domingo, 30 de setembro de 2001

A revolução nanotecnológica

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Em sua tese de doutorado, Albert Einstein estimou a dimensão de uma molécula de açúcar. Usando dados experimentais sobre a difusão do açúcar em água, ele mostrou que cada molécula tem o diâmetro aproximado de um nanômetro, ou seja, um bilionésimo de metro. Essa escala de comprimento define, a grosso modo, uma fronteira fundamental na estrutura da matéria: estruturas maiores são essencialmente clássicas, isto é, descritas pelas leis da física clássica. Já estruturas menores são descritas pela mecânica quântica, desenvolvida durante as primeiras décadas do século 20 para descrever o comportamento de moléculas, átomos e partículas subatômicas.

Existem diferenças fundamentais e ainda misteriosas entre o comportamento de estruturas clássicas e quânticas. Por exemplo, é impossível determinarmos conjuntamente a posição e a velocidade de um elétron orbitando um núcleo atômico com grande precisão. Ou seja, quanto maior for a precisão da medida de sua posição, menor será a precisão da medida de sua velocidade. Esse fato, conhecido como Princípio de Incerteza, vem da íntima relação entre o ato de observar e o observado. No caso do elétron, para que possamos vê-lo, devemos interagir com ele, por exemplo, através de uma onda eletromagnética. Essa interação acaba dando um "empurrão" no elétron, alterando a sua posição.

De certa forma, o limite quântico é também um limite tecnológico. Podemos imaginar, como o fez o grande físico americano Richard Feynman em 1959, que seja possível construirmos máquinas com dimensões moleculares, ou nanomáquinas. Mas nada menor do que isso. Essa especulação de Feynman inspirou toda uma geração de físicos e engenheiros, que vem trabalhando ferozmente para transformá-la em realidade. A julgar pela quantidade de fundos dirigidos para a pesquisa em nanotecnologia, US$ 422 milhões nos EUA e US$ 835 milhões no resto do mundo só este ano, a revolução nanotecnológica está de vento em popa. Várias descobertas sensacionais vêm promovendo o entusiasmo cada vez maior dos cientistas e das agências financiadoras de pesquisa. Cientistas da IBM e de vários outros laboratórios de pesquisa conseguiram manipular átomos individualmente, rearranjando-os em padrões pré-determinados. Um dos caminhos a serem traçados é a substituição dos circuitos à base de silício por nanoestruturas. Outro é a utilização da nanotecnologia em biologia -materiais semicondutores de apenas alguns nanômetros já estão sendo usados para monitorar a atividade eletroquímica no interior de células. E as promessas para o futuro são ainda mais impressionantes.

Podemos imaginar que no futuro não muito distante será possível criar nanorrobôs capazes de efetuar obras de engenharia em escala atômica. Tudo o que preciso é suprir os robôs com os átomos necessários, uma fonte de energia e uma sequência de instruções.

Imagine que cada nanorrobô consista de 1 bilhão de átomos arranjados em uma estrutura extremamente complexa. Como ele atua em escalas muito pequenas, é possível que ele manipule outro bilhão de átomos por segundo, construindo uma nanomáquina qualquer -e por que não uma cópia exata de si mesmo? Ou seja, podemos imaginar nanorrobôs que possam se auto-replicar em apenas um segundo. Passados 60 segundos, um exército de em torno de um bilhão de bilhões de nanorrobôs teria sido criado. Ele poderia ser instruído para produzir CDs ou construir aviões, um grande avanço para a humanidade. Mas como eles seriam controlados? E se algo desse errado e alguém construísse nanorrobôs malignos, capazes de nos atacar, como parasitas? Em uma visão bem negra, o planeta inteiro terminaria coberto por essas máquinas, como por um enxame de abelhas.

