decaimento seja muito mais comum do que é.

 Por que a supersimetria não é abandonada? A complicação é que modelos matemáticos dependem de parâmetros que podem ser ajustados (massa das partículas, por exemplo), de modo que suas previsões escapem dos instrumentos de detecção: a teoria pode se esconder, em princípio indefinidamente.

 E que critério, então, é usado para descartar uma hipótese que não está funcionando? Não existe uma resposta clara. Apenas a humildade de aceitar o erro e propor o novo, mesmo que menos elegante.

domingo, 11 de novembro de 2012

Quem seremos no futuro?


 Segundo visionário, em 2020 computadores serão poderosos o suficiente para simular o cérebro humano 

 Acabo de assistir a uma palestra do inventor e futurista Ray Kurzweil, que está passando uns dias na minha universidade nos EUA. Kurzweil ficou famoso por suas várias invenções, desde sintetizadores que podem simular sons de piano e outros instrumentos até um software para cegos que transforma texto em voz.

 Escreveu vários best-sellers, nos quais explora como o avanço exponencial da tecnologia transformará profundamente a sociedade, redefinindo não só o futuro mas a própria noção do que significa ser humano. Segundo Kurzweil a revolução não só já começou como avança rapidamente em direção a um ponto final, "a Singularidade", quando máquinas e seres humanos formarão uma aliança que poderá nos tornar seres super-humanos. Ele prevê que chegaremos lá em 2045.

 Segundo Kurzweil, em 2020 computadores serão poderosos o suficiente para simular o cérebro humano. Baseando seus argumentos numa lei empírica chamada "Lei dos Retornos Acelerados", ele afirma que em 25 anos o progresso da internet e a velocidade de processamento de dados criarão tecnologias bilhões de vezes mais poderosas do que as que temos hoje.

 Por exemplo, os computadores da década de 1970 eram 1 milhão de vezes mais caros e mil vezes menos eficientes do que o que temos hoje em nossos celulares, totalizando um aumento de bilhões de vezes em eficiência de computação por real.

 Ele prevê que em 2029 teremos entendido o funcionamento do cérebro humano, ao menos o suficiente para simular seu funcionamento em computadores que, a essa altura, serão bem mais poderosos do que nossos cérebros.

 A singularidade, no caso da física dos buracos negros, da qual Kurzweil tomou sua inspiração, é um ponto além do qual não sabemos o que pode ocorrer. É onde as leis que usamos para descrever as propriedades da matéria, do espaço e do tempo deixam de fazer sentido. Isso não significa que seja impossível compreender a singularidade, mas apenas que não temos as ferramentas teóricas para fazê-lo.

 Já no caso da inteligência artificial, fica bem mais difícil prever o que poderá ocorrer. Toda tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal. Se, como Kurzweil, somos otimistas e vemos que a humanidade, em média, tem se beneficiado com o avanço tecnológico (vivemos mais e matamos melhor, mas matamos menos), a singularidade trará uma nova era na evolução da inteligência, na qual o corpo será supérfluo: o que importará será a informação que nos define.

 Afinal, somos matéria arranjada segundo um plano, e esse plano é uma sequência de instruções, ou seja, um programa.

 Se pudermos armazenar essas instruções, em princípio podemos recriá-las em qualquer máquina, como numa realidade virtual superavançada. Imagine um personagem do videogame Sims que é tão sofisticado que se considera vivo. Seremos ele. A realidade, tal qual a percebemos, pode ser simulada; basta mais informação, mais detalhes, mais velocidade de processamento.

 Se é esse o nosso futuro, é bom começarmos a pensar nas suas várias consequências. E nos certificar de que nossa informação terá um backup que não falhará nem poderá ser destruído por forças malignas.

domingo, 4 de novembro de 2012

A morte do Nada


Desde o início, a filosofia pergunta se existe espaço vazio no Universo; agora, o Nada bateu as botas

É com grande pesar que vos informo da morte do Nada. Pois é, caro leitor, após mais de dois milênios de ambiguidades e confusões, parece que desta vez o Nada bateu mesmo as botas. São coisas que temos de aceitar em vista da evidência extremamente convincente vinda tanto da física das partículas elementares -que visa explicar a composição mais fundamental da matéria- como da astronomia. Comecemos com as partículas.

A questão da composição material do mundo é tão velha quanto a filosofia; foi Tales, o primeiro dos filósofos gregos, que perguntou: "Do que o mundo é feito?".

Desde então, a discussão girou em torno da questão do vazio ou, menos precisamente, do Nada: existe o espaço vazio, destituído de qualquer tipo de matéria ou substância? Ou será que algo o preenche, como o ar preenche nossa atmosfera?

Um tremendo vaivém se deu com o passar dos séculos, tema que volta e meia tratamos aqui neste espaço. Os atomistas gregos supuseram que existiam apenas átomos se movendo no vazio, enquanto que Aristóteles considerava a hipótese do vazio absurda: preencheu o Cosmo com uma quinta-essência, o éter que compunha os objetos celestes e, de forma difusa, enchia o espaço, tornando-o pleno.

Depois, veio Descartes com seus vórtices de uma substância fluida que enchia o universo, tese desmentida de forma muito lúcida por Newton no final do século 17. Atomista também ele, o mestre inglês provou claramente que, se alguma substância preenchesse o espaço, causaria fricção nas órbitas planetárias e o Sistema Solar não existiria como o vemos.

Veio, então, a luz como onda eletromagnética, no século 19, necessitando de um meio material para se propagar; o éter retorna, com essa função, até que, em 1905, Einstein demonstra sua inutilidade. Porém, em 1917, ele mesmo sugere que, se o Universo é esférico e estático, deveria ser preenchido por uma substância estranha, cuja função seria atuar como uma espécie de antigravidade, equilibrando a atração de todas as coisas. Mas o Universo não é estático e, em 1929, a tal constante cosmológica é deixada de lado. Provisoriamente.

No meio tempo, físicos de partículas descobriram os componentes básicos da matéria comum. Destes, o bóson de Higgs tem o papel singular de atribuir massa a todas as outras partículas. Para tal, encontra-se por todo o espaço uma espécie de ar que não é ar mas por onde todas as partículas de matéria se movem. E, ao fazê-lo, respondem à presença do Higgs com inércias próprias, como pérolas movendo ora em água ora em mel. O espaço, segundo a física do muito pequeno, não pode ser vazio.

E nem o Cosmo nas suas proporções maiores: em 1998, astrônomos descobriram que as galáxias se afastam de forma acelerada, levadas pela expansão cósmica como objetos numa enchente. A causa dessa aceleração, com efeito idêntico ao termo que Einstein inseriu e depois descartou nas equações de sua teoria da relatividade, é uma espécie de fluido preenchendo todo o espaço, primo do Higgs mas não ele, um outro tipo de éter, chamado provisoriamente de energia escura. Existimos numa natureza plena-plena de essências e mistérios.


domingo, 28 de outubro de 2012

Copérnico traído


 Tendo dedicado seu grande tratado ao próprio papa, provavelmente não era a Igreja Católica que ele temia 

 NOS SÉCULOS 16 e 17, o que você pensava sobre o Cosmos podia lhe custar a vida; se não a vida, ao menos a liberdade e a integridade física. Imagine viver numa sociedade na qual o arranjo dos céus, por fazer parte da interpretação teológica da Bíblia, era determinado não pela ciência, mas pela fé. Essa era a época em que viveram Copérnico, Galileu e Johannes Kepler, os pioneiros da chamada Revolução Copernicana.

 Copérnico trabalhava para a Igreja Católica na Polônia como uma espécie de administrador local. Mas, embora houvesse estudado medicina e jurisprudência, seu interesse real estava nos céus.

 Em 1500, todos acreditavam que a Terra era o centro do Cosmo e que o Sol, a Lua e os planetas giravam à sua volta. Em 1510, Copérnico escreveu um pequeno tratado propondo algo inteiramente diferente: o Sol era o centro e a Terra girava à sua volta, tal como todos os planetas.

 Ele resolveu testar a recepção da ideia distribuindo o trabalho para alguns intelectuais e membros do clero. Ao contrário do que muitos pensam, a Igreja Católica não tinha ainda uma posição oficial contra o sistema heliocêntrico (o Sol no centro). Quem se manifestou contra Copérnico foi Martinho Lutero: "Há aí um astrônomo que diz que a Terra gira em torno dos céus. O tolo acha que vivemos num carrossel". Fora isso, nada de muito dramático ocorreu com Copérnico e seu tratado.

 Apesar de sua fama crescente como excelente astrônomo, Copérnico só foi publicar sua grande obra, o resumo do trabalho de toda a sua vida, em 1543.

