domingo, 26 de abril de 1998

As janelas para os céus e nossa concepção de Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

As ciências astronômicas dividem uma característica que lhes é muito peculiar: a aparente falta de "controle experimental". Enquanto em outras ciências naturais, como física, química ou biologia, podemos em geral testar a maioria das idéias e das teorias no laboratório, com as ciências astronômicas, o processo de averiguação de idéias deve ser bem diferente. Afinal, não podemos repetir a formação de uma estrela, de um sistema solar ou de um planeta no laboratório!

O problema, obviamente, está ligado às dimensões e às distâncias dos objetos celestes. Muitas vezes, essa aparente dificuldade das ciências astronômicas leva pessoas a duvidar de sua credibilidade. Não é raro ouvir comentários do tipo: "Mas como podemos acreditar nesses astrônomos e em seus telescópios? Como podemos acreditar em teorias que não podem ser testadas no laboratório?"

Eu me lembro, ainda menino, quando vi na televisão o astronauta norte-americano Neil Armstrong dar seus primeiros passos na Lua. Nossa cozinheira, que assistia à transmissão conosco, gritou incrédula, "Vixe Maria!! Isso é tudo um truque lá de Oliud!"

O "truque" não foi de "Oliud", mas da agência espacial americana Nasa, que conseguiu tal feito tecnológico. Nesses 30 anos passados desde que a humanidade, ou pelo menos nosso representante, deu sua primeira saltitante caminhada em nosso satélite, muito foi feito para que obtivéssemos uma visão cada vez mais acurada do Universo à nossa volta.

Nós observamos o Universo não só por meio do que podemos ver, mas também de várias outras janelas do espectro eletromagnético, invisíveis aos nossos olhos, de ondas de rádio até os raios X e gama. Objetos celestes emitem radiação eletromagnética em várias frequências, ou energias, diferentes. Muitas vezes, a fonte de radiação esconde-se por trás de uma cortina de gás que a torna invisível. Apenas por meio de outras radiações essa fonte pode ser "observada". (Não precisamos "ver" um incêndio para sentirmos o calor que é gerado.)

Isso acontece na região central de galáxias, onde gases quentes obscurecem a observação do movimento de estrelas. Nesse caso, seu estudo é feito por meio de outros tipos de radiação eletromagnética, como, por exemplo, os raios X.

Essas emissões, extremamente energéticas, são a melhor evidência de que no centro de galáxias, incluindo a nossa, existem buracos negros gigantes com massas milhões de vezes maiores do que a do Sol.

E quem assistiu ao filme "Contato" sabe que o Universo está repleto de ondas de rádio, mesmo que elas possivelmente não tenham sido geradas por uma civilização extraterrestre, mas sim por inúmeras outras fontes, incluindo algumas com nomes excêntricos, como "pulsares" ou "quasares".

Essas várias janelas para os céus mudaram profundamente nossa concepção do Universo. De uma entidade relativamente pacata, o Universo se transformou em um caldeirão de ação, onde umas estrelas chocam-se com outras, buracos negros devoram estrelas e gás com um apetite infinito, e objetos não muito maiores do que o monte Everest, mas com massas semelhantes à do Sol, giram sobre si mesmos em um milionésimo de segundo (os pulsares). É claro, o próprio Universo está em expansão.

Modelos matemáticos são propostos e analisados, para tentar reproduzir os detalhes das várias observações. Em muitos casos, como, por exemplo, o dos pulsares, somos extremamente bem-sucedidos. Já em outros, temos ainda muito o que aprender. Mas uma coisa é certa: a observação e a análise de fenômenos distantes é tão eficaz como método de descoberta quanto experiências no laboratório. Caso contrário, o Universo permaneceria para sempre uma grande incógnita para nós.

domingo, 19 de abril de 1998

O colapso gravitacional e o nascimento de planetas

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Há cerca de 5 bilhões de anos, uma enorme nuvem de gás, composta principalmente de hidrogênio e hélio, começou a colapsar sobre si mesma, devido à sua própria gravidade. Durante o colapso, certas regiões da nuvem tornaram-se progressivamente mais densas, atraindo matéria de regiões vizinhas. A essa mistura, devemos adicionar a rotação da nuvem, parcialmente preservada no colapso.

A combinação de colapso e rotação tem um efeito dinâmico muito interessante. Em vez de a nuvem encolher como um balão furado, preservando sua forma aproximadamente esférica, ela, aos poucos, vai se alongando na região equatorial, ficando cada vez mais achatada nos pólos, até que quase toda a matéria fique concentrada entre dois planos na forma de um disco, um pouco semelhante ao que vemos em torno de Saturno.

No centro do disco, uma concentração maior de matéria assume uma forma esférica, o protótipo de uma estrela que está prestes a nascer, juntamente com sua corte de planetas.
A causa inicial do colapso da nuvem de gás não é muito clara.

Uma das possibilidades mais aceitas é que ele seja provocado pela explosão de uma estrela vizinha. Caso essa hipótese esteja correta, a morte de uma estrela causa o nascimento de outra, em um ciclo de criação e destruição que se propaga pela galáxia.

