domingo, 25 de junho de 2000

Ciência e moralidade

O físico J. Robert Oppenheimer, que chefiou a construção da bomba atômica norte-americana entre 1942 e 1945, registrou sua reação após o sucesso do primeiro teste, em palavras que são, hoje, famosas: "Eu lembrei-me de uma linha do Bhagavad-Ghita, as Escrituras hindus, onde o deus Vishnu diz, "Agora tornei-me a Morte, destruidora de mundos'". Uma invenção usando conceitos desenvolvidos por físicos interessados em entender o funcionamento do núcleo atômico transformou para sempre a história da humanidade. Os homens se transformaram na encarnação destrutiva de Vishnu, o Destruidor de Mundos.

A construção da bomba mostra o quanto a ciência não pode ser separada da sociedade em que está sendo desenvolvida. A idéia que ciência pode se desenvolver ignorando a realidade política à sua volta é um mito extremamente inocente. A mobilização do governo norte-americano iniciou-se após cartas enviadas por físicos para o presidente Roosevelt. Essas cartas sugeriam que armas de destruição de massa poderiam ser desenvolvidas por cientistas trabalhando para Hitler. O Projeto Manhattan, como ficou conhecido, representou uma enorme concentração de recursos financeiros e burocráticos, sob supervisão militar. Os físicos viam sua missão com heroísmo: construir a bomba antes dos nazistas e assim ganhar a guerra. Maquiavelicamente, o fim justificava os meios. Foi selado um pacto político entre ciência e governo. Mesmo que a razão principal de sua construção, a ameaça nazista, estivesse efetivamente derrotada quando a bomba ficou pronta, e os japoneses, se não derrotados, estivessem à beira da derrota, outra "ameaça" surgiu no mundo: os soviéticos e sua política expansionista. Se a primeira bomba terminou a guerra com o Japão, a segunda serviu de aviso aos soviéticos.

A construção da bomba não marcou a primeira contribuição entre cientistas e governo. Arquimedes, em torno de 250 a.C., ajudou o reino de Siracusa, criando catapultas e outras máquinas bélicas. Essa relação entre ciência e política é inevitável: ciência custa caro, e a indústria, com seu interesse em lucros a curto prazo, não pode se dar ao luxo de financiar grandes projetos. O que motiva governos a financiar projetos gigantes e extremamente custosos como a Estação Espacial, ou o Projeto Genoma Humano? O desenvolvimento de hegemonia tecnológica e, portanto, o domínio dos mercados econômicos; a geração de milhares de empregos; o controle político que vem como consequência dessa hegemonia tecnológica. Ah, quase que esqueço, o desenvolvimento da ciência, claro.

Existe também a ciência de menor escala, menos custosa mas nem por isso menos inventiva. Em condições ideais, ambas deveriam coexistir. Nos dois tipos de ciência, o cientista se depara com sérias questões morais. Em época de guerra, como durante o Projeto Manhattan, valores morais podem ser comprometidos pelo contexto de "vida ou morte". Não acredito que a maioria dos cientistas em Los Alamos teria optado por essa linha de pesquisa na ausência de um conflito mundial. Até que ponto a pesquisa deve -ou pode- ser "controlada"? Faz sentido impor limites ao progresso científico? Eu acho que não; o que foi pensado, jamais será "des-pensado"; invenções, censuradas aqui, reaparecerão ali. A bomba teria sido inventada mais cedo ou mais tarde. A clonagem de humanos será inventada mais cedo ou mais tarde. As decisões morais devem partir da honestidade de cada cientista em alertar a sociedade para as consequências de suas invenções, acima de compromissos políticos. Para isso, a sociedade tem de estar preparada para optar pelo seu próprio futuro. Moralidade parte do indivíduo e termina em uma sociedade educada.

domingo, 18 de junho de 2000

Imagens do cérebro

O que se passa em nossos cérebros quando pensamos? Será que podemos visualizar o foco de doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia ou a obsessão compulsiva, por meio de máquinas capazes de representar a atividade cerebral em imagens? O cérebro é um dos mistérios da ciência moderna. Podemos até argumentar que, como tudo que criamos e sentimos se origina no cérebro, o cérebro é o maior mistério da ciência!