 Alguns afirmam que ele temia os outros astrônomos, pois sabia que seus dados não eram dos melhores: construiu seu sistema usando medidas astronômicas tiradas por Ptolomeu em 150 d.C. e por astrônomos árabes durante a Idade Média -Copérnico era mais um arquiteto do que um observador.

 Talvez se preocupasse também com os luteranos, que avançavam em seu domínio na Europa Central. Mas quando, devido à insistência de seu único pupilo, Rheticus, ele termina o tratado, Copérnico o dedica ao papa! Certamente não era a Igreja que ele temia.

 Na época, publicar um livro significava passar um tempo junto com o editor, acertando todos os detalhes. Como era já bem velho, Copérnico manda Rheticus para Nuremberg de modo a tomar conta disso.

 Só que o rapaz era homossexual e acabou sendo expulso da cidade. Na pressa, deixou o manuscrito aos cuidados de Andreas Osiander, um teólogo luterano conservador.

 Péssima escolha. Osiander, representando o pensamento de sua igreja, acrescenta um prefácio anônimo ao livro, dizendo que o sistema ali proposto era apenas um modelo matemático que ajudava no cálculo das posições planetárias, nada dizendo sobre o real arranjo dos céus, que permanecia geocêntrico.

 Nesse meio tempo, Copérnico sofre um derrame e só recebe as provas do livro na cama. Segundo os relatos, ao ler o prefácio, compreendendo a dimensão da traição de Osiander, Copérnico morre no mesmo dia. Apenas em 1609 é que Kepler desmascara a traição, argumentando que Copérnico jamais teria escrito tal coisa. Copérnico morreu traído, mas é imortalmente celebrado como um dos heróis da história do pensamento.

domingo, 21 de outubro de 2012

Quão rara é a Terra?


 A semelhança de tamanho com o nosso planeta é só um dos atributos que talvez sejam necessários à vida 

 Agora que temos a certeza de que existe um número enorme de planetas com características físicas semelhantes à Terra, vale perguntar se esses astros têm, de fato, a chance de abrigar formas de vida e, se tiverem, que vida seria essa.

 Antes, alguns números importantes. Os melhores dados com relação à existência de outros planetas vêm de um satélite da Nasa, o Kepler, que anda buscando planetas como a Terra ao fazer um mapeamento de 100 mil estrelas que estão na nossa região cósmica.

 Pelo projeto da missão, a identificação dos planetas usa um efeito chamado de trânsito: quando um planeta passa na frente de sua estrela (por exemplo, Vênus passando na frente do Sol), o brilho da estrela é ligeiramente diminuído. Marcando o tempo que demora para o planeta passar em frente à estrela, a diminuição do brilho e, se possível, o período da órbita (quando o planeta retorna ao seu ponto inicial), é possível determinar o tamanho e massa do planeta.

 Com isso, a missão estima que cerca de 5% dos planetas na nossa galáxia têm massas semelhantes à Terra e, possivelmente, estão na zona habitável, o que significa que a temperatura na sua superfície permite a existência de água líquida (se houver água neles).

 Como sabemos que o número de estrelas na nossa galáxia é em torno de 200 bilhões, a estimativa da missão Kepler implica que devem existir em torno de 10 bilhões de planetas com dimensões semelhantes às da Terra. Nada mal, se supormos que basta isso para que exista vida. Porém, a situação é bem mais complexa e depende em detalhe das propriedades da vida e, em particular, da história geológica do planeta.

 Aqui na Terra, a vida surgiu 3,5 bilhões de anos atrás. Porém, durante aproximadamente 3 bilhões de anos, a vida aqui era constituída essencialmente de seres unicelulares, pouco sofisticados. Digamos, um planeta de bactérias. Só bem depois que a atmosfera da Terra foi "oxigenada", e isso devido à descoberta da fotossíntese por certas bactérias (cianobactérias, na verdade), é que seres multicelulares, bem mais tarde, surgiram.

 A mudança gerou outra coisa importante: quando o oxigênio sofreu a ação da radiação solar, formou-se a camada de ozônio que acaba por proteger a superfície do planeta. Sem essa proteção, a vida complexa na superfície seria inviável.

 Fora isso, a Terra tem uma lua pesada, o que estabiliza o seu eixo de rotação -a Terra é como um pião que está por cair, rodopiando em torno de si mesma numa inclinação de 23,5 graus. Essa inclinação é a responsável pelas estações do ano e por manter o clima da Terra relativamente agradável.

 Sem nossa Lua, o eixo de rotação teria um movimento caótico e a temperatura variaria de forma aleatória. Juntemos a isso o campo magnético terrestre, que nos protege da radiação solar e de outras formas de radiação do espaço, e o movimento das placas tectônicas, que funciona como um termostato terrestre e regula a circulação de gás carbônico na atmosfera, e vemos que são muitas as propriedades que fazem o nosso planeta ser especial.

 Portanto, mesmo que existam outras "Terras" pela galáxia, defendo ainda a raridade do nosso planeta e da vida complexa que nele existe.

domingo, 14 de outubro de 2012

Controlando a fragilidade quântica


 O Nobel de Física deste ano ajuda a entender o mundo bizarro do muito pequeno e ainda tem um lado prático 

 O prêmio Nobel de Física de 2012, conferido nesta semana, foi para o francês Serge Haroche e o americano David Wineland. Ambos são pioneiros da manipulação de sistemas quânticos, o mundo dos átomos, elétrons e outras partículas.

 As descobertas têm importância tanto para compreensão dos efeitos bizarros que ocorrem no mundo do muito pequeno quanto para aplicações práticas, como relógios ultraprecisos e computadores quânticos.

 O mundo quântico é extremamente frágil. Um dos maiores problemas da física quântica é como medi-lo sem interferir nele. Na nossa realidade, isso é bem mais fácil: você vê uma mosca, sabe onde está e, em princípio, pode medir sua velocidade: basta dividir a distância que a mosca percorreu pelo tempo de voo.

 Mas, se essa mosca fosse um elétron, a coisa ficaria bem mais difícil. Quanto mais precisa for a medida da posição do elétron, mais vago o valor da sua velocidade. Isso porque o ato de medir interfere com o que está sendo medido: no caso, partículas de luz, os fótons, têm de ser refletidas no elétron e viajar até um detector.

 Para saber melhor onde está o elétron, o fóton precisa ter maior energia. Com isso, acaba "empurrando" o elétron, interferindo na sua posição. Com a mosca isso também ocorre, mas os fótons não têm energia suficiente para empurrá-la.

 Essa é a diferença entre o mundo clássico, o nosso mundo, e o mundo quântico. O desafio é como medir sem interferir, ou ao menos interferir preservando a natureza quântica dos fenômenos observados.

 Haroche conseguiu "prender" fótons entre dois espelhos, fazendo com que ricocheteassem inúmeras vezes, viajando um total de 40 mil quilômetros antes de serem perdidos. Isso acaba construindo uma onda estável entre os dois espelhos, uma superposição coerente dos fótons. Para tal, o experimento tem de ser extremamente preciso e estável: qualquer interferência externa destruiria a coerência dos fótons. Esses "espelhos" foram feitos de material supercondutor e mantidos a temperaturas baixíssimas.

 A informação sobre os fótons foi obtida emitindo átomos de rubídio um a um para não destruir a coerência dos fótons, um feito incrível. Haroche tentava reproduzir no laboratório um efeito conhecido como gato de Schrödinger, explorando a transição entre o mundo quântico e o mundo clássico.

 Schrödinger imaginou que, se um gato estivesse preso numa caixa com um gás venenoso cuja emissão é controlada por átomos radioativos, um observador externo não saberia se o gato está morto ou vivo: só abrindo a caixa, observando o gato, teria uma resposta.

 Ou seja, no mundo quântico, o estado do gato seria uma combinação dos dois, morto e vivo ao mesmo tempo -um estado de coerência quântica. Os fótons entre os espelhos fazem algo semelhante, uma superposição de dois estados que sobrevive por um tempo, até ser destruída após a passagem de vários átomos de rubídio.

 Com isso, Haroche pôde estudar a destruição gradativa de um estado quântico pela primeira vez. Isso poderá ajudar no desenho de novos computadores que exploram as propriedades do mundo quântico para fazer cálculos muito mais eficientemente do que os atuais.

domingo, 7 de outubro de 2012

Ciência e fé: realidades paralelas


O que irrita os cientistas, ao menos os que são ateus, é a insistência dos que têm fé em crer em algo inacessível

No perene debate entre a ciência e a religião, algo que costuma irritar os cientistas, ao menos aqueles que se consideram ateus, é a insistência dos que têm fé em acreditar numa realidade paralela, inacessível à razão. Vejamos isso num diálogo fictício entre um cientista ateu e uma pessoa de fé bem versada nos avanços da ciência.