Felizmente, problemas fundamentais podem impedir que nanorrobôs auto-replicáveis venham a existir, um deles sendo a própria escala em que eles operam. Como promover ligações entre dois átomos requer tremendo controle não só dos dois átomos, mas, também, de outros vizinhos, fica difícil criarmos um nanorrobô com braços suficientes para manter a ordem local. Afinal, os braços também são feitos de átomos e simplesmente não cabem no espaço disponível. Se a revolução nanotecnológica acontecer, provavelmente não será devido a esses nanorrobôs, mas talvez a outros, consideravelmente mais benignos.

domingo, 23 de setembro de 2001

Religião, ciência e terror

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É inevitável, após os terríveis acontecimentos do dia 11 de setembro, não refletir sobre suas causas e consequências. Meu plano original para a coluna de hoje, escrita dois dias após o incidente, era discutir as explosões mais violentas que ocorrem no Universo, conhecidas como explosões de raios gama. Aparentemente (não sabemos ainda ao certo), elas estão ligadas ao colapso de objetos estelares gigantescos. Especula-se que essas explosões, de uma fúria inimaginável, estejam relacionadas com o nascimento de galáxias, que por sua vez contêm milhões ou bilhões de estrelas.
Reaparece aqui uma característica fundamental da natureza, a profunda conexão entre destruição e criação, as duas inseparáveis e complementares. Pelo menos, assim pensava eu até o dia 11 de setembro. Hoje, já penso de uma maneira diferente.

A natureza não cria e destrói, ela transforma. São os homens que criam e destroem, e o fazem com apetite igualmente insaciável. O evento de 11 de setembro, quando dois símbolos da supremacia financeira e militar norte-americana foram alvos de ataques terroristas, me parece uma cruel inversão das cruzadas da Idade Média, quando os cristãos marcharam da Europa até Jerusalém para liberá-la do domínio islâmico. Os "Soldados de Cristo" mataram todos os judeus e muçulmanos que encontraram pela frente, em massacres absolutamente abomináveis. E isso em nome de sua religião, de sua profunda crença de que as suas ações homicidas eram perfeitamente justificadas pelo seu objetivo último, a busca pela redenção no dia do Juízo Final. Para os participantes das cruzadas, ao menos aqueles que não detinham interesses econômicos oportunistas, não havia uma distinção entre a realidade e a fantasia. Suas vidas eram parte do grande drama apocalíptico, que pregava que seu martírio e heroísmo seriam consagrados por toda a eternidade no paraíso.

O mesmo tipo de extremismo religioso leva os terroristas islâmicos a se suicidarem, explodindo bombas e aviões comerciais contra alvos do inimigo, matando milhares de pessoas. A guerra deles, o Jihad, é uma guerra tão santa quanto foram as cruzadas para os católicos da Europa medieval. E igualmente assassina e covarde.

A violência abominável desse evento nos mostra quão pouco nós realmente mudamos nos últimos mil anos. A ciência moderna, que tem apenas quatro séculos, transformou nossa civilização, mas não nosso espírito. Se antes usávamos lanças e espadas para matar, hoje usamos aviões e bombas. Nossa imaturidade como espécie jamais foi tão flagrante como agora. Vejo, tristemente, que os ensinamentos da ciência, que nos revelam de forma tão elegante a sabedoria da natureza, não foram capazes de influenciar e amenizar o extremismo religioso que dita o comportamento de tantos indivíduos, incluindo aqueles que optam por matar em nome de sua crença.

É importante discernirmos ciência como método de estudo do mundo natural dos usos que as pessoas fazem dela. A pesquisa imunológica descobre a cura para inúmeras doenças, mas também pode criar armas de destruição. A energia nuclear pode ser usada de forma responsável ou irresponsável, e assim por diante. Quando falo em ciência, falo do seu método de descoberta, de como nos apropriamos do conhecimento a respeito do mundo natural.

Esse método mostra, antes de mais nada, que ninguém é dono da verdade, que o conhecimento é acumulado a partir de um esforço conjunto, que envolve um trabalho de crítica e reavaliação constante, processo em que a única autoridade é o consenso final. Essa definição mostra que a ciência funciona de modo totalmente oposto ao extremismo religioso, em que a única verdade é baseada num dogma absolutamente rígido e inflexível e o debate é inexistente.