A idéia de que a formação de um sistema solar ocorra devido ao colapso de uma nuvem gasosa, cujo achatamento em forma de disco é causado por sua rotação, não é nada nova. Em 1755, o grande filósofo alemão Immanuel Kant deixou um pouco de lado sua pesquisa epistemológica e propôs esse mecanismo em sua obra intitulada "História Natural Universal e Teorias dos Céus". Suas idéias foram posteriormente refinadas pelo matemático e astrônomo francês Pierre Simon de Laplace.

Vale a pena uma pequena interrupção para relatar um episódio da vida de Laplace que ilustra sua suprema confiança no poder da razão para desvendar os mistérios do cosmos.
Laplace havia completado um tratado notável sobre mecânica celeste, em que ele aplicara conceitos de mecânica e gravitação newtonianas para calcular com grande detalhe e precisão os movimentos dos corpos celestes do Sistema Solar. Um dos presenteados com uma cópia da obra foi Napoleão Bonaparte.

Após examinar a obra, Napoleão disse a Laplace (versão levemente romanceada do evento): "Monsieur Laplace, apreciei muito sua obra "Mecânica Celeste', mas percebi, com certo desconforto, que o senhor jamais menciona o Criador." Ao que Laplace respondeu: "Caro Imperador, não tenho necessidade dessa hipótese".

Em sua obra, Kant descreve o processo de formação planetária a partir do que chamamos hoje de disco protoplanetário: "Nós vemos uma região do espaço estendendo-se do centro do Sol até distâncias enormes, contida entre dois planos bastante próximos (o disco protoplanetário)". Dentro dessa região, a "atração mútua de matérias elementares" causa o agregamento progressivo de partículas do tamanho de pedregulhos, culminando na formação de planetas.
Hoje, temos ampla evidência observacional de que discos protoplanetários existem em torno de estrelas jovens. Para confirmarmos a hipótese de Kant-Laplace, basta encontrarmos planetóides em formação no disco.

No entanto, existem vários problemas ainda em aberto. Como passar do agregamento de pedregulhos até massas planetárias? Por que o Sistema Solar tem planetas gigantes em órbitas externas, enquanto outros, recentemente observados, têm planetas gigantes em órbitas tão próximas de seu sol como Mercúrio do Sol? Explicações não faltam, e algumas delas serão discutidas em colunas futuras. Apesar do otimismo de Laplace, é sempre bom lembrarmo-nos do quanto não sabemos a respeito do Universo a nossa volta.

domingo, 12 de abril de 1998

Roubando o segredo dos deuses

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

No início do século 19, o poeta inglês Lord Byron reuniu alguns amigos em sua casa em Lausanne, na Suíça. Estavam presentes o também poeta inglês Percy Bysshe Shelley, sua esposa, Mary Shelley, e o médico de Byron, um misterioso tipo conhecido como Doutor Polidori.
Durante uma noite tempestuosa, Byron propôs um "passatempo literário": cada um deveria escrever uma história de terror, que seria então lida aos demais.

É curioso que as histórias que se tornaram um marco na literatura gótica não foram escritas pelos famosos poetas, mas pelo misterioso Doutor e Mary Shelley. Polidori escreveu um conto sobre vampirismo, que teria inspirado, entre outros, o famoso "Drácula", de Bram Stoker, escrito já no final do século.

Mas é a história de Mary Shelley, sobre um médico enlouquecido que dá vida a um cadáver, bombardeando-o com eletricidade produzida por raios, que nos interessa aqui. Doutor Frankenstein pagou caro por ter "abusado" de seus poderes mortais. A lição moral da história é que a criação da vida não é território dos homens, mas sim dos deuses ou, naquele caso, de Deus. E a lição científica?

Passado mais de um século, cientistas continuam a se inspirar no Doutor Frankenstein, investigando a origem da vida no laboratório. Junto com a questão da origem do Universo, a origem da vida ocupa um lugar especial na vasta lista de questões abertas em ciência. Afinal, essas questões foram tradicionalmente província da religião e não da ciência. O que não significa que elas não sejam tratáveis cientificamente.

Em 1953, Stanley Miller, então estudante de pós-graduação da Universidade de Chicago, desenvolveu um experimento capaz de simular as condições encontradas na Terra cerca de 4 bilhões de anos atrás. Seu aparato era extremamente simples. Dois vasos de vidro eram ligados por tubos. No vaso menor, Miller colocou água para simular o oceano antigo. No maior, ele bombeou uma mistura gasosa de hidrogênio, metano e amônia, que então se acreditava estarem presentes na atmosfera primitiva.

Seguindo a dica do Doutor Frankenstein, Miller bombardeou seu aparato com faíscas elétricas, que simulavam a presença de raios na atmosfera primitiva. Após uma semana, a água turvou-se em tons de vermelho e amarelo, assinalando a presença de compostos orgânicos. Eles incluíam aminoácidos, os constituintes básicos das proteínas, que estão presentes em células. O orientador de Miller, Harold Urey, vencedor do Prêmio Nobel de Química, declarou entusiasmado: "Se Deus não criou a vida assim, Ele perdeu uma ótima oportunidade!"