Cientista: "Uma causa sobrenatural não faz sentido: se for sobrenatural, isto é, além dos limites do espaço e do tempo, das leis da natureza, do material, como podemos saber da sua existência?

Afinal, o que existe tem de ser detectado. Caso contrário, essa existência é uma fabricação, uma fantasia. Pior ainda, se essa causa se manifestar naturalmente, através de uma 'visão' ou de um fenômeno qualquer, vira uma causa natural, que pode ser estudada pelos métodos da ciência. Ou seja, se algum deus existe, é impossível saber da sua existência de forma concreta. E não existe outra forma de saber".

Pessoa de fé: "A coisa não é assim tão simples, preto ou branco, existe ou não existe.

Entendo que, dentro do método científico, algo precisa ser detectável para que se comprove que é real. Ninguém sabia da existência de Urano até sua detecção por William Herschel em 1781. Mas, antes da detecção, Urano existia ou não? Claro que sim, mesmo que não soubéssemos disso. A ciência não pode determinar com firmeza o que não existe, apenas o que existe".

Cientista: "Mas você não pode, não deveria, comparar Deus a um objeto celeste. Pelo que entendo, Sua existência não passa pelas leis da natureza. Se passasse, Deus seria um fenômeno natural e deixaria de ter essa transcendência de que vocês tanto gostam e que ajuda a crença. Se Deus se 'esconde' numa realidade paralela, jamais fará parte do cânone da ciência".

Pessoa de fé: "Sem dúvida, Deus jamais fará parte do cânone da ciência. Esse é o seu problema, tudo tem de ser parte desse cânone. E eu já não penso assim.

Existem coisas que estão além da ciência, coisas que a ciência não tem como e nem deveria tentar explicar. A ciência tem um método bastante claro de estudo, separando o objeto a ser estudado do todo. Esse método supõe que a separação pode ser feita. Isso funciona muito bem no laboratório, ou quando um astrônomo observa uma galáxia.

Mas como explicar, por exemplo, o Universo como um todo, a questão da origem de tudo? Como olhar para o Universo como um objeto de estudo, se não podemos sair dele?".

Cientista: "Esse é o problema mais complicado, que os filósofos gostam de chamar de Primeira Causa, e os físicos, de 'condições iniciais'. Verdade, temos sempre de supor um contexto para oferecer uma explicação. Não temos ainda uma lei que explique como selecionar uma condição inicial dentre as várias possíveis. Mas nem por isso devemos supor que a explicação é sobrenatural, obra de uma entidade que não podemos saber se existe. Que tipo de explicação é essa?".

Pessoa de fé: "Essa é a explicação pela fé, além da ciência".

Cientista: "Eu prefiro continuar tentando entender do meu jeito".

Pessoa de fé: "Boa sorte, que Deus te inspire".

Cientista: "Eu prefiro me inspirar sozinho mesmo".

domingo, 30 de setembro de 2012

A terceira Revolução Copernicana


 Revoluções como as de Copérnico tiraram a centralidade da Terra e da Via Láctea no Universo 

 QUANDO, EM 1917, Einstein propôs o primeiro modelo cosmológico da era moderna, não havia qualquer razão para supor que o Universo teria um começo. Tudo indicava que o Universo era estático e infinitamente velho, sem um início.

 Tudo indicava também que a Via Láctea era tudo o que existia. Outras "nebulosas", vistas com telescópios, eram supostamente parte dela. Para além da Via Láctea, o Cosmo se estendia pela escura vastidão infinita do espaço vazio.

 Em menos de uma década, porém, tudo iria mudar. Para o horror da maioria dos cientistas, o Cosmo ganhou uma história, que, ao menos qualitativamente, lembrava o "Faça-se a Luz!" bíblico.

 Numa sucessão de observações sensacionais, graças a um telescópio de cem polegadas e uma metodologia impecável, o astrônomo americano Edwin Hubble e seu assistente Milton Humason determinaram, em 1924, que a Via Láctea era apenas uma entre "centenas de milhares" de outras galáxias.

 Hoje, sabemos que existem centenas de bilhões de galáxias. Após Hubble, a imagem da distribuição da matéria pelo espaço mudou completamente: não havia mais um "centro", a Via Láctea, mas um enorme número de núcleos. De certa forma, a descoberta foi uma versão moderna da Revolução Copernicana, visto que foi nela que a Terra perdeu sua centralidade.

 Como se isso não bastasse, em 1929, Hubble e Humason demonstraram que as galáxias se afastavam umas das outras. A conclusão, ainda mais chocante, inclusive para Einstein, era a de que o Universo não era estático, mas estava em expansão. Com isso, o Cosmo ganhou uma história: voltando no tempo, haveria um momento no qual as galáxias estavam amontoadas, o momento da "criação".

 Se Hubble estivesse certo, a cosmologia se tornava mítica, colocando-a próxima das questões religiosas: se o Universo tem uma história, como ela começou? "Quem" a começou? Por que ela começou?

 A situação tornou-se ainda mais interessante quando, em 1927, o padre-cosmólogo belga Georges Lemaître propôs que o Universo surgiu da desintegração espontânea de um gigantesco átomo primordial.

 Lemaître inventou um modelo científico da "criação", mesmo se insistisse que não havia qualquer relação com a Bíblia. Mas a associação era inevitável. Ninguém prestou, ou quis prestar, atenção nas ideias de Lemaître até que Hubble descobriu a expansão.

 Desde então, a cosmologia vem se debatendo com a questão do "início" de tudo. Em 1948, três ingleses sugeriram uma alternativa, o "modelo do estado padrão", no qual o Cosmos não teria um começo: por toda a eternidade, a matéria era criada na mesma proporção em que se diluía devido à expansão.

 Porém, nos anos 1960, o modelo rival do Big Bang é que foi verificado por observações. Tudo indica que ao menos nossa etapa cósmica surgiu mesmo de um evento inicial.

 Mas e se nosso Universo não for único, mas parte de um multiverso, esse sim eterno? Modelos atuais pressupõem que seja esse o caso, que o multiverso existe eternamente e que o nosso existe entre incontáveis outros. Seria a terceira Revolução Copernicana, agora removendo a centralidade do Universo.

domingo, 16 de setembro de 2012

A possibilidade do multiverso

Será o nosso Universo só um entre uma multidão de outros, todos parte de um multiverso eterno?

É bom começar explicando esse título que, sem dúvida, deve parecer estranho aos não especialistas.
 
A ideia é que nosso Universo (com "U" maiúsculo) é só um entre uma multidão de outros universos, todos parte de um multiverso que pode ter existido por toda a eternidade.

Com isso, o que chamamos de Big Bang seria apenas o evento que marcou o início da nossa narrativa cósmica. Outros universos teriam os seus big bangs e as suas histórias.

Existem vários tipo de multiverso, mas todos têm essa característica em comum, de serem genitores de universos. Por exemplo, algumas teorias sugerem que as leis da natureza podem variar de região a região no multiverso. Nesse caso, diferentes universos poderiam ter diferentes leis da física. No momento, essas teorias são mais metafísicas do que físicas.

Em outras teorias, os diferentes universos têm as mesmas leis, mas as constantes da natureza (a massa e a carga do elétron, a massa do próton, a constante que determina a intensidade da força da gravidade etc.) é que variam.

Esta última hipótese vem da teoria de supercordas, a tentativa de construir uma teoria de todas as forças da natureza (são quatro ao todo), a chamada "Teoria de Tudo".

No momento, não temos qualquer indicação de que o multiverso possa existir. Ou, se existir, se poderemos determinar sua existência. É possível que exista apenas o nosso Universo e ponto final. Porém, se for este o caso, temos o problema de explicar por que esse Universo e não outro. Especialmente se levarmos as previsões da teoria de supercordas a sério e concluirmos que o multiverso é inevitável e que um número enorme de universos existe, cada qual com suas constantes físicas e, portanto, com uma física diferente.
Universos como o nosso são comuns entre eles ou raros? Como determinar isso?

Uma resposta óbvia é que, se nosso Universo não existisse, não estaríamos aqui nos perguntando sobre sua existência. Ele existe e pronto. Mas essa resposta não é muito satisfatória, pois estamos programados para buscar explicações finais, narrativas que justifiquem o começo, o meio e o fim de uma história.

É difícil imaginar algo que não tenha tido um início, como o temos nós e todas as formas de vida. Mais difícil ainda é imaginar que algo possa surgir sem uma causa inicial.