Parece-me que o extremismo religioso é uma forma de escravidão espiritual. Na medida em que toda a revelação deve ser aceita com base na fé, nada resta ao indivíduo senão aceitar passivamente essa "verdade", como um autômato que aceita os comandos de seu programa de computador. A ciência pode não ter todas as respostas, mas ao menos oferece autonomia ao indivíduo, fornecendo os instrumentos de sua liberdade. E, ao fazê-lo, nos ensina também a respeitar a vida e a lutar por sua preservação.

domingo, 16 de setembro de 2001

O dilema genético

Estamos todos, cientes ou não, querendo ou não, sendo arrastados pelo turbilhão causado pelas novas descobertas da engenharia genética. Sérias questões éticas, que deveriam ser discutidas por toda a sociedade, ocupam manchetes de jornais e revistas do mundo inteiro, relatando as maravilhas e os perigos da manipulação dos genes. Muitas pessoas encontram-se confusas, vítimas do inevitável sensacionalismo e da propagação de idéias erradas, sem saber como se posicionar perante as várias questões que emergem do agitado debate genético. Gostaria de tocar em alguns dos vários ângulos dessa questão, deixando clara ao leitor ao menos a minha posição.

Primeiro, os alimentos transgênicos. Sem a menor dúvida, engenhar vegetais capazes de sobreviver aos ataques de várias pragas e ainda de produzir bem mais por planta é de grande importância para a humanidade. Imagine como isso não ajudaria no combate a um dos maiores males que nos afligem, a fome. Vejo favoravelmente a manipulação genética da soja, do milho, ou de vários outros alimentos, contanto que eles não comprometam a estabilidade ecológica das regiões onde são produzidos.

Recentemente, cientistas na Universidade de Cornell nos EUA mostraram que larvas da borboleta monarca que se alimentam do pólen de milho transgênico morrem envenenadas. Caso esses resultados sejam confirmados em estudos mais detalhados, temos um sério problema em nossas mãos: um distúrbio no equilíbrio da cadeia alimentar pode ter várias consequências ecológicas, que nem temos hoje como prever. A solução não é proibir os transgênicos, mas exigir um estudo detalhado de seu impacto ecológico antes que sua produção em massa seja iniciada (ou continuada). A natureza é mais frágil do que parece.

A questão ética complica muito quando a aplicação da engenharia genética vai do reino vegetal ao animal. A clonagem de vários animais já é uma realidade: ovelhas, vacas, porcos etc. Não é surpresa alguma que se fale agora na clonagem de humanos. A iniciativa veio de um médico italiano, mas poderia ter vindo de qualquer outro mais interessado no oportunismo do que no código hipocrático. Aparentemente, ele já conseguiu 200 mulheres dispostas a participar do experimento, que poderá se dar até em águas internacionais, para que sejam evitadas as legislações proibitivas de vários países. Espero que o navio jogue tanto que as pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas.

Em conversas com vários profissionais da área, ficou claro o desdém que a maioria tem por esse tipo de aplicação. Argumentos baseados em infertilidade não são, a meu ver, relevantes. Se, de fato, todos os métodos de fertilização falharem, que o casal adote uma criança, pois essas em necessidade é que não faltam. Riscos e prováveis consequências da clonagem humana são horrendos demais e não são justificados pelos potenciais benefícios.

Por outro lado, o uso das células-tronco é, a meu ver, mais do que justificado. Essas células, retiradas de blastocistos, embriões com alguns dias de vida, têm a capacidade de se transformar em qualquer célula especializada do corpo. Assim sendo, elas podem substituir células de vários tecidos e órgãos, como coração, pâncreas e sistema nervoso, oferendo a possibilidade de curar um sem-número de doenças, incluindo câncer, doença de Alzheimer, mal de Parkinson, diabetes e defeitos congênitos, entre muitas outras.

O problema é que as células-tronco devem ser retiradas de embriões, que são destruídos no processo. Os críticos argumentam que a destruição dos embriões equivale a assassiná-los, que um embrião é já uma quase-pessoa. Mas eles esquecem que os embriões utilizados como doadores de células-tronco são aqueles rejeitados pelas clínicas de fertilidade, os que não são implantados no útero da mãe. Portanto, eles seriam "destruídos" de qualquer modo, ou congelados e esquecidos. Como negar a possibilidade de restituir a vida a tantos que sofrem, baseando-se na preservação de embriões que serão destruídos? Ao menos, como doadores de suas células-tronco, esses embriões estarão participando de outras vidas, dando nova chance a milhões de doentes mundo afora. A escolha é clara.

domingo, 9 de setembro de 2001

Canibalismo galáctico

Nos últimos 20 anos, a astronomia extra-galáctica vem revelando uma série de propriedades inesperadas sobre a distribuição de galáxias no Universo. É incrível que até 1924 não se sabia ao certo se a Via Láctea era a única galáxia no Universo, ou se existiam outras como ela. Usando o telescópio de 100 polegadas (a medida refere-se ao diâmetro do espelho coletor de luz) situado no topo do Monte Wilson, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble mostrou que muitas das nebulosas visíveis não eram parte da nossa galáxia, mas sim galáxias tão vastas e complexas quanto a nossa.

