domingo, 22 de dezembro de 2002

O Universo como laboratório

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O poeta anglo-americano T.S. Eliot (1888-1965), nas linhas finais do quarto dos seus "Quatro Quartetos", escreveu (tradução minha): "Ao fim de todas as nossas explorações, chegaremos ao ponto de partida, conhecendo o lugar como que pela primeira vez". As linhas de Eliot descrevem perfeitamente o que ocorre hoje na interface entre a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, e a física das partículas elementares, que investiga os tijolos fundamentais da matéria, a partir dos quais tudo é feito.

Existe uma confluência entre as duas disciplinas, uma interdependência na qual o avanço de uma afeta o avanço na outra. Esse casamento do micro com o macro é consequência direta do modelo do Big Bang, segundo o qual o Universo teve uma infância muito quente e densa.

Aplicando o que se sabe de física às condições radicais de temperatura e pressão vigentes nos primeiros instantes do cosmo, chega-se à conclusão de que, no início, não existiam estruturas contendo várias partículas como, por exemplo, um átomo -composto por prótons e nêutrons em seu núcleo, circundado por elétrons: a temperatura era tamanha que ela sobrepujava qualquer atração mútua entre essas partículas, impedindo a formação de estruturas mais complexas.
Existia um cabo-de-guerra: de um lado, as partículas querendo se agregar e, do outro, a radiação de alta temperatura (ou energia) bagunçando tudo. Fala-se de uma espécie de sopa cósmica, cuja receita vai mudando com a temperatura: à medida que o Universo se expande, a temperatura da radiação (e, consequentemente, a energia) vai caindo, permitindo a formação das primeiras estruturas.

É dessa coreografia primordial que, em torno de um centésimo de milésimo de segundo após o "bang", surgem os prótons e nêutrons, a partir dos quarks. Após um segundo, os primeiros núcleos atômicos, com prótons e nêutrons. Após 300 mil anos, os primeiros átomos de hidrogênio. Como sabemos disso? Inúmeras observações astronômicas mostram que o Universo é banhado em radiação, o fóssil da época de formação dos átomos, que surgiu quando elétrons finalmente se juntaram aos núcleos. Essa "radiação cósmica de fundo" é compatível com um Universo que teve uma infância quente e densa. Para entendermos os primeiros momentos dessa infância, é preciso aplicar a física das partículas à cosmologia. É aqui que a coisa complica.

As partículas elementares e suas interações são estudadas à força bruta, por meio de colisões promovidas em aceleradores de partículas, onde elas são atiradas umas contra as outras. Seria como atirar uma laranja contra outra a altíssima velocidade, para estudar o que há dentro delas. Sem dúvida, da colisão voariam caroços, suco e bagaço. Quando, por exemplo, um próton bate em outra partícula, o mesmo ocorre: da energia da colisão surgem várias outras partículas, matéria sendo criada a partir de energia, conforme dita a famosa fórmula E=mc2. Quanto maior a energia do choque, maior a massa das partículas criadas.

O problema é que os aceleradores são máquinas gigantescas e m
uito caras. Parece paradoxal, mas quanto maior a energia da colisão maior tem de ser o acelerador. A tecnologia atual permite colisões com energias equivalentes ao que ocorreu no Universo um trilionésimo de segundo após o "bang", mas não antes. Quem vai pagar por máquinas maiores, mais caras e, ainda assim, incapazes de atingir energias realmente próximas das do início do tempo?

O Universo primordial atingiu energias imensas, milhares de trilhões de vezes maiores do que as dos aceleradores. Tal como a radiação cósmica de fundo, é possível que essa era primordial tenha deixado fósseis, capazes de ser identificados hoje. Se partículas bem maciças foram produzidas na fornalha primordial, elas podem ser detectadas aqui na Terra. Na falta de tecnologias alternativas, o futuro da física de altíssimas energias está nas mãos da cosmologia. E o futuro da cosmologia também está nas mãos da física de partículas. Voltando a Eliot, o conhecimento futuro virá de uma volta ao momento no qual tudo começou.