A existência ou não do multiverso, para que seja uma questão científica e não filosófica ou teológica, precisa ser determinada experimentalmente, por alguma observação.

No momento, existem tentativas de fazer isso, estudando o efeito sobre dois universos vizinhos que tivessem sofrido uma colisão no passado. Infelizmente, esses modelos ainda são bem simples, e está faltando muita coisa.

Um dos problemas que a ciência enfrenta com esse debate é a questão do infinito. Se teorias afirmam que o multiverso existiu e existirá para sempre, como comprovar isso? Mesmo com o nosso Universo e seu futuro: para determinar se ele existirá para sempre, precisaríamos de um experimento que durasse também para sempre.

A crise aqui vem da colisão entre conceitos como o infinito e as limitações concretas da passagem do tempo da qual a ciência, enquanto obra humana, prescinde.

domingo, 9 de setembro de 2012

O tempo, a Terra e a Lua


Um dia, a Lua ficará posicionada sobre o mesmo ponto do nosso planeta, como fazem certos satélites

A Lua, segundo as teorias mais recentes, veio da Terra, arrancada por uma colisão cataclísmica com um planetoide do tamanho de Marte. Isso ocorreu na infância do Sistema Solar, uns 4,5 bilhões de anos atrás. Para quem aprecia referências bíblicas, a Lua é como Eva, nascida da costela de Adão, no caso, a Terra.

A matéria que foi assim arrancada acabou por se dispersar em torno da Terra e, aos poucos, foi se reaglutinando em um único corpo celeste, fadado a girar em torno de seu astro criador pela inexorável ação da gravidade.

Com isso, Terra e Lua têm suas dinâmicas interligadas desde a sua origem. Como a Lua veio da Terra, sua distância até nós já foi bem menor. Se hoje a Lua ocupa não mais do que uma área equivalente a uma unha no céu (em torno de meio grau), ela já foi bem mais visível.

Essa proximidade, devido ao fato de a força da gravidade cair com o quadrado da distância, significa que, no passado, a influência da Lua sobre a Terra, e a da Terra sobre a Lua, era muito maior.

Hoje, o efeito mais óbvio dessa atração são as marés, duas altas e duas baixas por dia. Fazendo as contas, a força das marés varia com o cubo da distância, sendo ainda mais sensível a ela do que a atração gravitacional. Portanto, no passado, as marés eram mais dramáticas do que são hoje.

A intensidade era tal que oceanos podiam se elevar por centenas de metros, e a própria crosta terrestre pulsava, variando em altitude por dezenas de metros, como se fosse feita de massa de modelar. Aos poucos, a Lua foi se afastando da Terra, como continua a fazê-lo, numa taxa de 4 cm ao ano. Isso significa que o efeito de maré diminui com o tempo. E os dias vão se tornando cada vez mais longos.

Muita gente me pergunta se o tempo anda passando mais rápido do que antigamente. A resposta é não; um minuto continua sendo um minuto, já que a definição de minuto não mudou. O que muda sempre é a duração do dia, mesmo que de modo imperceptível para nós. Estimativas atuais afirmam que a duração de um dia, uma revolução completa da Terra em torno de si mesma, aumenta 1,7 microssegundos por século. Com esse passo de tartaruga, meio bilhão de anos atrás o dia durava um pouco mais de 22 horas, e um ano tinha 397 dias.

Esse efeito vem, também, das marés. A Lua, que hoje nos mostra sempre a mesma face, já girou de maneira diferente. No futuro longínquo, com a desaceleração contínua da rotação da Terra, o dia durará 47 horas, e a distância até a Lua será 43% maior do que é hoje.

A essa altura, a Terra girará em torno de seu eixo com o mesmo período no qual a Lua girará em torno da Terra. A Lua estará sempre sobre o mesmo ponto do nosso planeta, como hoje o fazem os satélites geossíncronos. Será um futuro estranho, muito diferente de hoje, quando a Lua ainda é generosa com todos na Terra. Mas isso só ocorrerá dentro de bilhões de anos.

Pensando sobre esses efeitos, vemos como tanto em nossas vidas é produto de convenções que, mesmo se tomadas como permanentes, não o são. Tudo vem da nossa percepção da passagem do tempo, a qual, numa vida de apenas uma centena de anos, é cega aos percalços lentos da dança dos astros.

domingo, 2 de setembro de 2012

Sonhos de viagens à Lua


 A exploração do espaço é a área da ciência em que é mais clara a sua dívida em relação à ficção 

 A morte recente de Neil Armstrong, o intrépido astronauta americano cuja principal distinção foi ter sido o primeiro humano a pisar na Lua, inevitavelmente me levou ao dia 20 de julho de 1969, quando, com os olhos incrédulos grudados na TV, assisti com meus primos a um feito que mais parecia ficção do que realidade.

 O poder transformador da imagem de um ser humano saltitando pelo solo lunar foi tal que, mesmo para um menino carioca de 10 anos, a vida jamais seria a mesma. Explorar a Lua adquiriu um significado mítico: o primeiro passo para a conquista do espaço e a emancipação cósmica da humanidade.

 Sabendo das dificuldades de virar astronauta no Brasil, optei por aprender sobre a ciência do espaço, devidamente complementada por obras de ficção tratando da exploração imaginária do nosso satélite natural. Afinal, como disse o pioneiro da exploração espacial Robert H. Goddard, "é difícil dizer o que é impossível, pois o sonho de ontem é a esperança de hoje e a realidade de amanhã". A exploração do espaço é, sem dúvida, a área da ciência em que é mais clara a sua dívida em relação à ficção.

 Lendo alguns dos primeiros relatos imaginários de viagens à Lua, vemos quão alto a imaginação humana voa quando livre de dados, e quão difícil é transformar imaginação em realidade. Sonhar em ir à Lua e chegar lá são duas coisas muito diferentes, aspectos complementares da nossa humanidade, como sonhadores e inventores. Toda invenção começa com um sonho.

 A primeira narrativa conhecida de viagem à Lua foi escrita pelo satirista Luciano (125 d.C.). Em uma obra que inspirou muitos de seus sucessores ilustres, como Kepler, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift e Voltaire, Luciano conta como, na companhia de outros 50 exploradores, saiu pelos oceanos para ver onde terminavam. Um dia, "um vento violento soprou o navio pelos ares até grande altitudes, mantendo-nos suspensos por sete dias e noites, até que, no oitavo, demos numa terra, uma ilha redonda, brilhante e plena de luz".

 Uma vez na Lua, os exploradores enfrentam inúmeras confusões, incluindo uma guerra contra o reino do Sol e suas criaturas que, numa tradição que Luciano atribui a Homero em sua obra "Odisseia", eram extremamente bizarras. Ao que parece, a guerra é uma condição inescapável de criaturas semelhantes aos homens, espécie de enfermidade incurável. Como escreveu Luciano, "podemos bem dizer que a guerra é a geradora de todas as coisas".

 Pergunto-me o que o heroico Neil Armstrong, famosamente discreto e recluso, pensava de fantasias como a de Luciano. Embora se dissesse "um engenheiro nerd de meias brancas e cheio de canetas no bolso da camisa", ocasionalmente demonstrava grande inspiração: "Olhando para o passado, fomos mesmo muito privilegiados de ter vivido numa breve parcela da história em que mudamos como o homem olha a si mesmo, o que poderá vir a ser e os lugares aonde irá".

 Para este garoto já crescido, Armstrong continuará sendo um raio de luz num mundo que tanto necessita de heróis como ele. E, para mostrar como levo a complementaridade entre ciência e literatura a sério, um de meus filhos se chama Lucia

sábado, 18 de agosto de 2012

Ciência, fé e extrapolação




 A crença de Newton na gravidade era tão grande que o levou a especular sobre a dimensão do Cosmo

 Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença? Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a fé como também influencia de que modo um indivíduo se relaciona com o mundo.

 Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o "desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido com o "conhecível".

 A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto, "conhecível"), e outra fora dele (e que é, portanto, "desconhecível" ou inescrutável).

 Tanto o cientista quanto o crente acreditam, se bem que a crença de cada um é bem diferente. A do cientista se manifesta de forma clara quando faz uma extrapolação de uma teoria ou modelo além de seus limites testados.

 Por exemplo, ao afirmar que "a gravidade atua da mesma forma em todo o Universo", ou "a teoria da evolução por seleção natural se aplica a todas as formas de vida, inclusive as extraterrestres", não sabemos se essas extrapolações são verdadeiras. Mas, dado o sucesso das teorias em que se baseiam, vale a pena apostar nelas. Testes futuros confirmarão (ou não) a veracidade da extrapolação.