Hoje, sabemos que o Universo visível contém centenas de bilhões de galáxias, cada uma delas com centenas de bilhões de estrelas. No mínimo, a vastidão cósmica nos inspira uma profunda humildade: uma espécie inteligente, orbitando uma estrela relativamente medíocre, em uma galáxia que, apesar de belíssima, não tem nada de especial. O que é especial é a nossa capacidade de compreender o cosmo a partir de um planeta insignificante, usando apenas a nossa criatividade, motivada por uma atração irresistível pelo desconhecido.

O famoso filósofo alemão Immanuel Kant foi o primeiro a propor um mecanismo físico para a formação de galáxias. Em um ato de extrema coragem intelectual e profunda intuição, Kant visualizou o nascimento de galáxias a partir da contração gravitacional de gigantes nuvens de gás. A combinação da contração com o movimento de rotação da nuvem gera uma forma achatada, que é típica não só de várias galáxias, mas também de sistemas solares como o nosso, onde as órbitas dos planetas em torno da estrela central localizam-se aproximadamente em um disco, como em uma pizza. Kant especulou que a mesma estrutura hierárquica se repete através do Universo, desde os planetas com suas luas até as galáxias com suas inúmeras estrelas.

No entanto, ainda não sabemos ao certo como nascem as galáxias. Existem duas teorias básicas. Uma diz que galáxias como a Via Láctea nascem da contração de uma única nuvem de gás que vai se achatando aos poucos, de forma semelhante ao que propôs Kant. Uma outra teoria, a mais aceita atualmente, diz que a história de uma galáxia é extremamente rica e variada. Tal qual a história de uma grande cidade através de centenas anos, onde escavações e a comparação de mapas revelam mudanças estruturais e crescimento através da incorporação de subúrbios e cidades-satélite, as galáxias revelam uma grande variação na população e nas propriedades de suas estrelas. O estudo dessas variações indica que uma galáxia com as dimensões da Via Láctea é o resultado da incorporação de várias outras galáxias durante os bilhões de anos de sua existência. Esse fenômeno é conhecido como "canibalismo cósmico", com as galáxias maiores devorando as galáxias menores.

A confirmação observacional dessas teorias de canibalismo cósmico é difícil, mas vem avançando. Mesmo que o Sol e a maioria das estrelas na Via Láctea girem em torno do centro galáctico em órbitas ocupando um disco, outras habitam um halo aproximadamente esférico que circunda o disco. Mais ainda, as estrelas no halo são em geral mais velhas do que as estrelas no disco galáctico, sugerindo a possibilidade de duas épocas de formação da galáxia.

Para complicar as coisas, nos últimos dez anos astrônomos descobriram que as estrelas no halo exibem padrões de comportamento bastante anômalos. Algumas são extremamente jovens, enquanto que outras, embora separadas por enormes distâncias, parecem movimentar-se conjuntamente, como uma esquadrilha de aviões. Até mesmo pequenas galáxias parecem estar "submersas" dentro de nossa galáxia. Finalmente, o disco onde o Sol está não é o único, mas parece ser dividido em três, como uma torta de três camadas.

