domingo, 25 de dezembro de 2011

Quando mito e ciência se encontram

Muito do que é narrado nas tradições religiosas, como a estrela de Belém, é inspirado por eventos reais

No seu belíssimo "A Adoração dos Magos", o pintor renascentista italiano Giotto di Bondone reproduz a icônica visita dos reis magos à manjedoura onde está o bebê Jesus. Acima, vemos a estrela de Belém, representada como um cometa dourado. Giotto observou o cometa de Halley em 1301, o que influenciou sua obra de 1304.

O que ele não sabia é que o cometa havia aparecido também em 12 a.C.. A conexão que Giotto fez entre o cometa e a famosa estrela foi criticada por muitos, incluindo São Tomás de Aquino. (Quem estiver interessado em visões astronômicas de fim de mundo consulte o meu livro "O Fim da Terra e do Céu"). Cometas não brilham durante o dia, ele argumentou; fora isso, cometas são um mau agouro: "No sétimo dia todas as estrelas, tanto planetas quanto estrelas fixas, cairão dos céus com caudas em fogo, como cometas", escreveu.

A crença de que fenômenos celestes têm significado profético integra inúmeras culturas. Os céus, sendo a morada dos deuses (ou de Deus), espelham as intenções divinas, sejam elas boas ou más.

O grande astrônomo alemão Johannes Kepler, tentando justificar o evento bíblico em termos astronômicos, mostrou que Júpiter e Saturno sofreram três conjunções (estavam perto um do outro) no ano 7 a.C.. Ele imaginou que essas conjunções criassem uma nova, que seria o nascimento de uma estrela. (Hoje sabemos que o fenômeno nova ocorre quando uma estrela do tipo anã branca suga matéria de uma companheira a ponto de acumulá-la sobre sua superfície em altas densidades. O hidrogênio acumulado funde-se em hélio, criando uma nova, que brilha de 20 a cem dias).

Várias tentativas já foram feitas para se associar a estrela de Belém a um evento astronômico, nenhuma ainda conclusiva, se bem que muitas são sugestivas. Isso não tira a importância mítica do evento bíblico, mas mostra que muito do que é narrado nas tradições culturais e religiosas da humanidade é inspirado por eventos reais.

Outro exemplo curioso é o das renas voadoras, cuja origem já foi ligada aos efeitos de um cogumelo alucinógeno (capaz de causar delírios), o Amanita muscaria, que era, e presumivelmente ainda é, consumido em rituais xamânicos na Lapônia e em certas regiões da Sibéria. O cogumelo tem o aspecto que vemos nos contos de fada, vermelho com bolinhas brancas, e aparece frequentemente em lendas de várias culturas europeias. Entre os seus vários apelidos, meu favorito é "ovolo matto" (ovo louco), da região italiana de Trentino.

O etnobotânico Jonathan Ott chegou a especular que as cores do cogumelo inspiraram as da roupa do Papai Noel e que as renas davam a impressão de voar após ingerir o cogumelo e agir de forma descontrolada. Ou talvez os pastores e caçadores da Lapônia viam tais coisas após ingerir o cogumelo.

A cultura popular-religiosa ou não-é um rico repositório de experiências e narrativas, muitas vezes inspirada pelo que as pessoas veem (ou pensam que veem) e sentem (ou pensam que sentem). Se a ciência pode iluminar a origem dessas histórias, isso só adiciona à sua magia. Neste ano, pendurei um Amanita muscaria na árvore de Natal. A estrela, claro, já está no topo.

domingo, 18 de dezembro de 2011

As quatro eras da astrobiologia

Somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso eles existam; toda vida vem da mesma fonte

Domingo passado, dei a palestra inaugural na Escola Avançada de Astrobiologia de São Paulo, um evento que reuniu cientistas de ponta e alunos de pós-graduação dos quatro cantos do planeta. Minha tarefa era ligar a cosmologia, que estuda a origem e a evolução do Universo, à astrobiologia, que se ocupa da origem da vida na Terra e da possibilidade de vida extraterrestre.

Como ponto de partida, é bom lembrar que nós, e qualquer outro tipo de vida que por acaso exista no Cosmo, somos produto da mesma física e química. Nisso, somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso existam. Toda vida vem da mesma fonte.

As criaturas vivas são aglomerados de moléculas capazes de criar cópias de si mesmos.

Como moléculas são coleções de átomos, e átomos são feitos de prótons, nêutrons e elétrons, a vida precisa, como ingredientes essenciais, das partículas de matéria que preenchem o Cosmo.

A primeira era foi, portanto, a era física, começando com a origem do Universo e se estendendo até a formação das primeiras estrelas algumas centenas de anos após o Big Bang. Foi nessa era que surgiram os elétrons, prótons e nêutrons que, primeiro, formaram os núcleos atômicos mais leves, isótopos de hidrogênio, de hélio e de lítio. Em torno de 400 mil anos após o Big Bang, prótons e elétrons combinaram-se para formar átomos de hidrogênio, os mais simples e abundantes do Universo. Esse átomos aglomeraram-se em nuvens gigantescas que, com a ajuda da gravidade, formaram as primeiras estrelas: enormes e de curta vida. Esses monstros estelares explodiram com tremenda violência, gerando os átomos que preenchem a Tabela Periódica, o carbono, o oxigênio, o nitrogênio e os outros ingredientes de todos os seres vivos. Aqui se inicia a segunda era, a era química.

