domingo, 28 de abril de 2002

Reflexões sobre o nada


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Hoje eu gostaria de refletir sobre nada. Ou melhor, sobre o nada. Parece brincadeira, mas o nada é extremamente importante na ciência. Entender o nada não é nada fácil. Em uma "Micro/Macro" antiga, do dia 15 de fevereiro de 1998, escrevi sobre a história do conceito do nada na física. Os pensadores gregos da Antiguidade já haviam debatido o problema, com conclusões completamente opostas.

Enquanto alguns, como os atomistas, diziam que o nada era fundamental, que ele existia em pé de igualdade com a matéria que o preenche, outros, como Parmênides e Aristóteles, desprezavam o nada. Para eles, o cosmo deveria ser "pleno", cheio de uma substância etérea e imponderável. O nada desapareceu e reapareceu diversas vezes na história da física, sempre com relação à questão do que preenche o espaço. Será que o vazio existe, no fim das contas?
A física moderna está passando por momentos difíceis, de crise conceitual. Isso não é necessariamente algo ruim. Sem crise, a ciência não avança. Sem conflitos de opinião não podemos desenvolver novas idéias. O consenso é inerte. Pois bem, existem duas grandes visões em jogo, a do mundo microscópico da partículas, os tijolos fundamentais da matéria, e a do Universo como um todo, a cosmologia. Hoje, sabemos que o micro não pode ser estudado sem o macro, o que, aliás, justifica o nome desta coluna semanal. Isso por que as duas teorias que descrevem o mundo do muito pequeno e o Universo, a teoria quântica e o modelo do Big Bang, precisam uma da outra. Não é difícil entender por quê.

O modelo do Big Bang diz que o Universo iniciou a sua história há aproximadamente 14 bilhões de anos, a partir de um estado inicial extremamente quente e denso. Sob essas condições não existiam moléculas, átomos ou mesmo núcleos atômicos. As energias eram tão gigantescas que era impossível que duas partículas pudessem se atrair a ponto de formar estruturas coesas, como um núcleo (prótons e nêutrons) ou um átomo (núcleos e elétrons). Bem no início, nem sequer os prótons e os nêutrons podiam se formar, a partir da reunião de três quarks, partículas mínimas que formam os componentes do núcleo atômico.

Portanto, nos primórdios da história do Universo, a matéria estava decomposta em seus constituintes mais fundamentais. O problema aparece quando entendemos que, em cosmologia, qualquer tipo de energia contribui para a evolução do Universo. E, segundo a física das partículas elementares, até mesmo o vazio tem energia. As consequências da energia do vazio são catastróficas para a cosmologia.

O que é essa energia do vazio, ou do vácuo? Basicamente, no mundo das partículas nada pode parar. Existe sempre um movimento residual, que, como todo movimento, tem uma energia associada. Daí que é impossível extrair energia de um sistema de partículas (o que, por exemplo, fazemos ao congelar algo) até que a sua energia seja zero. Essa energia do vácuo é um dos grandes mistérios da física moderna. Sabemos que ela existe, mas, se usarmos os métodos tradicionais para calculá-la, o seu valor seria gigantesco, muito maior do que o aceitável. Em cosmologia, o seu efeito é acelerar absurdamente a expansão do Universo, transformando-o em um lugar muito mais vazio do que ele é.

Claramente, algo está errado com esse cálculo tradicional da energia do vácuo. Só que não sabemos o quê. Na prática, supomos que, se fizermos as contas certas, a energia do vácuo deveria ser zero. Mesmo que essa não seja uma solução extremamente elegante, ela funcionou durante décadas. Mas, em 1998 (é por isso que revisito essa questão), astrônomos descobriram que o Universo, afinal, está em expansão acelerada. Ou seja, aparentemente existe mesmo uma energia do vácuo, ou algo que funciona da mesma forma, alimentando a aceleração cósmica, uma espécie de antigravidade. O problema é que essa energia do vácuo é muito, mas muito menor do que a prevista pelos cálculos da física de partículas. Se antes não sabíamos por que o número era tão grande, agora não sabemos por que o número é tão pequeno. O vazio continua nos passando a perna.