No nível fundamental, o cérebro é uma coleção de uns 100 bilhões de neurônios, células que transmitem impulsos elétricos através de um delicado balanço químico em suas sinapses, ou junções. Estímulos sensoriais captados por vários sistemas -a visão, a audição etc.- são traduzidos em impulsos elétricos, que por sua vez são enviados a partes diferentes do cérebro, onde um mapa da realidade é recriado pela ação de vários grupos de neurônios espalhados nos dois hemisférios. No nível fenomenológico, podemos definir o cérebro como um dispositivo de recriação da realidade. Mas essa definição é insuficiente, pois o cérebro é também capaz de criar realidades de "dentro para fora", mundos imaginários que existem apenas no indivíduo, ou também de recriar realidades, a memória. Daí que devemos ampliar nossa definição do que é o cérebro para um dispositivo capaz de criar realidades: as de fora para dentro, as de dentro para fora, e as recriadas pela memória. O problema é como isso é possível.

A arquitetura do cérebro é uma expressão da sua complexidade; não só o número de neurônios é enorme, mas as variações entre neurônios, o número de suas terminações (os dendritos), o comprimento do seu eixo principal (o axônio) são, também, riquíssimas. Felizmente, descobriu-se que muitos neurônios tendem a se agrupar de acordo com suas funções, em módulos especiais. Por exemplo, na área do córtex visual, esses módulos podem ter 0,1 mm de extensão e mais de 100 mil neurônios. Esse arranjo sugere que muitos neurônios agem em grupos. Uma imagem que vem em mente é uma árvore de Natal, luzes piscando aqui e ali, representando milhares de neurônios trabalhando para criar o que chamamos de mente.

Para entendermos o funcionamento do cérebro, temos de visualizá-lo em ação, representar sua atividade de forma dinâmica. O que acontece no cérebro quando uma pessoa lê alguma coisa, faz um cálculo, fala, ouve ou vê? Nos últimos 30 anos, uma série de tecnologias vindas da física vem causando uma revolução em nossa compreensão do cérebro e de seu funcionamento. Uma delas, a tomografia por emissão de pósitrons (PET), usa substâncias radioativas, injetadas na corrente sanguínea da pessoa, para monitorar mudanças no metabolismo cerebral, no fluxo de sangue em diferentes regiões ou na distribuição de substâncias químicas responsáveis pela transmissão de impulsos. As substâncias radioativas emitem uma partícula chamada pósitron, um elétron com carga positiva, que se choca com elétrons após viajar por curtíssimas distâncias. Essas colisões criam pares de fótons -as partículas da radiação eletromagnética- que são detectados por câmeras situadas em torno da cabeça do indivíduo. Com isso, usamos o decaimento radioativo de uma substância, e os vários processos de colisão que se seguem, para construir uma imagem da atividade cerebral. A resolução espacial do PET é de milímetros e a resolução temporal, de segundos.

Outra técnica é a imagem por ressonância magnética, ou MRI, que tem uma resolução espacial semelhante à PET, mas uma resolução temporal dez vezes mais rápida.

A última novidade no assunto é o magnetoencefalograma (MEG), que mede as minúsculas correntes elétricas no cérebro passando entre grupos de neurônios, com uma resolução espacial de milímetros e temporal de milésimos de segundo! O MEG permite a visualização da ação coletiva de grupos de neurônios, a base estrutural da mente. Combinando essas técnicas, que usam o micro para visualizar o macro, o cérebro fica um pouco menos misterioso. Mas, por enquanto, não muito!

domingo, 11 de junho de 2000

Um pouco de caos é sempre bom

A física newtoniana, esse grande triunfo da racionalidade humana baseado nas teorias que o inglês Isaac Newton desenvolveu no século 17, criou uma visão de mundo fundamentada em um determinismo restrito: em um sistema físico qualquer, por exemplo, se conhecermos todas as posições e velocidades dos planetas orbitando o Sol em um determinado momento, poderemos prever as posições futuras ou reconstruir seus movimentos no passado remoto. Tal era a confiança nessa formulação mecânica do cosmo que, no início do século 19, o francês Pierre-Simon de Laplace declarou que, se uma "supermente" soubesse a posição e velocidade de todas as partículas do Universo, ela poderia prever todos os eventos futuros!

