domingo, 12 de abril de 1998

Roubando o segredo dos deuses

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

No início do século 19, o poeta inglês Lord Byron reuniu alguns amigos em sua casa em Lausanne, na Suíça. Estavam presentes o também poeta inglês Percy Bysshe Shelley, sua esposa, Mary Shelley, e o médico de Byron, um misterioso tipo conhecido como Doutor Polidori.
Durante uma noite tempestuosa, Byron propôs um "passatempo literário": cada um deveria escrever uma história de terror, que seria então lida aos demais.

É curioso que as histórias que se tornaram um marco na literatura gótica não foram escritas pelos famosos poetas, mas pelo misterioso Doutor e Mary Shelley. Polidori escreveu um conto sobre vampirismo, que teria inspirado, entre outros, o famoso "Drácula", de Bram Stoker, escrito já no final do século.

Mas é a história de Mary Shelley, sobre um médico enlouquecido que dá vida a um cadáver, bombardeando-o com eletricidade produzida por raios, que nos interessa aqui. Doutor Frankenstein pagou caro por ter "abusado" de seus poderes mortais. A lição moral da história é que a criação da vida não é território dos homens, mas sim dos deuses ou, naquele caso, de Deus. E a lição científica?

Passado mais de um século, cientistas continuam a se inspirar no Doutor Frankenstein, investigando a origem da vida no laboratório. Junto com a questão da origem do Universo, a origem da vida ocupa um lugar especial na vasta lista de questões abertas em ciência. Afinal, essas questões foram tradicionalmente província da religião e não da ciência. O que não significa que elas não sejam tratáveis cientificamente.

Em 1953, Stanley Miller, então estudante de pós-graduação da Universidade de Chicago, desenvolveu um experimento capaz de simular as condições encontradas na Terra cerca de 4 bilhões de anos atrás. Seu aparato era extremamente simples. Dois vasos de vidro eram ligados por tubos. No vaso menor, Miller colocou água para simular o oceano antigo. No maior, ele bombeou uma mistura gasosa de hidrogênio, metano e amônia, que então se acreditava estarem presentes na atmosfera primitiva.

Seguindo a dica do Doutor Frankenstein, Miller bombardeou seu aparato com faíscas elétricas, que simulavam a presença de raios na atmosfera primitiva. Após uma semana, a água turvou-se em tons de vermelho e amarelo, assinalando a presença de compostos orgânicos. Eles incluíam aminoácidos, os constituintes básicos das proteínas, que estão presentes em células. O orientador de Miller, Harold Urey, vencedor do Prêmio Nobel de Química, declarou entusiasmado: "Se Deus não criou a vida assim, Ele perdeu uma ótima oportunidade!"

Desde os anos 50 , várias teorias e modelos foram propostos, tentando explicar a origem da vida na Terra. O modelo original de Miller tem vários problemas, incluindo o fato de ele ter usado gases que, hoje se acredita, não eram os mais importantes na atmosfera primitiva. Mesmo que seja possível sintetizar alguns aminoácidos em um experimento, há um pulo enorme até as macrocélulas orgânicas capazes de se alimentar e de se duplicar. A própria definição de o que é vida ou de seus elementos fundamentais não é nada óbvia.

Duas idéias têm despertado bastante interesse e muita discussão. A primeira, baseada na presença de compostos orgânicos em asteróides, é que a vida veio do espaço. Isso talvez possa resolver o problema da origem da vida na Terra, mas não o problema da origem da vida em si. Outra, que a vida se originou nas profundezas dos oceanos primitivos, junto a fendas hidrotérmicas, pequenos vulcões que ejetam lava e calor. Essa atividade promove uma série de reações que levam à formação de compostos orgânicos razoavelmente complexos. Mesmo que esse mecanismo seja eficiente, o mistério permanece. Em que nível de complexidade uma molécula se torna viva? Essa questão, acredito, permanecerá aberta ainda por muito tempo.


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