Essa crise é extremamente bem-vinda. Ela mostra, de forma direta, a relação entre o micro e o macro, como a física do muito pequeno influencia a física do muito grande e vice-versa. Essa nova reflexão sobre o vazio está sendo alimentada por observações astronômicas, e não por experiências envolvendo partículas. O que me lembra um pouco Aristóteles. Ele dizia que o cosmo está cheio de éter, a quintessência, a matéria que preenche o vazio. Aparentemente, nós descobrimos a quintessência. De onde ela vem ou quais as suas propriedades ainda não sabemos. Mas saber que ela existe é melhor do que nada.

domingo, 21 de abril de 2002

Ameaças celestes


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No dia 19 de março, a agência de notícias norte-americana CNN anunciou: "Ufa! Asteróide quase atinge a Terra de surpresa". O bólido celeste, cujo nome é asteróide 2002 EM7, só foi percebido após passar a uma distância de 461 mil quilômetros do planeta, o que equivale a 1,2 vez a distância até a Lua. Parece até muita coisa, mas, em termos astronômicos, podemos dizer que o asteróide passou de raspão por aqui.

Que os céus são ameaçadores não é novidade. Os leitores familiarizados com o Apocalipse, o último livro do Novo Testamento, podem identificar várias passagens nas quais objetos caem dos céus trazendo caos e destruição à Terra.

Essas passagens não vieram do acaso, mas do acúmulo de observações passadas de pessoas que presenciaram a queda de meteoritos ou a aparição, então inexplicável, de cometas. No meu livro "O Fim da Terra e do Céu", exploro a influência desses relatos apocalípticos no desenvolvimento da astronomia.

Em uma das minhas imagens favoritas, após o terceiro anjo soar a sua trombeta, "caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha. E caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes" (Apocalipse, 8,10).

De certa forma, os astrônomos de hoje vestem os trajes dos antigos profetas, alertando para os perigos que vêm dos céus. É fácil, diante de nossa perspectiva moderna e secular, deixar de lado essas imagens de bólidos celestes caindo sobre a Terra como sendo fenômenos extremamente raros, tão raros que não devemos nos preocupar muito com eles.

Sem querer parecer alarmista (mas parecendo), eu vejo essas ameaças celestes com bastante seriedade. De fato, a possibilidade de uma colisão de um asteróide ou cometa com a Terra é bastante pequena. Alguém a comparou com a probabilidade de uma pessoa ser atingida por um raio. Não acredito que a comparação faça muito sentido, pois não temos dados suficientes para calcular a probabilidade de uma colisão: os cálculos atuais dependem de levantamentos de colisões passadas na Terra e na Lua, cuja precisão é duvidosa. De qualquer modo, pessoas são atingidas por raios e asteróides chocam-se com planetas. É importante olhar para os céus com respeito.

Voltando ao asteróide 2002 EM7, seu diâmetro, de 70 metros, é maior do que o do bólido que provocou o famoso "evento em Tunguska", uma região da Sibéria que, no dia 30 de junho de 1908, recebeu uma visita de surpresa que devastou uma área de 2.100 quilômetros quadrados de floresta.

Aparentemente, o visitante foi um cometa que explodiu a oito quilômetros de altitude, liberando a energia de várias megatoneladas de TNT, equivalentes a mil bombas de Hiroshima. Caso o bólido tivesse explodido sobre uma região urbana, as consequências teriam sido terríveis. Cientistas calculam que o asteróide 2002 EM7 poderia ter devastado uma região equivalente à Grande São Paulo.

Antes que o leitor saia correndo pelas ruas gritando "O fim está próximo!", devo reiterar que, de fato, a probabilidade de um asteróide de pequeno porte (menos de 500 metros de diâmetro) cair ou explodir sobre uma região urbana é mesmo muito remota. (A queda sobre oceanos pode ser problemática, já que ela provocaria maremotos enormes, que arrasariam regiões costeiras.)
Mas a possibilidade existe, levantando a questão do que pode ser feito. Por exemplo, o asteróide 2002 EM7 passou despercebido porque a sua trajetória estava alinhada na direção do Sol, tornando quase impossível detectá-lo com telescópios. Seria como ver uma mosca olhando contra um holofote situado a quilômetros de distância.

Com tantos problemas sociais aqui na Terra, fica difícil olharmos para os céus com seriedade. Mais difícil ainda é alocar recursos para que se possa fazer um levantamento detalhado dos asteróides em nossa vizinhança cósmica, de modo a isolarmos aqueles que possam vir a se tornar visitantes indesejáveis.