domingo, 15 de dezembro de 2002

Einstein, Picasso e a quarta dimensão


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No início do século 20, uma revolução ocorreu simultaneamente nas artes e nas ciências físicas. De um lado, Pablo Picasso destruiu a rigidez plástica na pintura, tentando, com o cubismo, expandir as possibilidades de representação de imagens tridimensionais em telas bidimensionais. Aproximadamente na mesma época, Albert Einstein destruiu a rigidez da concepção newtoniana de espaço e tempo, mostrando que medidas de distância e de tempo não são absolutas, independentes do estado de movimento de quem as faz, mas, sim, dependentes do movimento relativo entre observadores. Dada a proximidade nas datas (o quadro de Picasso "Les Demoiselles D'Avignon" é de 1907, e a teoria da relatividade especial de Einstein é de 1905), é natural se conjecturar que houve uma influência da física nas artes.

Em recente livro, "Einstein, Picasso: Espaço, Tempo e a Beleza que Causa Confusão", Arthur I. Miller revisita esse tema, oferecendo uma explicação muito plausível para a aparente coincidência de datas. Segundo Miller, não houve, na verdade, uma influência direta entre os trabalhos de Einstein e de Picasso; ambos são partes de uma profunda transformação cultural que já ocorria no princípio do século, cujo foco maior de atenção era justamente o questionamento da natureza do espaço e da relação entre a realidade e sua percepção sensorial.
Picasso tentou representar a totalidade de uma imagem, vista ao mesmo tempo de vários ângulos diferentes, como se o observador existisse em uma dimensão a mais, a quarta dimensão. Explico: imagine uma bola flutuando no espaço. Vemos a superfície dessa bola que, como toda superfície, tem duas dimensões. Mas nós sabemos que essa superfície é curva e não plana, como, por exemplo, o topo de uma mesa. Por quê? Porque vemos a bola em três dimensões. Sabemos que ela tem também um raio que define a distância entre a superfície da bola e o seu centro. Caso o raio variasse de ponto a ponto, isto é, se a distância entre os pontos na superfície e o centro não fosse fixa, a bola teria uma aspecto distorcido.

Imaginemos, então, uma bola distorcida, como a superfície da Lua, repleta de crateras e montanhas, ou uma cabeça. De nossa perspectiva tridimensional, jamais poderemos captar a totalidade da bola: veremos apenas a parte que se encontra voltada para nós, e não a face oculta. Com o cubismo, Picasso tentou representar todos os aspectos de uma superfície, como se pudéssemos ver a frente e as costas de uma pessoa ao mesmo tempo, transformando-nos em observadores de uma quarta dimensão espacial.

Já Einstein, em sua teoria da relatividade especial, mostrou que observadores com um movimento relativo entre si, por exemplo, uma pessoa em pé numa calçada e outra passando de carro, obterão resultados diferentes ao medirem distâncias e intervalos de tempo. Se a pessoa em pé na calçada estiver segurando uma régua de um metro na horizontal (medida por ela), a pessoa passando de carro verá essa régua um pouco mais curta. Não percebemos isso, pois esses efeitos só se tornam importantes a velocidades próximas da velocidade da luz, de 300 mil quilômetros por segundo. O oposto ocorre com o tempo: para o observador passando de carro, um relógio na mão da pessoa na calçada bate mais devagar, ou seja, a passagem do tempo dilata. Einstein concluiu que tempo e espaço são manifestações conjuntas da realidade física. Poucos anos mais tarde, ficou claro que a teoria da relatividade trata o tempo como uma dimensão a mais, em pé de igualdade com as três espaciais.

Picasso e Einstein foram influenciados pelo matemático francês Henri Poincaré que, no início do século, propôs que a geometria descrevendo a realidade não era única. Picasso, através de seu amigo Maurice Princet, e Einstein, ao ler o livro "Ciência e Hipótese", publicado em alemão em 1904. Para ambos, a função da ciência e da arte é revelar a essência da realidade que se esconde por trás da limitada percepção sensorial. Mesmo que a quarta dimensão de Picasso seja diferente da de Einstein, nossa visão de mundo foi profundamente mudada por ambas.

domingo, 8 de dezembro de 2002

O homem, colonizador galáctico

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Será que um dia seremos capazes de viajar até as estrelas, visitar outros sistemas solares e, quem sabe, colonizar outros planetas? Essa pergunta pode parecer coisa de ficção científica. E, para ser sincero, no momento é mesmo. O que não significa que cientistas sérios não estejam pensando no assunto.