Essa rica estrutura de nossa galáxia é provavelmente o resultado de uma evolução gradual e não de um processo de formação único, favorecendo as teorias de canibalismo galáctico. Aparentemente, o apetite de nossa galáxia está já bastante satisfeito: medidas de velocidades de estrelas no disco sugerem que a última grande absorção de uma galáxia satélite ocorreu há 12 bilhões de anos, durante a infância galáctica. Mas isso não significa que absorções menores não estejam ainda ocorrendo. Como tudo mais no Universo, nossa galáxia é um projeto contínuo, em constante transformação.

domingo, 2 de setembro de 2001

Inteligência artificial segundo Spielberg

Uma das questões teológicas mais conhecidas é: "Se Deus é perfeito, por que sentiu a necessidade de criar Adão e Eva?" A resposta, ou ao menos uma delas, é que Deus criou o homem e a mulher para que eles pudessem amá-lo. Nesse caso, Deus revela uma vaidade um tanto imperfeita e embaraçosa, que dá pano para várias mangas eclesiásticas. Essa pergunta, sem o último comentário, aparece no início do novo filme de Steven Spielberg, "Inteligência Artificial". O ator William Hurt representa o cientista genial que desenvolve um método para codificar emoções em redes neurais implantadas em robôs que são externamente indistinguíveis de seres humanos. Em outras palavras, o filme trata da possibilidade de criarmos máquinas que, para todos os propósitos, se comportam como seres humanos e se assemelham a eles, nossos próprios Adão e Eva.

Se, por um lado, é difícil entender a motivação divina em criar os homens, no nosso caso a motivação é trivial: nós somos seres vaidosos, com uma profunda necessidade de amar e ser amados. E, ainda mais importante, nós somos mortais, e nossa mortalidade é causa de grande sofrimento. De certa forma, a morte é o triunfo final da Natureza sobre a criatividade humana -a menos que, claro, a ciência possa driblar a morte.

Esse é, essencialmente, o tema do filme de Spielberg. As máquinas que amam e sonham criadas pelo cientista são cópias idênticas de seu filho já falecido. Se não nos é possível perpetuar a vida, podemos ao menos imitá-la. O problema é que o cientista se esqueceu de um detalhe fundamental: as máquinas que amam e sonham são essencialmente imortais, condenadas a sofrer a perda dos entes amados para sempre. Na ânsia de amenizar a dor de sua perda, o cientista egoísta condena a sua criação a sofrer da mesma dor. E sem o alívio que vem com a morte.

O filme nos alerta para vários perigos futuros, todos consequência do uso cego e desenfreado da ciência. Grande parte do mundo, em particular as regiões costeiras, jaz submersa pelo aumento do nível do mar provocado pelo efeito estufa; a recriação de Nova York parcialmente sob as águas é tecnicamente espetacular. A narrativa do filme é estruturada como um conto de fadas, traçando as aventuras de um robô-criança capaz de amar e sonhar, cujo maior desejo é, como Pinóquio, tornar-se um menino de verdade.

Conforme fica claro no filme, se os humanos são capazes de criar máquinas que sentem e amam, não é óbvio que eles serão também capazes de amá-las. As máquinas não são vistas como animais de estimação, mas como uma ameaça à hegemonia dos humanos na Terra: afinal, se máquinas imortais e inteligentes podem existir, qual é a vantagem de preservar a espécie humana? A criação pode vir a dominar o criador, suplantando a necessidade de sua existência, numa repetição do tema já abordado em "Frankenstein", escrito no início do século 19. A crise entre criador e criatura surge quando o "monstro" pede ao seu criador por uma companheira. Apavorado com a possibilidade de criar uma raça de monstros que possa suplantar a raça humana, o dr. Frankenstein nega-se a ajudar sua criatura.

Como o cientista no filme de Spielberg, o pobre doutor esqueceu que a solidão é a maior punição da imortalidade.
Estamos ainda longe de criar máquinas capazes de pensar. O cérebro humano não funciona como um computador comum, com uma central única de processamento de dados. A origem do que chamamos de mente, ou de consciência, permanece ainda um mistério. Mas nossa ignorância atual não é uma garantia para o futuro: possivelmente, o desenvolvimento das ciências cognitivas nas próximas décadas, acoplado ao desenvolvimento da capacidade computacional dos microprocessadores, irá criar uma nova geração de máquinas que se aproximarão cada vez mais dos robôs sensíveis de Spielberg.

Mesmo que o filme deixe várias questões em aberto, ele nos convida a uma reflexão sobre o que significa criarmos cópias imortais de nós mesmos. Talvez seja uma boa idéia criarmos máquinas que envelheçam e morram. Caso contrário, nossas criações irão se tornar divinas, imortais e perfeitas. E seremos nós as entidades supérfluas.