Cometas também podem ser identificados, mas, em geral, apenas com um ou dois anos de aviso prévio, o que não é muito. Com bólidos celestes, quanto mais cedo soubermos do perigo, melhor. Os dinossauros foram extintos há 65 milhões de anos devido à colisão de um asteróide de dez quilômetros de diâmetro, uma categoria que chamamos de assassino planetário. Espero que sejamos de fato mais inteligentes do que os pobres sáurios e passemos a tomar essas passagens de "raspão" como um aviso prévio, tal qual a trombeta do anjo.

domingo, 14 de abril de 2002

Catedrais e linhas de montagem

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Os gregos da Antiguidade já se encontravam divididos com relação às duas faces da ciência, a pura e a aplicada. Platão, por exemplo, desprezava os artesãos frente aos geômetras, dizendo que os primeiros faziam as coisas sem entender o seu funcionamento, apenas repetindo técnicas ensinadas pelos seus mestres, também artesãos.

Ele ia além, dizendo que o que enaltece o homem é o uso da razão, especialmente quando essa é aplicada ao mundo das idéias puras, sem preocupações com aplicações mundanas. Aristóteles costumava soar a mesma trombeta, dizendo que o estudo das coisas aplicadas era menos importante do que aquele das coisas mais nobres, como o arranjo do mundo e o seu funcionamento.

Até mesmo Arquimedes, que além de ser um dos maiores matemáticos da Antiguidade era também um grande inventor, desprezava o trabalho técnico daqueles que não tinham preocupações mais profundas sobre a estrutura do cosmo. Imagino que ele via o seu trabalho mais aplicado, cujas catapultas e sistemas de polias foram críticas na defesa da cidade de Siracusa, na Itália, como um mal necessário.

Essas duas visões da ciência são as vezes comparadas com catedrais e linhas de montagem. Dentro dessa analogia, catedrais são vistas como obras que não têm um propósito prático imediato, servindo apenas como veículo de transcendência espiritual, enquanto as linhas de montagem se prestam apenas à construção de objetos e artigos cujo uso, em geral, não cria conhecimento. Ou seja, conhecimento vem exclusivamente da ciência pura, enquanto a ciência aplicada apenas gera novas tecnologias.

A meu ver, tanto a divisão polarizada da ciência entre "pura" e "aplicada", quanto a comparação dessas suas duas características a catedrais e linhas de montagem são absurdas. Primeiro, catedrais tinham um uso prático (entre outros) que era estimular o turismo da região. Uma catedral atraía peregrinos e visitantes de várias partes da Europa, enriquecendo a economia local, incluindo, claro, a igreja. Mas, nessa analogia, a imagem da catedral é usada em seu sentido abstrato, de que a ciência pura não tem como objetivo a construção de objetos ou invenções de caráter prático, sendo dedicada apenas ao estudo do funcionamento da natureza em seu nível mais profundo. Já a ciência aplicada não se interessa por questões mais profundas, dedicando-se apenas a aplicações de conceitos científicos na construção de novas tecnologias. Na prática, o funcionamento da ciência e seu relacionamento com a tecnologia é muito mais complexo e não se presta a simples polarizações. Talvez os cientistas sejam mais puros ou aplicados do que a ciência. Existem casos extremos, como físicos interessados na construção de uma teoria quântica da gravidade, ou aqueles estudando as propriedades mecânicas de ligas materiais, onde fica mesmo difícil imaginar (ao menos no momento) aplicações práticas vindas dos primeiros ou descobertas conceituais profundas dos segundos. Mesmo assim, a polarização me parece forçada.

É impossível traçar a evolução histórica da ciência focando apenas seus aspectos mais puros ou aqueles mais aplicados. Isso porque, em muitos casos, grandes revoluções conceituais se deram justamente devido ao aparecimento de novas tecnologias. A profunda revolução que ocorreu na Renascença, que provocou a substituição de um cosmo geocêntrico (a Terra no centro) por um cosmo heliocêntrico (o Sol no centro), se deu em grande parte devido à construção de diversos instrumentos de medida astronômicos de grande precisão, principalmente pelo astrônomo Tycho Brahe, e pelo aperfeiçoamento do telescópio, por Galileu. Munido de dados obtidos com esses instrumentos, o alemão Johannes Kepler elaborou em detalhe a teoria heliocêntrica proposta por Copérnico em 1543, indo muito além dela. O avanço na nossa compreensão da física das estrelas e da cosmologia se deu em grande parte devido à invenção da fotografia no século 19. Como último exemplo, a revolução na compreensão do átomo, a mecânica quântica, se deu devido ao desenvolvimento de várias técnicas experimentais que levaram a resultados que não podiam ser explicados pela física clássica do século 19: a revolução conceitual foi forçada pelo laboratório. A ciência nasce do casamento das descobertas conceituais com as invenções práticas, uma alimentando a outra, formando um todo indissolúvel. Mas, como em todo o casamento, sempre haverá épocas de crise.