 Sem esse tipo de fé no poder da extrapolação, a ciência não avançaria. Eis um exemplo. A teoria da gravitação universal de Newton, explicada no Livro 3 do seu monumental "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", deveria ter sido chamada de "teoria da gravitação do Sistema Solar", já que, no século 17, não havia como testá-la.

 Porém, Newton foi em frente e supôs que a força da gravidade-proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância- funcionaria em todo o Cosmo: "Se foi estabelecido que todo corpo na vizinhança da Terra gravita em direção à ela em proporção à sua matéria, teremos de concluir que todos os corpos exercem gravitação mútua".

 Mais tarde, em carta datada de 10 de dezembro de 1692 e endereçada a Richard Bentley, teólogo de Cambridge, Newton usa a mesma extrapolação para argumentar que o Universo deve ser infinito.

 Se a gravidade atuasse sobre um Universo finito, pensou Bentley, não causaria o colapso de toda a matéria no seu centro? Newton concordou que esse seria o destino da matéria num universo finito.

 Porém, sugeriu, "se a matéria estiver distribuída de forma homogênea em um Universo infinito, não colapsaria em uma única massa; um pouco de matéria se aglomeraria em um lugar, um pouco mais em outro, constituindo um número infinito de grandes massas, espalhadas pelas distâncias do espaço".

 A crença de Newton na natureza universal da gravidade era tão forte que o levou a especular com confiança sobre a extensão espacial do Cosmo. Einstein fez algo semelhante, mas temos de deixar essa história para outra semana.

 Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de arriscar e de estar errado. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.

domingo, 5 de agosto de 2012

Cem anos de mistério



 Raios cósmicos afetam de viagens espaciais à memória de computadores, mas sua origem ainda é controversa 

 Neste mês, físicos celebram o centenário da descoberta dos raios cósmicos, esses chuveiros de partículas vindas do espaço. Apesar de hoje conhecermos bem sua natureza e composição, muitas perguntas permanecem em aberto, especialmente com relação aos raios cósmicos ultraenergéticos.

 Que processo natural é capaz de acelerar partículas a energias milhões de vezes maiores do que as atingidas no colisor de partículas do Cern, onde foi descoberto o bóson de Higgs?

 Apesar do nome, raios cósmicos têm uma importância prática, já que produzem 13% da radioatividade natural a que somos expostos. Tripulações de aviões recebem o dobro dessa radiação, e astronautas mais ainda. Aliás, raios cósmicos são um dos fatores que complicam viagens espaciais mais longas, como a ida de humanos a Marte.

 Também interferem no funcionamento de computadores, causando erros de armazenamento de dados. Num estudo de 1990, cientistas da IBM estimaram que raios cósmicos induzem um erro para cada 256 megabytes de RAM por mês.

 Em agosto de 1912, o físico austríaco Victor Hess subiu num balão até 5,3 km medindo o fluxo de partículas vindas do céu. A expectativa era de que o fluxo diminuiria com a altitude, exatamente o oposto do que Hess descobriu. A conclusão era clara: as partículas vinham do espaço.

 Nas décadas seguintes, a composição dos raios cósmicos foi decifrada: 90% são prótons; 9% são núcleos dos átomos de hélio, as partículas alfa; 1% são elétrons. Uma pequena fração deles vem de núcleos atômicos forjados meros minutos após o Big Bang. Quando essas partículas se chocam com moléculas da atmosfera, a transformação de sua energia de movimento em matéria, segundo a fórmula E=mc2, cria uma reação em cadeia, um "chuveiro" de partículas.

 A maioria dos raios cósmicos vem do Sol. Mas o mecanismo que gera os mais energéticos ainda é desconhecido. Certamente são criados em eventos astrofísicos dramáticos. Dos vários candidatos, dois têm destaque: buracos negros gigantes que existem no centro de galáxias ou explosões de raios gama, os eventos cósmicos mais energéticos que conhecemos, provavelmente causados quando uma estrela colapsa e vira uma estrela de nêutrons ou um buraco negro, ou quando duas estrelas de nêutrons colidem.

 Um experimento recente da Universidade de Wisconsin, nos EUA, chamado de IceCube, apresentou evidências contra a hipótese de as explosões de raios gama serem responsáveis pelos raios cósmicos ultraenergéticos. A teoria prevê que raios gama e muitos neutrinos são gerados quando estrelas explodem e viram supernovas. Mas o IceCube não detectou sequer um neutrino vindo dessas explosões, o que torna difícil entender de onde vêm as partículas dos raios cósmicos.

 Por outro lado, o Observatório Pierre Auger, onde trabalham vários brasileiros, viu forte correlação entre núcleos de galáxias ativos -onde há buracos negros gigantes- e raios cósmicos ultraenergéticos. Mas o debate ainda contiua.

 Qualquer que seja a explicação, tais raios são uma ponte entre nós e os confins do espaço, reforçando nossa profunda relação com as grandes escalas do Cosmos.

domingo, 29 de julho de 2012

Aristóteles e Higgs: uma parábola



 A ciência não é infalível, mas é o melhor método que temos para aprender como o mundo funciona 

 ARISTÓTELES E Peter Higgs entram num bar. Higgs, como sempre, pede o seu uísque de puro malte. Aristóteles, fiel às suas raízes, fica com um copo de vinho.

 "Então, ouvi dizer que finalmente encontraram", diz Aristóteles, animado. "É, demorou, mas parece que sim", responde Higgs, todo sorridente. "Você acha que 40 anos é muito tempo? Eu esperei 23 séculos!" "Como é?", pergunta Higgs, atônito. "Você não acha que..."

 "Claro que acho!", corta Aristóteles. "Você chama de campo, eu de éter. No final dá no mesmo, não?"

 "De jeito nenhum!", responde Higgs, furioso. "O seu éter é inventado. Eu calculei, entende? Fiz previsões concretas."

 "Vocês cientistas e suas previsões...", diz Aristóteles. "Basta ter imaginação e um bom olho. Você não acha que o meu éter é uma excelente explicação para o que ocorre nos céus?"

 "Talvez tenha sido há 2.000 anos. Mas tudo mudou após Galileu e Kepler", diz Higgs.

 Aristóteles olha para Higgs com desprezo. "Você está se referindo a esse 'método' de vocês, certo?"

 "O método científico, para ser preciso", responde Higgs, orgulhoso. "É a noção de que uma hipótese precisa ser validada por experimentos para que seja aceita como explicação significativa de como funciona o mundo."

 "Significativa? A minha filosofia foi muito mais significativa para mais gente e por muito mais tempo do que sua ciência e o seu método."

 "É verdade, Aristóteles, suas ideias inspiraram muita gente por muitos séculos. Mas ser significativo não significa estar correto."

 "E como você sabe o que é certo ou errado?", rebate Aristóteles. "O que você acha que está certo hoje pode ser considerado errado amanhã." "Tem razão, a ciência não é infalível. Mas é o melhor método que temos para aprender como o mundo funciona", responde Higgs.

 "Nos meus tempos bastava ser convincente", reflete Aristóteles com nostalgia. "Se tinha um bom argumento e sabia defendê-lo, dava tudo certo", continuou. "As pessoas acreditavam em você, mas não era fácil. A competição era intensa!" "Posso imaginar", responde Higgs. "Ainda é difícil. A diferença é que argumentos não são suficientes. Ideias têm que ser testadas. Por isso a descoberta do bóson de Higgs é tão importante."

 "É, pode ser. Mas no fundo é só um outro éter", provoca Aristóteles.

 "Um éter bem diferente do seu", responde Higgs. "E por quê?", pergunta Aristóteles. "Pra começar, o campo de Higgs interage com a matéria comum. O seu éter não interage com nada."

 "Claro que não! Era perfeito e eterno", diz Aristóteles.

 "Nada é eterno", rebate Higgs.

 "Pelo seu método, a menos que você tenha um experimento que dure uma eternidade, é impossível provar isso!", afirma Aristóteles.

 "Touché, você me pegou", admite Higgs. "Não podemos saber tudo." "Exato", diz Aristóteles. "E é aí que fica divertido, quando a certeza acaba." "Parabéns pela descoberta do seu éter", diz Aristóteles.

 "Existem muitos tipos de éter", afirma Higgs. "E muitos tipos de bósons de Higgs", retruca Aristóteles.

 "É, vamos ter que continuar a busca." "E o que há de melhor?", completa Aristóteles, tomando um gole.

domingo, 1 de julho de 2012

Ciência e inovação no Brasil


O país tem de realizar um enorme esforço para avançar na geração e na utilização do conhecimento

RECENTEMENTE, ESTIVE em Brasília, a convite da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado. O objetivo foi participar do seminário "Caminhos para a Inovação", uma atividade da ENCTI (Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação), iniciada em 2011 pelo então Ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante.