Nesse mundo de certezas, nada mais antipático que um problema sem solução. Como calcular os movimentos quando três corpos interagem gravitacionalmente, como um planeta em um sistema binário, isto é, com duas estrelas? (Contrariamente ao nosso Sol, cerca de 80% das estrelas aparecem em pares.) Esse problema, que parece simples, não tem solução exata. Cálculos em computadores indicam que as órbitas possíveis são caóticas, muito sensíveis às condições iniciais: uma pequena mudança na distância entre as estrelas ou na velocidade inicial do planeta gera uma órbita totalmente diferente. Um sistema simples pode ter comportamento complexo.

Essa sensibilidade às condições iniciais é uma das marcas registradas dos sistemas caóticos. Contrariamente ao uso comum da palavra, que significa o oposto de ordem, caos em um sistema físico representa um comportamento que, apesar de complexo, não é inteiramente desorganizado. Há uma persistência no comportamento do sistema, uma obediência a certos vínculos, que não existe em um sistema aleatório.

O clima é um exemplo de sistema caótico: é impossível prever com precisão qual será o clima em três ou quatro dias, mesmo que tenhamos uma quantidade enorme de dados e equações descrevendo os movimentos dos gases na atmosfera, o fluxo de calor, as diferenças de pressão etc.

Qualquer variação em um determinado local pode afetar o clima em outro local distante. Esse é o chamado "efeito borboleta", expressão cunhada por Edward Lorenz nos anos 60: o bater das asas de uma borboleta no Quênia pode afetar o clima no Canadá. Como jamais saberemos todos os detalhes que podem influenciar o clima mundial, jamais seremos capazes de prevê-lo perfeitamente. As equações continuam sendo determinísticas, mas o poder de previsão não é mais absoluto, como gostaria Laplace.

Por outro lado, o clima não é completamente louco; não neva no Rio de Janeiro (em São Paulo nunca se sabe). Há um limite para o caos climático. Esse mesmo comportamento aparece em outros sistemas que possuem a chamada não-linearidade, a propriedade de responder a estímulos de forma irregular. Em um sistema linear, a resposta é proporcional ao estímulo: se você chutar uma bola duas vezes mais forte, ela irá duas vezes mais longe. Em um não-linear, a situação é mais complicada; um estímulo menor pode causar uma resposta maior. A não-linearidade e a forte dependência das condições iniciais são dois ingredientes fundamentais dos sistemas caóticos.

Novas ferramentas foram criadas para estudar esses sistemas, que, em vez de uma descrição reducionista, usam métodos que dão uma informação global do sistema. Sistemas não-lineares têm comportamentos muito ricos; na verdade, eles é que são a regra da natureza. Sua propriedade mais importante é a emergência de ordem a partir de desordem. Furacões são um exemplo; a não-linearidade do sistema de gases atmosféricos conspira para formar um funil onde o ar se comporta de modo organizado. O mesmo efeito aparece no famoso "olho" de Júpiter, outro furacão gigantesco, resultado da auto-organização dos gases presentes em Júpiter. Sem caos, a natureza seria muito sem graça; um pouco de caos é sempre bom.

domingo, 4 de junho de 2000

Profecias e a estabilidade do Sistema Solar

O mundo deveria ter terminado no mês passado. Para ser mais explícito, no dia 5 ou no dia 17. Ao menos assim previam certas "profecias" apocalípticas. A causa? Um raro alinhamento dos planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno com a Lua e o Sol no dia 5 e outro, um pouco menos dramático, no dia 17. Este último é mais uma convergência de planetas em uma região do céu compreendendo um arco de 19 graus do que um alinhamento propriamente dito, que seria equivalente a ter os planetas localizados em uma linha reta imaginária passando pela Terra.