domingo, 7 de abril de 2002

Universos em ebulição


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No final de março, participei de uma conferência homenageando os 90 anos do físico americano John Archibald Wheeler, à qual estiveram presentes físicos das diversas áreas que foram enriquecidas pela sua inspiração quase mágica. Wheeler foi um dos físicos mais importantes do século passado. Suas descobertas tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da física nuclear (inclusive no projeto Manhattan, que construiu a bomba atômica), nas aplicações da teoria da relatividade de Einstein a buracos negros (foi ele quem inventou o famoso termo) e na chamada cosmologia quântica, que visa construir um modelo matemático da origem do Universo, fundindo a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que estuda os átomos e as partículas subatômicas.

Dentre os vários temas discutidos, e teremos a oportunidade de visitar alguns deles nas próximas "Micro/Macro", um que despertou grande interesse foi justamente a origem do Universo. O que não é muito surpreendente. Eu costumo dizer que existem três grandes problemas em ciência que cativam a imaginação não só dos cientistas, mas também do público em geral: os problemas das três origens, a do Universo, a da vida e a da mente. (Eles não são os únicos, mas, certamente, estão entre os mais populares.)

Essas são questões que fazem parte da história da humanidade desde os primórdios da civilização, nossas angustiadas tentativas de compreender um cosmo que parece ao mesmo tempo ameaçador e aconchegante, criador e destruidor. Conforme diria John Wheeler, em uma de suas RBQs (Questões Realmente Importantes, na sigla em inglês), "Por que a existência?"
Um dos modelos mais aceitos não propriamente da "origem" do Universo, mas do que ocorreu muito próximo dela, é conhecido como Universo inflacionário. Segundo esse modelo, os primeiros instantes de existência do cosmo se distinguiram pela sua simplicidade. Existiam essencialmente apenas o espaço e o tempo e o que nós chamamos de um campo escalar, a forma mais elementar de matéria. Outras formas de matéria estavam presentes, mas eram menos importantes do que o campo escalar.

Sei que é estranho falar em matéria e campos. O que é um campo e o que ele tem a ver com matéria? Se nos concentramos em três dimensões espaciais, como a superfície de uma mesa, podemos imaginar um campo escalar como uma superfície elástica, capaz de se deformar aqui e ali, dependendo da concentração de energia em seus diversos pontos. Se associarmos uma altura a cada ponto da superfície, essa altura será o valor do campo escalar naquele ponto. Por exemplo, imagine as ondulações criadas ao jogarmos uma pedra na superfície de um lago; cada ponto da superfície terá um número associado a ele, a altura da água. Existem outros tipos de campo, mas o campo escalar basta para descrevermos o Universo inflacionário. As flutuações de energia no campo são associadas a partículas de matéria.

Precisamos de mais dois ingredientes. O primeiro é explicar o que ocorria com o campo escalar nos primórdios cósmicos. Segundo a teoria, esse campo tinha inicialmente muita energia acumulada. Essa energia teve um enorme impacto sobre a evolução inicial do Universo; segundo a relatividade, energia e matéria influenciam a geometria do espaço. No caso do campo escalar, seu efeito foi o de expandir rapidamente a geometria do Universo, como a superfície de um balão sendo inflado. Essa expansão acelerada é chamada de inflação, justificando o nome "Universo inflacionário". As regiões do cosmo onde o campo escalar tinha uma quantidade apreciável de energia inflaram muito, criando uma estrutura espacial bizarra, que pode ser visualizada como uma superfície elástica de onde brotam protuberâncias aqui e ali.

O principal proponente dessa versão do Universo inflacionário (existem várias), o russo Andrei Linde, vai mais além. Segundo ele, nós vivemos em uma dessas erupções, uma dentre incontáveis outras que borbulham incessantemente em um "multiverso" infinito e eterno. Nosso Universo não passa de uma flutuação que deu certo, que foi capaz de crescer o suficiente e durante tempo suficiente para gerar estruturas materiais complexas, de átomos a estrelas, lagostas e pessoas. Segundo essa visão, a nossa origem é apenas uma entre infinitas outras, sem importância maior em um multiverso que existirá para sempre. Não sabemos se essa teoria está certa ou não. Não é nem claro se ela poderá ser comprovada; mas a sua criatividade é inegável, digna de um lugar de honra junto aos vários mitos de criação propostos no decorrer da história.