Estavam também presentes o neurocientista Miguel Nicolelis e várias autoridades da área, como Glaucius Oliva, presidente do CNPq [agência federal de fomento à ciência]. Minha tarefa (e a do Nicolelis) era apontar possíveis mecanismos para que o Brasil deixe de ser potência agropecuária e de extração de minérios e crie uma economia movida pela inovação competitiva.

Comecei citando o relatório da ENCTI, de autoria do Mercadante:

1) A sociedade do futuro é a sociedade do conhecimento.

2) O Brasil tem de realizar um enorme esforço para avançar na geração e utilização do conhecimento científico, criando competências em áreas estratégicas.

3) O país precisa de uma revolução do seu sistema educacional.

Como fica bem claro, o ministro apontou bem o que deve ser feito. A questão é como.

Entre as 59 maiores economias do mundo, o Brasil ocupa a 54ª posição em infraestrutura tecnológica e educacional. Esses são dados do do Institute for Management Development, que examina as tendências econômicas dos países, mapeando sua viabilidade futura. O Brasil hoje ocupa a 47ª posição em performance econômica, caindo da 30ª em 2011. As coisas não vão tão bem quanto a maioria pensa.

Antes de mais nada, é necessária uma profunda revitalização da educação científica nacional: o Brasil precisa dobrar o número de engenheiros formados para poder suprir a demanda que já existe. Para isso, os jovens têm de ver a ciência como uma carreira viável, interessante e gratificante. A ciência precisa ser ensinada de outra forma, levando do encantamento à inovação.

As crianças precisam ver a ciência no seu cotidiano, no mundo que as cerca e no que as interessa; não pela memorização de fórmulas, mas olhando para o mundo de forma qualitativa, para então aprender as ferramentas quantitativas que cientistas usam para estudá-lo.

Estudantes de graduação e de pós devem visitar escolas públicas e privadas, para que crianças e jovens tenham contato com estudantes de ciências, desmistificando a carreira. Cientistas brasileiros também precisam participar de forma muito mais ativa na educação informal da população: palestras dirigidas ao público, observação astronômica em espaços abertos, feiras de ciência etc. A mídia nacional precisa dedicar mais espaço à ciência, especialmente na TV aberta e em horário nobre, nem que sejam alguns parcos minutos por semana.

É necessária uma lei de fomento à pesquisa, equivalente à Lei Rouanet da cultura. Com isso, o setor industrial e comercial terá incentivo para investir em ciência, algo que nos EUA e na Europa é essencial.
Falei sobre outras estratégias, mas essas foram as principais. O interessante é que o Nicolelis chegou depois e, sem me ouvir, apresentou quase os mesmos pontos. Basta que o Legislativo nos ouça também.

domingo, 24 de junho de 2012

No coração de um buraco negro

É incrível que buracos negros tenham sido inventados antes de ser descobertos pelo homem


O que acontece com quem cai num buraco negro? Imagino que muitos
de vocês perderam muitas horas de sono com isso. Especialmente

agora, quando sabemos que existe um buraco negro gigante no centro da maioria das galáxias, inclusive na nossa, um monstro de 4 milhões de massas solares. No dia 13 de Junho, a sonda espacial NuSTAR -equipada com um telescópio que detecta raios X- foi lançada para examinar em detalhe o que ocorre no nosso gigantesco ralo cósmico.

Segundo a teoria da relatividade geral de Einstein, a gravidade pode ser explicada como resultado da curvatura do espaço em torno de um objeto com massa: quando maior a massa do objeto, mais curvo o espaço à sua volta, e maior sua atração sobre corpos vizinhos. Quanto mais curvo o espaço, mais difícil é escapar da sua gravidade.

O buraco negro é o caso no qual o espaço é tão curvo que nada escapa de sua atração, nem mesmo a luz. Para "ver" um buraco negro é preciso olhar para o entorno dele.

Para Einstein e a maioria dos físicos, os buracos negros são um grande desafio. A maioria deles são restos de estrelas que, ao morrer, implodem como balões furados. O problema é que, durante a implosão, a gravidade vai ficando cada vez mais forte. E a implosão não para. No centro da estrela em colapso se forma uma "singularidade", um ponto onde a gravidade é infinitamente forte e as leis da física deixam de fazer sentido.

A singularidade é circundada pelo "horizonte", a esfera que separa a estranheza do buraco negro do mundo exterior. Se você ultrapassar o horizonte, nunca mais escapa: seu destino é continuar até a singularidade, onde será triturado por completo. Mas não há nada a temer, pois bem antes disso seu corpo será esticado feito espaguete e rasgado.

Einstein nunca gostou de teorias que deixam de fazer sentido. Em 1935, escreveu um artigo com Nathan Rosen no qual sugeriu que o centro de um buraco negro é uma ponte para outro local no Universo (ou mesmo para outro universo), e que do outro lado existe um "buraco branco", o oposto do buraco negro, um ponto de onde surge matéria, como uma cornucópia cósmica.

Esses "buracos de minhoca", como ficaram conhecidas as pontes de Einstein-Rosen, vêm inspirando incontáveis histórias e filmes de ficção científica, pois, em princípio, permitem viagens a velocidades maiores do que a da luz. Infelizmente, fora a total falta de evidência de buracos brancos, para manter as duas bocas do buraco de minhoca abertas é necessário um tipo de matéria que tem energia "negativa", até hoje nunca vista.

A coisa piora se a teoria de Stephen Hawking, que prevê que buracos negros evaporam lentamente, estiver correta. Afinal, se evaporarem, tudo o que resta é a singularidade nua, o ponto absurdo. Horrorizados, físicos propuseram que algo protege essa nudez, a Conjectura de Censura Cósmica.

Qualquer que seja o destino da singularidade, é incrível que buracos negros tenham sido inventados antes de ser descobertos, um casamento quase mágico da imaginação com o Cosmo. É como se a natureza nos dissesse: arrisquem mesmo, sonhem alto. E estejam sempre abertos para o inesperado, pois ele está sempre à espreita.

domingo, 10 de junho de 2012

Breve meditação sobre o Nada


Na física moderna, o espaço vazio, o 'Nada', pode abrigar flutuações capazes de dar origem a todo um universo

Recentemente, envolvi-me num debate com o físico Lawrence Krauss, que publicou um livro no qual afirma que a física hoje explica como o Universo surgiu do nada. Ou seja, a velha questão da Criação sob roupagem científica, e mais um exemplo de arrogância intelectual.

É bom começar com Aristóteles, que decidiu que a "natureza detesta o vácuo", declarando que o "nada" não existe, ao menos como vazio absoluto. Para ele, o espaço era pleno de éter, a substância dos planetas e demais objetos celestes.

No século 17, Descartes também propôs que a natureza era plena. Os planetas eram carregados em torno do Sol por redemoinhos celestes, criados pela circulação duma substância que enchia o espaço.

Newton mostrou que Descartes estava errado, argumentando que a fricção causaria a queda da Lua sobre a Terra. Para ele, a gravidade podia ser explicada por uma força à distância, agindo no vazio.

Esse pingue-pongue continuou até o século 19, quando James Maxwell mostrou que a luz é uma onda eletromagnética. Como toda onda, precisava dum meio para se propagar. Maxwell e outros sugeriram o éter, diferente do dos gregos, mas que preenchia o espaço sem provocar fricção nas órbitas celestes.

Em 1905, Einstein mostrou que o éter era desnecessário: as ondas de luz podem se propagar no espaço vazio. Mais uma vez, o éter some.

Em torno da mesma época veio a mecânica quântica, para explicar a física dos átomos. Foi então que tudo mudou: as regras no mundo dos átomos são diferentes das do nosso mundo. Mais precisamente, seus efeitos existem no nosso mundo, mas são imperceptíveis.

No mundo atômico, nada para. A matéria vibra incessantemente, feito gelatina sacudida. Se você tenta localizar um elétron num ponto do espaço, ele escapa feito uma gota de mercúrio. Esse é o princípio da incerteza de Heisenberg, que impõe um limite absoluto na informação que podemos obter do mundo.

Como movimento tem energia, o princípio também diz que a energia nunca é zero. Na física moderna, representamos uma partícula como excitação de um campo. O espaço é permeado por campos que, de vez em quando, criam partículas.

Os campos vibram incessantemente e, com isso, podem criar partículas com energias variadas: quanto maior a energia, menos tempo essas partículas duram, retornando ao "nada" de onde vieram, o campo vazio (ou vácuo). Se incluirmos a gravidade nesse esquema, e entendendo que é interpretada como a curvatura do espaço causada pela matéria, flutuações quânticas no campo gravitacional levam à flutuações na curvatura do espaço.