Desde os anos 50 , várias teorias e modelos foram propostos, tentando explicar a origem da vida na Terra. O modelo original de Miller tem vários problemas, incluindo o fato de ele ter usado gases que, hoje se acredita, não eram os mais importantes na atmosfera primitiva. Mesmo que seja possível sintetizar alguns aminoácidos em um experimento, há um pulo enorme até as macrocélulas orgânicas capazes de se alimentar e de se duplicar. A própria definição de o que é vida ou de seus elementos fundamentais não é nada óbvia.

Duas idéias têm despertado bastante interesse e muita discussão. A primeira, baseada na presença de compostos orgânicos em asteróides, é que a vida veio do espaço. Isso talvez possa resolver o problema da origem da vida na Terra, mas não o problema da origem da vida em si. Outra, que a vida se originou nas profundezas dos oceanos primitivos, junto a fendas hidrotérmicas, pequenos vulcões que ejetam lava e calor. Essa atividade promove uma série de reações que levam à formação de compostos orgânicos razoavelmente complexos. Mesmo que esse mecanismo seja eficiente, o mistério permanece. Em que nível de complexidade uma molécula se torna viva? Essa questão, acredito, permanecerá aberta ainda por muito tempo.


domingo, 5 de abril de 1998

Os bombardeios do espaço e as grandes extinções

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

As bombas nucleares marcam uma nova era na história da humanidade. Pela primeira vez somos capazes de extinguir a vida na Terra, em um confronto sem vencedores. A Guerra Fria foi uma guerra de medos, calcados na memória do terrível extermínio promovido pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki em 1945.

A "paz" nuclear é muito frágil, como recentemente Saddam Hussein e sua defesa por Boris Ieltsin mostraram. Mas o medo das consequências de um holocausto nuclear pode servir de freio para políticos e militares.

Mas os perigos de uma extinção da vida na Terra também podem vir do espaço. Não por bombas de seres extraterrestres com o objetivo de colonizar a Terra, mas na forma de asteróides vindos de regiões distantes do Sistema Solar.

Em 1980, o físico Luiz Alvarez, Prêmio Nobel de 1968, propôs que a causa da extinção dos dinossauros foi o impacto de um enorme asteróide há 64 milhões de anos. Ele argumentou que na península de Yucatán, no México, haveriam vestígios da cratera causada pelo impacto, rica em irídio, elemento abundante em meteoros.
Dados geológicos parecem confirmar a existência da cratera, e não só a extinção dos dinossauros, mas de 47% de toda a vida no planeta. Mas essa catástrofe, que marca a fronteira entre os períodos Cretáceo e Terciário, não é a mais dramática na história de nosso planeta. Há 251 milhões de anos, na fronteira entre o Permiano e o Triássico, houve outra extinção, de 80% a 95% de toda a vida na Terra! Para isso, nem o choque de um grande meteorito seria suficiente.

Descobriu-se também que existe uma correlação entre essas duas catástrofes e sedimentos basálticos gigantescos, ou seja, depósitos de lava ejetada por erupções vulcânicas de proporções apocalípticas. Aliás, no Novo Testamento, nas Revelações, o Apocalipse vem assinalado por "estrelas que caem dos céus".

O leitor pode pensar: "Mas isso tudo aconteceu há muito tempo. Hoje em dia essas coisas não podem acontecer, certo?". Errado! O Sistema Solar contém centenas de milhões de asteróides orbitando o cinturão entre Marte e Júpiter e suas regiões mais distantes. Além da órbita de Netuno há um cinturão rico em objetos com massas de dimensões semi-planetárias. Conhecido como cinturão de Kuiper, ele pode ser o berço de vários dos asteróides que, devido a instabilidades em suas órbitas, são atraídos para o interior do Sistema Solar, chocando-se ou passando perigosamente perto de planetas e suas luas.

Recentemente, astrônomos descobriram cerca de 40 objetos nesse cinturão, com massas de até um centésimo de milésimo da massa da Terra, e que esse número é apenas uma fração ínfima do total de objetos com massas ainda maiores que os do cinturão de Kuiper. Muito mais distante, há o famoso cinturão de Oort, que acreditamos ser o berço dos cometas que vêm nos visitar de vez em quando.

Objetos com massas dessa magnitude podem causar sérios danos não só pelo impacto direto, mas também causando instabilidades nas órbitas de asteróides menores, desviando-os em nossa direção. Mesmo que eles apenas passem perto de nós, os distúrbios causados por sua atração gravitacional provocarão efeitos devastadores na Terra, incluindo erupções vulcânicas, maremotos com ondas de centenas de metros e seríssimas mudanças no clima. Daí a relação entre a extinção dos dinossauros e os sedimentos.

O que podemos fazer? Podemos nos defender dessa ameaça, lutando por nossa sobrevivência como espécie. Um programa de defesa implica mapear asteróides possivelmente perigosos e destrui-los detonando explosivos nucleares, capazes de desviar suas órbitas em direções safas. A ameaça é real, talvez nossa grande chance de provar que somos uma espécie inteligente. E que sabemos como usar bombas atômicas com fins pacíficos.