Profecias como essa não são nenhuma novidade; a história está cheia de visões do fim do mundo, dilúvios, pragas e cataclismos os mais diversos, em geral consequência da ira divina. A passagem do ano 2000 foi encarada com um certo temor generalizado, uma mistura de profecias bíblicas com o possível caos tecnológico que seria causado por computadores, confundindo o ano 2000 com o ano 1900. Bilhões de dólares foram gastos e praticamente quase nada de caótico realmente aconteceu. Interessante essa adaptação de um simbolismo apocalíptico, uma herança religiosa, em um temor causado por uma tecnologia que acaba por nos controlar, o monstro destruindo seu criador, numa versão digital do mito do Dr. Frankenstein e sua criatura.

Até que ponto devemos levar a sério essas previsões de fim de mundo devido a alinhamentos planetários? A "causa" por trás da profecia é, claro, a força gravitacional; como cada planeta atrai a Terra em proporção à sua massa e em proporção inversa ao quadrado da sua distância, um alinhamento representaria uma maximização dessa atração, especialmente se todos os planetas estiverem do "mesmo lado", numa espécie de cabo de guerra planetário, a Terra contra o resto do Sistema Solar. O problema com essas profecias é que elas ignoram os números que resultam da simples aplicação da lei da gravitação aos alinhamentos. Vamos fazer algumas comparações: o astro que domina a dinâmica gravitacional do Sistema Solar é o Sol. podemos então estabelecer uma escala, onde a atração gravitacional entre o Sol e a Terra representa uma unidade, ou seja, com valor 1. A atração da Lua sobre a Terra é em torno de 5,6 milésimos da atração do Sol, ou, em nossa escala, 0,0056; a atração de Marte sobre a Terra é de 0,0000012; a atração de Júpiter sobre a Terra é de 0,000056; a atração de Saturno, 0,000004. Conclusão: mesmo se somarmos essas atrações, o resultado final é completamente desprezível. A atração gravitacional exercida pelos planetas sobre a Terra não irá causar cataclismos quando combinada durante esses alinhamentos.

A exploração econômica dessas profecias também é interessante, se não fosse trágica. Trágica porque milhares de pessoas, mal informadas com relação à ciência por trás desses fenômenos, os levam realmente a sério e gastam seu dinheiro e sua saúde em "serviços" de apoio aos cataclismos iminentes. Por exemplo, nos EUA existe um serviço privado chamado "Survival Center" (centro de sobrevivência), com endereço na Internet, que "previu" terremotos, maremotos e ventos de até 3.000 km/h causados pelo alinhamento do dia 5 de maio! Claro, o mesmo centro de sobrevivência também oferece vários produtos que podem ser extremamente úteis nessas circunstâncias, como geradores a gasolina, rádios a energia solar e velas com duração de seis dias. Como literatura de apoio, o portal oferece o livro "5/5/2000 Gelo: O Derradeiro Desastre", onde seu autor prevê que o alinhamento irá causar o degelo das calotas polares, que por sua vez causará enchentes comparáveis às de Noé.

Profecias à parte, desde o século 18 cientistas têm estudado a questão da estabilidade do Sistema Solar; já que a força gravitacional é atrativa, será que os planetas permanecerão em órbitas estáveis indefinidamente, ou será que eles escaparão da atração solar? Ou cairão no Sol? Em 1892, o matemático francês Henri Poincaré, após uma análise do problema, concluiu que não era possível assegurar a estabilidade do Sistema Solar. Técnicas mais modernas mudaram o veredicto positivamente, se incluirmos apenas forças gravitacionais. Infelizmente, efeitos dissipativos podem alterar esses resultados, causando uma futura instabilidade. Mas esses efeitos são muito, muito pequenos, e nada acontecerá por milhões de anos. No mínimo.