Existe um grande obstáculo entre nós e as estrelas: as distâncias são enormes, inviabilizando o uso de combustíveis convencionais, baseados em processos químicos. Não só são necessárias quantidades absurdas de combustível, como a viagem seria interminavelmente longa.

Consideremos, por exemplo, uma viagem até a estrela mais próxima do Sol, Alfa Centauri, a 4,2 anos-luz. A luz que sai de Alfa Centauri, viajando a 300 mil km/s (você pisca o olho e a luz dá 7,5 voltas em torno da Terra), demora quatro anos e pouco para chegar aqui. São cerca de 40 trilhões de quilômetros, viagem que, em naves convencionais, não só demoraria uns 90 mil anos como consumiria o equivalente a 50 anos do combustível de um ônibus espacial. Imagine o tamanho do tanque para armazenar essa quantidade brutal. Para chegar às estrelas precisamos de combustíveis muito mais eficientes, ou de processos físicos para encurtar as distâncias interestelares.

Combustíveis alternativos já estão sendo propostos. Entre eles está a fusão nuclear, como a usada em bombas de hidrogênio e no interior do Sol: a energia vem da fusão de núcleos do átomo de hidrogênio, convertendo-os em hélio. O problema é que a velocidade ainda não é muito alta (quando comparada à velocidade da luz), e a quantidade de combustível necessária é enorme (a menos que o hidrogênio seja coletado na viagem).

Outra possibilidade é a vela a laser: uma verdadeira caravela espacial, em que a luz de um enorme canhão de laser é focada por uma lente de mil quilômetros de diâmetro e projetada sobre uma vela plana. A luz, uma onda, transfere energia e momento a objetos. A idéia é usar esses recursos vindos da luz do canhão de laser para impulsionar a vela, como uma caravela com ventilador próprio.

Mais uma vez, é necessária grande quantidade de energia para fazer o canhão de laser funcionar (como a tomada do ventilador). Entretanto, testes recentes são bem positivos: é possível criar veleiros espaciais que encurtariam a viagem a Alfa Centauri de 900 séculos para 40 anos. Uma viagem até Júpiter demoraria só oito horas, o mesmo que ir de avião de Miami a São Paulo. Nada mau.

A melhor solução já foi discutida em inúmeros filmes e livros de ficção científica: encurtar as distâncias, encurvando o espaço entre as estrelas.

Imagine uma formiga andando sobre uma cama elástica. Para ela atravessar a cama de um lado a outro em velocidade de formiga, demoraria muito. Mas se uma formiga muito inteligente puser uma bola de boliche no meio da cama, o trajeto da formiga encurta. Quanto mais pesada for a bola, mais deformada a superfície da cama elástica e menor a distância que a formiga tem de atravessar (ou pular, em um foguete de formiga).

O mesmo poderia ocorrer para o espaço entre duas estrelas. Einstein mostrou, em sua teoria da relatividade geral, que a matéria encurva a geometria do espaço. Caso fosse possível concentrar muita matéria (uma estrela bem densa, por exemplo) entre o ponto de chegada e o de partida, a distância entre os dois encurtaria muito. Esses atalhos espaciais, chamados buracos de verme, existem apenas em teoria.