Temos, então, o espaço vazio, o "Nada", onde uma flutuação pode levar a uma bolha de espaço, um cosmoide que pode crescer e se transformar num universo inteiro.

É assim que a cosmologia descreve a criação do Universo a partir do nada. Esse tipo de explicação pressupõe toda uma estrutura conceitual, e não faz sentido sem ela. Já não basta celebrar a inventividade humana, capaz de criar teorias desse tipo, sem ter de elevá-la a um nível divino? Parece-me óbvio que a mente humana não pode criar num vácuo: o "nada" absoluto é importante como instrumento metafísico, mas sem importância no mundo real.

domingo, 3 de junho de 2012

Será que devemos ir ao espaço?


Impedir a exploração humana do espaço é ir contra a história; somos exploradores por natureza

Já que na semana passada escrevi sobre como alienígenas ultra-avançados seriam indistinguíveis de deuses, hoje queria ir na direção oposta e explorar o nosso papel como exploradores cósmicos. O assunto foi inspirado pela missão sensacional do módulo Dragon, da empresa SpaceX, o grupo privado que na semana passada acoplou pela primeira vez uma cápsula à Estação Espacial Internacional, inaugurando uma nova era na corrida espacial.

Existem duas escolas de pensamento no que tange a nosso papel na exploração espacial. Membros da primeira argumentam que, do ponto de vista de custos e rapidez de resultados, missões robóticas são de longe melhores. Os sucessos até aqui são mesmo notáveis: por exemplo, a exploração dos planetas gigantes do Sistema Solar (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) pelas missões Voyager 1 e 2 e, mais recentemente, as missões Galileu e Cassini; os veículos de exploração de Marte, guiados por controle remoto daqui da Terra, e a nova missão que deve chegar lá no dia 6 de agosto, com um veículo de exploração bem maior do que seus antecessores. Exemplos não faltam, provando que podemos aprender enviando máquinas ao espaço. É bem mais barato do que enviar humanos e ninguém corre risco de morte.

A segunda escola defende que humanos precisam ir ao espaço. É nossa prerrogativa enquanto espécie inteligente, nosso mandato cósmico. As crianças adoram a ideia de explorar o espaço e muitos se interessam por ciência por causa disso.

Na prática, ter humanos in situ é muito eficiente, pois não só improvisamos como não somos bloqueados por pedras ou sofremos dano em painéis solares e antenas. (Se bem que nosso equipamento pode sofrer esses e outros danos.)

Existem muitas razões para enviar humanos ao espaço, algumas científicas e outras mais românticas. Devemos agora adicionar "dinheiro" entre elas, já que se pode ganhar muito com a exploração privada do espaço -mineração, pesquisa, projetos governamentais, turismo e outros. O grupo SpaceX, por exemplo, tem um contrato de US$ 1,6 bilhão com a Nasa para entregar equipamentos à Estação Espacial Internacional.

Idealmente, a resposta deveria combinar as duas posições: robôs são necessários, pois podem ir aonde não podemos, realizar tarefas para nós impossíveis e nos poupar de riscos desnecessários. Por outro lado, impedir a exploração humana do espaço é ir contra a história da nossa espécie. Somos exploradores por natureza, muitas vezes sem nos importar com os riscos.

Tenho certeza que, se um programa desenvolvesse uma viagem apenas de ida a Marte, não faltariam voluntários dispostos a chegar lá para serem imortalizados pela história da humanidade e para manter nosso expansionismo vivo.

Difícil imaginar que nosso futuro não será no espaço e que, dentro de alguns milhões de anos, não seremos nós os colonizadores de boa parte da galáxia. Pode até ser que encontremos "outros" pelo caminho -se bem que seu silêncio até aqui parece indicar sua raridade ou sua ausência (ou falta de interesse na nossa espécie). Já que, com tecnologias atuais, a viagem até a estrela mais próxima demora uns 100 mil anos, é bom começarmos logo.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI

domingo, 27 de maio de 2012

ETs, o sobrenatural e o divino


Somos cegos em relação ao futuro, e é impossível prever as características de inteligências extraterrestres

SERÁ POSSÍVEL distinguir entre seres alienígenas ultra-avançados e deuses? Inúmeros clássicos da ficção científica, entre eles "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Arthur Clar-ke, sugerem que civilizações extraterrestres ultra-avançadas seriam percebidas pela humanidade como divinas. Isso é menos bizarro do que parece, já que ocorreu aqui na Terra, na era das grandes explorações europeias.

Quando os europeus chegaram às Américas, vários nativos os tomaram por deuses. Tinham aparência diferente, usavam trajes estranhos, suas naves enormes podiam viajar por vastas distâncias, sua origem era incerta e podiam matar facilmente com armas de fogo.

No nosso caso, "eles" seriam capazes de feitos que hoje consideramos impossíveis, como se teletransportar, criar novas formas de vida em segundos ou ler nossas mentes. Mas esses impedimentos ocorrem com a tecnologia atual e, em ciência, os sonhos de hoje podem ser a realidade de amanhã.

"Nada é maravilhoso demais para ser verdade, contanto que seja consistente com as leis da natureza", disse o físico Michael Faraday, em meados do século 19.

Por outro lado, muitas descobertas científicas revelam novas leis ou vêm da quebra de leis vigentes. As metáforas e imagens que usamos para descrever o mundo mudam com o tempo, dependentes que são do conhecimento tecnológico e científico da época. Quem, cem anos atrás, compararia o Universo a um computador? E como podemos saber aonde nossa inventividade nos levará em dez ou 50 anos? Ninguém poderia ter previsto que a invenção dos computadores geraria as redes sociais Facebook e Twitter.

Somos parcialmente (se não totalmente) cegos em relação ao futuro não muito distante. Assim, é impossível prever as características de inteligências extraterrestres ultra-avançadas, se é que elas existem. Podemos especular, o que é sempre divertido. Mas os poderes que, para nós, são incríveis hoje, como teletransporte, são inspirados pela ciência atual. O que esses alienígenas são de fato capazes de fazer ou o que nós faremos no futuro é um grande ponto de interrogação.

Como em tantos filmes e livros, pode ser que "eles" estejam por aqui e não possamos vê-los. Pode ser que controlem, ou ao menos influenciem, nossas vidas, invisíveis mas ativos. Seguindo esse raciocínio, a fronteira entre o natural e o sobrenatural fica embaçada. Afinal, se não conhecemos todas as leis da natureza, é possível que o que chamamos de sobrenatural hoje possa, amanhã, ser perfeitamente natural.

Se seus olhos ainda não estão arregalados, pergunto: poderia haver uma conexão entre o sobrenatural e a existência de seres que são perfeitamente naturais mas que, por estarem tão além da nossa compreensão, são indistinguíveis de entidades sobrenaturais?

Não acredito que seja o caso. Apesar de nossa cegueira parcial, já aprendemos muito sobre o mundo natural. Embora limitados, buscamos, rebuscamos e não encontramos nada. "Eles" podem estar rindo às nossas custas (se é que riem). Talvez não existam ou não nos deem a menor importância. Qualquer que seja a resposta, é bom poder continuar a especular. Talvez a cegueira seja nossa maior bênção.

domingo, 20 de maio de 2012

O que dinossauros nos ensinam





A história das colisões na Terra mostra que, se a história tivesse sido outra, não estaríamos aqui

Às vezes, a morte vem de lugares inesperados. Para um dinossauro que vivia há 65 milhões de anos, o maior perigo eram outros dinossauros, especialmente o "T. rex", que só temia outros como ele.

Porém, mesmo que algumas populações de dinossauros estivessem em declínio já antes da extinção, o que deu cabo deles foi a colisão cataclísmica de um asteroide de 10 km de diâmetro.

O impacto deixou uma cratera de 150 km na península de Yucatán, no México. É difícil imaginar que uma única colisão possa causar tamanho dano. Mas uma rocha que viaja a 30 km por segundo (150 vezes mais veloz do que um jato) deposita uma energia no seu impacto equivalente a 100 mil vezes a energia da detonação simultânea de todas as bombas termonucleares que existiam na Guerra Fria. O refluxo de matéria viajou até a metade da distância entre a Terra e a Lua.

Nuvens de poeira bloquearam o sol durante meses e a temperatura caiu vertiginosamente. Após a poeira se assentar, um efeito estufa acelerado fez com que a temperatura subisse rapidamente; mais de 50% das espécies desapareceram.