Esses átomos espalharam-se pelo espaço interestelar, semeando as galáxias nascentes que, já no segundo bilhão de anos após o Big Bang, encheram o Cosmo. Nessas galáxias, o mesmo processo de vida e morte das estrelas foi se repetindo, e mais elementos químicos foram forjados. Junto a elas, nasceram planetas e suas luas. A diversidade de mundos é espantosa, cada qual semeado com sua dose de elementos químicos. Naqueles onde existe água líquida e uma química complexa, a vida pode ter surgido. Começou aqui a terceira era, a era biológica.

Sabemos que, em torno de 3,8 bilhões de anos atrás, a vida surgiu aqui na Terra, composta dos restos de estrelas que explodiram em nossa vizinhança cósmica. Possivelmente, ela surgiu também em outros lugares, tanto antes quanto depois de ter surgido aqui. A quarta era, que chamo de era cognitiva, é bem mais recente, começando há menos de meio milhão de anos na Terra. Pode ter começado um ou dois bilhões de anos antes daqui, mas não muito mais do que isso. A vida demora a evoluir de seres unicelulares a seres multicelulares e, destes, a seres inteligentes, se é que o faz. A diversidade da vida em um planeta depende de sua história. A vida que encontramos aqui só existe aqui. Mesmo se a vida for de fato comum no Cosmo, é pouco provável que a vida inteligente o seja. Deste modo, somos únicos no universo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A 'partícula de deus' continua arredia

O bóson de Higgs é o elo perdido do modelo que descreve tudo o que sabemos sobre a matéria

A cada dia, aumentam as expectativas de que algo precisa acontecer no LHC (do inglês Large Hadron Collider, Grande Colisor de Hádrons), o gigantesco acelerador de partículas do Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear). Desenhado para encontrar, principalmente, uma partícula chamada "Higgs", em homenagem ao físico inglês Peter Higgs, que propôs sua existência, até o momento os experimentos não têm nada a mostrar.

Pelo contrário, os resultados parecem delimitar a massa da hipotética partícula a valores que contrariam muitos cálculos. Talvez a constituição da matéria seja mais estranha do que suspeitamos.

É conveniente falar da massa de partículas pesadas em unidades da massa do próton, o integrante principal do núcleo de todos os átomos. O limite atual da massa da partícula Higgs, anunciado no dia 18 de novembro passado, é menor do que a de 141 prótons, provavelmente em torno de 120 prótons. Se a Higgs existir, claro. Porque devemos sempre lembrar que físicos não ditam como funciona a natureza.

Uma partícula como Higgs ajudaria a compreensão de como outras partículas (como quarks e elétrons) têm as massas que têm, mas não significa que a Higgs existe.

Mas antes de continuarmos, um pequeno aparte sobre esse estranho apelido, "partícula de deus". Claro que uma partícula de matéria não tem nada a ver com Deus. "A Partícula de Deus" é o título do livro do prêmio Nobel Leon Lederman, diretor do laboratório americano Fermilab quando fiz meu pós-doutorado lá. O título foi sugerido pelo seu editor, que não gostou do título que ele havia proposto. Lederman queria chamar o livro de "The God Damned Particle" ("maldita partícula") porque ninguém consegue encontrá-la. Mas o editor achou que "The God Particle" venderia muito mais. Acho que ele tinha razão.

A Higgs é o elo perdido do Modelo Padrão, um conjunto de resultados que descrevem em detalhe tudo o que sabemos sobre as partículas que compõem a matéria e suas interações. Ele é um triunfo da física do século 20, reunindo décadas de grandes descobertas experimentais e teóricas. Sua precisão é tamanha ao descrever como as partículas interagem entre si que ninguém, ou quase ninguém, duvidava de que a Higgs, ou algo como ela, seria encontrada. A realidade, entretanto, é outra: não só a Higgs não apareceu, como, se existir, terá uma massa que não seria a mais "natural".

A busca por uma partícula tão elusiva é um excelente modelo de como a ciência funciona. Uma hipótese é proposta, prevendo a existência de uma nova entidade natural. Cálculos detalhados são feitos, tentando isolar as propriedades dessa entidade hipotética. Experimentos são montados para testar a hipótese, ou seja, para tentar encontrar a possível nova entidade. Em caso afirmativo, ótimo. Em caso negativo, há duas alternativas: ou a entidade não existe ou a hipótese deve ser refinada. Esse refinamento gera novas hipóteses que também precisam ser testadas.

Esse processo eventualmente leva a novas explicações de como a natureza funciona. Um resultado negativo muitas vezes abre caminhos inesperados, ampliando nosso conhecimento do Universo. Em ciência, crise leva ao novo.