Não temos a mínima idéia de como seria possível desenvolver uma engenharia de túneis espaciais. Vendo o que a ciência fez em tão pouco tempo, podemos supor que descobriremos muita coisa nos próximos milhares de anos. Quem sabe não seremos nós os colonizadores da nossa galáxia, criando uma rede de buracos de verme que se estenda pelo espaço interestelar como a rede de estradas da Terra? Afinal, o que hoje é fantasia pode, amanhã, se tornar realidade.

domingo, 1 de dezembro de 2002

Uma colisão de gigantes


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

NGC6240. O leitor deve, recentemente, ter visto imagens dessa estranha galáxia. Se não, eis o porquê do enorme interesse nesse longínquo objeto cósmico: em vez da elegância das galáxias elípticas, com formato de bolas de futebol americano, ou das espirais, como a nossa Via Láctea, com seus tênues braços repletos de estrelas e gás, NGC6240 é toda deformada, uma teia cósmica pontilhada de fontes de luz, como se estivesse sendo puxada em direções opostas. As imagens do Telescópio Espacial Hubble já haviam sugerido que algo de dramático estava acontecendo por lá. Mas exatamente o que permanecia em aberto. Ao menos até agora.

A distorção de NGC6240 é atribuída a um fenômeno cósmico raro, a colisão entre duas galáxias. Na verdade, NGC6240 não é uma galáxia, mas duas: devido à sua mútua atração gravitacional, elas acabaram por formar uma só estrutura, como dois redemoinhos de matéria se unindo em uma dança espiralada. Dependendo da massa de cada galáxia, da distância entre as duas e de sua velocidade relativa, um número incontável de combinações se torna viável, o que explica em parte a forma exótica de NGC6240. Mas a junção de duas galáxias é apenas parte da história.
Como os redemoinhos aquáticos, as galáxias também têm um centro. O que se descobriu nos últimos anos é que nesse centro reside um buraco negro gigantesco, com massa milhões de vezes maior que a do Sol. Ou seja, no caso das galáxias, o olho da tempestade é, na verdade, um funil na estrutura do espaço, capaz de sugar tudo que se aproxime demais de suas bordas. A Via Láctea tem um buraco negro em seu centro com aproximadamente 300 milhões de massas solares. Mas o leitor não precisa se preocupar: estamos muito longe das suas garras. Um redemoinho no Caribe não traga banhistas no litoral de São Paulo, certo?

Voltando à NGC6240, as imagens do Hubble foram complementadas por outro olho cósmico, o do Observatório de Raios X Chandra, um satélite espacial dotado de um telescópio extremamente sensível, nesse caso aos raios X. Esse pulo da astronomia da Terra ao espaço mudou nossa concepção do cosmo.

Várias das especulações dos astrofísicos teóricos dos anos 70 e 80 agora podem ser comprovadas (ou não) através desses instrumentos. Uma delas era justamente que buracos negros não só existem no centro de galáxias, como podem formar objetos binários, como um planeta e sua lua, orbitando um em torno do outro. A enorme atração entre eles causa um movimento espiralado até terminar em uma colisão que, até para padrões astronômicos, é espetacular.

Pois foi exatamente isso que as imagens do Chandra revelaram: no centro de NGC6240 se encontram dois gigantescos buracos negros, os centros das respectivas galáxias antes de sua junção, marchando inexoravelmente em direção à colisão final. Jamais buracos negros binários haviam sido identificados, muito menos com massas milhões de vezes maiores do que a do Sol, viajando a velocidades de aproximadamente 35 mil quilômetros por hora. A colisão final ocorrerá em uns 100 milhões de anos e sacudirá a própria geometria do espaço, criando ondas como as que vemos ao jogar uma pedra na superfície de um lago. Esse será também nosso destino.

Andrômeda, a nossa galáxia vizinha, e seu buraco negro central estão em rota de colisão com a Via Láctea. As imagens que vemos hoje de NGC6240 com os telescópios Hubble e Chandra são semelhantes ao que observadores distantes verão ocorrer um dia com a nossa galáxia (se eles existirem).

NGC6240 está a 400 milhões de anos-luz da Terra. Ou seja, são 400 milhões de anos para a luz viajar de lá até aqui: o que vemos agora com nossos telescópios ocorreu há 400 milhões de anos. Para um observador em NGC6240, a colisão já ocorreu. (E, provavelmente, observador nenhum sobreviveu a ela.) Somos parte dessa dança cósmica de criação e destruição e nossa existência é iluminada pela beleza e pelo drama de um Universo em permanente transformação.