Esse não foi o único impacto na Terra ou o que mais destruiu a vida. Felizmente, esse tipo de colisão é raro, ocorrendo em média a cada 30 milhões de anos. Uma das mais recentes ocorreu em 1908 em Tunguska, na Sibéria, destruindo cerca de 30 km2 de floresta com a energia de 185 bombas de Hiroshima. Esse tipo de impacto, com frequência média de cem anos, pode causar sérios danos, mas não extinções globais. (No caso de Tunguska, o fragmento explodiu antes do impacto.)

Será que isso pode acontecer de novo? A Nasa tem um programa dedicado à caça de asteroides e cometas, com eficiência de cerca de 75%.

Asteroides ou cometas considerados ameaças globais podem ser detectados com dois anos de antecedência. Uma missão poderia ser enviada com o intuito de desviar a órbita do asteroide, evitando o impacto, como explico no livro "O Fim da Terra e do Céu".

A história das colisões que ocorreram na Terra nos ensina algo crucial sobre a vida: se a história tivesse sido outra, a vida aqui teria evoluído de forma diferente e não estaríamos aqui. Nossa existência é produto de eventos cósmicos de dimensão apocalíptica, acidentes que causaram mudanças drásticas nas condições terrestres, afetando as espécies e destruindo muitas delas.

Quando o balanço ecológico muda, mudam o equilíbrio dinâmico entre presa e predador e a distribuição de alimentos. A pressão ambiental leva a novas condições que vão beneficiar certas espécies em detrimento de outras.

Como cada planeta tem a sua história e nenhuma é idêntica, mesmo supondo que outras "quase-Terras" existam pela galáxia afora e que a vida exista nesses planetas, ela terá características diferentes. Consequentemente, humanos só existem aqui, resultado dos detalhes da história única de nosso planeta.

A história da vida num planeta reflete a história da vida do planeta. Como histórias planetárias não são duplicáveis num universo finito, somos únicos no Universo. Uma boa lição que os dinossauros nos ensinam, especialmente naqueles dias em que você não se sente lá muito importante.

domingo, 13 de maio de 2012

Ciência cara = bom investimento






Um mundo sem ciência ambiciosa fica privado de conhecimento novo e das aplicações das descobertas

Fazer pesquisa é caro, mas vale a pena. Vamos pensar apenas na ciência de base, ou seja, a ciência que não tem o objetivo imediato de ser "útil" via aplicações tecnológicas ou gerando riqueza, cuja meta é investigar a natureza. Quanto um país deve investir nesse tipo de pesquisa?

Quando se discute como equilibrar o orçamento da União, é crucial questionar como os fundos vindos do contribuinte devem ser usados. Afinal, existem necessidades críticas em educação, infraestrutura de transporte, modernização de hospitais, atendimento médico para milhões de necessitados etc.

Num ensaio recente na "New York Review of Books", uma prestigiosa publicação americana, o prêmio Nobel Steven Weinberg afirma que a solução nunca deve ser tirar dinheiro de áreas necessitadas para financiar pesquisa de base (ou qualquer outra). Por outro lado, o investimento na pesquisa de base deveria ser uma opção óbvia para qualquer país que pretende ter uma posição de liderança internacional.

No início do século 20, físicos lidavam com um modo inteiramente novo de interpretar a natureza. Einstein forçou uma revisão dos conceitos de espaço, tempo e energia. Planck, Bohr, Schrödinger e Heisenberg nunca poderiam ter imaginado que suas ideias revolucionárias sobre a física do átomo efetivamente redefiniriam o mundo em que vivemos. Deles veio a revolução quântica, que gerou incontáveis aplicações tecnológicas, incluindo todos os equipamentos digitais, dos computadores aos raios laser, fibras ópticas e tecnologias nucleares.

Em seu ensaio, Weinberg mostra sua preocupação com o futuro da ciência de grande porte, projetos que alcançam bilhões de dólares. Recentemente, o sucessor do Telescópio Espacial Hubble, o Telescópio Espacial James Webb, teve seu orçamento cortado. Após muito drama, o financiamento foi restituído, mas ficou a insegurança. No mundo das partículas, a bola está com a Europa e seu mega-acelerador, o LHC. Cientistas americanos se juntaram ao projeto depois de perceberem a possibilidade de seu acelerador nacional desaparecer.

Na minha opinião, cortar o fomento à pesquisa de base, incluindo projetos bem definidos de alto custo, é inadmissível. Um mundo focado no imediato, no pragmático, pode ser eficiente, mas é extremamente monótono. Imagine um mundo sem as descobertas sensacionais que andam sendo feitas sobre o Cosmo e os mistérios da matéria; um sem estrelas explodindo, sem galáxias colidindo e buracos negros.

Pior, imagine um mundo sem o que ainda não conhecemos e que nunca poderemos descobrir sem nossos instrumentos de exploração. Ademais, perderíamos todas as possíveis aplicações das descobertas.

Uma possibilidade é a de incluir cada vez mais países com fortes economias emergentes, como a China, a Índia e o Brasil, no fomento aos grande projetos. Esse é um dos argumentos a favor da inclusão do Brasil como país-membro do ESO (Observatório Europeu do Sul), uma discussão que deixo para depois.

Quando vejo as enormes quantias sendo gastas na defesa nacional, eu me pergunto se nossas prioridades no lado criativo ou destrutivo. Quando deixamos de investir no novo, ficamos condenamos a só olhar para o velho.

domingo, 6 de maio de 2012

Uma briga entre a física e a filosofia


A questão sobre a origem das coisas faz parte de todas as culturas. Será que a ciência pode resolvê-la?

Uma controvérsia vem se espalhando pela mídia americana. Qual a relação entre a ciência (mais propriamente a física) e a filosofia (mais propriamente da ciência)? Parece coisa meio arcana, mas não é.

Essa é uma briga antiga, reacendida quando o físico Lawrence Krauss publicou "O Universo do Nada: por que existe algo em vez de nada". Nele, Krauss explica como a física tem se aproximado de uma explicação para a pergunta sobre a origem de todas as coisas.

Sabemos que essa é uma questão antiga, parte de todas as culturas. Mas Krauss não dá bola para a antropologia cultural ou para a teologia e a filosofia. Para ele, exemplar típico da posição do "cientismo", só a ciência pode chegar a respostas úteis sobre esse tipo de questão.

O livro de Krauss foi demolido no "New York Times" pelo filósofo e físico David Albert, que questionou se Krauss entende o que significa o "nada". Resumindo, Albert argumenta que a física pressupõe a existência de campos fundamentais para definir sua versão do "nada". Portanto, esse não é o nada absoluto, mas é algo. A ciência só faz sentido quando definida sobre uma estrutura conceitual, começando pelas noções de espaço, tempo e energia.

Krauss respondeu em uma entrevista para o blog da revista "The Atlantic", chamando filósofos de idiotas. Arrependido, se desculpou na "Scientific American", algo extremamente embaraçoso.

Como descrevo no livro "A Dança do Universo", há apenas duas soluções para a questão da origem do Cosmo: ou ele surgiu em um momento do passado ou é eterno. Não é uma coincidência que universos eternos ou oscilantes ou com um começo apareçam tanto em mitos de criação quanto em modelos matemáticos do Cosmo. A diferença crucial é que, em ciência, podemos usar dados para diferenciar os modelos e decidir quais podem ser úteis.

O problema da origem de tudo nos remete à questão da Primeira Causa. Se descrevemos a realidade como uma sequência de eventos, ao irmos ao passado chegamos ao primeiro evento, o que por definição não tem uma causa.

Mitos de criação pressupõem entidades transcendentes, deuses além do espaço, do tempo e das leis da natureza. Se você se satisfizer com uma explicação sobrenatural do mundo, o problema acaba.

A ciência se opõe ao sobrenatural. Seu dogma central é que a natureza é inteligível: com a aplicação da razão, podemos construir explicações que podem ser testadas.

Será que a ciência pode então resolver a questão da origem de tudo? Os modelos que tentam fazê-lo usam conceitos da física quântica, onde o nada absoluto não existe.

Existe, sim, uma energia residual, que chamamos de energia de ponto zero. O vácuo é permeado por essa energia. O problema é que não sabemos como tratar dela. Quando aplicamos a física quântica ao Universo, a energia de ponto zero causa a implosão cósmica. Se isso fosse correto, não estaríamos aqui. Temos ainda muito o que aprender.

Ao mostrar a ciência de forma triunfal, Krauss confunde mais do que esclarece. Mesmo que tenha dito que questões continuam em aberto, o título do livro indica algo falso. Apesar dos avanços da ciência, modelos sobre a criação do Cosmo permanecem especulativos.