domingo, 22 de dezembro de 2002

O Universo como laboratório

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O poeta anglo-americano T.S. Eliot (1888-1965), nas linhas finais do quarto dos seus "Quatro Quartetos", escreveu (tradução minha): "Ao fim de todas as nossas explorações, chegaremos ao ponto de partida, conhecendo o lugar como que pela primeira vez". As linhas de Eliot descrevem perfeitamente o que ocorre hoje na interface entre a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, e a física das partículas elementares, que investiga os tijolos fundamentais da matéria, a partir dos quais tudo é feito.

Existe uma confluência entre as duas disciplinas, uma interdependência na qual o avanço de uma afeta o avanço na outra. Esse casamento do micro com o macro é consequência direta do modelo do Big Bang, segundo o qual o Universo teve uma infância muito quente e densa.

Aplicando o que se sabe de física às condições radicais de temperatura e pressão vigentes nos primeiros instantes do cosmo, chega-se à conclusão de que, no início, não existiam estruturas contendo várias partículas como, por exemplo, um átomo -composto por prótons e nêutrons em seu núcleo, circundado por elétrons: a temperatura era tamanha que ela sobrepujava qualquer atração mútua entre essas partículas, impedindo a formação de estruturas mais complexas.
Existia um cabo-de-guerra: de um lado, as partículas querendo se agregar e, do outro, a radiação de alta temperatura (ou energia) bagunçando tudo. Fala-se de uma espécie de sopa cósmica, cuja receita vai mudando com a temperatura: à medida que o Universo se expande, a temperatura da radiação (e, consequentemente, a energia) vai caindo, permitindo a formação das primeiras estruturas.

É dessa coreografia primordial que, em torno de um centésimo de milésimo de segundo após o "bang", surgem os prótons e nêutrons, a partir dos quarks. Após um segundo, os primeiros núcleos atômicos, com prótons e nêutrons. Após 300 mil anos, os primeiros átomos de hidrogênio. Como sabemos disso? Inúmeras observações astronômicas mostram que o Universo é banhado em radiação, o fóssil da época de formação dos átomos, que surgiu quando elétrons finalmente se juntaram aos núcleos. Essa "radiação cósmica de fundo" é compatível com um Universo que teve uma infância quente e densa. Para entendermos os primeiros momentos dessa infância, é preciso aplicar a física das partículas à cosmologia. É aqui que a coisa complica.

As partículas elementares e suas interações são estudadas à força bruta, por meio de colisões promovidas em aceleradores de partículas, onde elas são atiradas umas contra as outras. Seria como atirar uma laranja contra outra a altíssima velocidade, para estudar o que há dentro delas. Sem dúvida, da colisão voariam caroços, suco e bagaço. Quando, por exemplo, um próton bate em outra partícula, o mesmo ocorre: da energia da colisão surgem várias outras partículas, matéria sendo criada a partir de energia, conforme dita a famosa fórmula E=mc2. Quanto maior a energia do choque, maior a massa das partículas criadas.

O problema é que os aceleradores são máquinas gigantescas e m
uito caras. Parece paradoxal, mas quanto maior a energia da colisão maior tem de ser o acelerador. A tecnologia atual permite colisões com energias equivalentes ao que ocorreu no Universo um trilionésimo de segundo após o "bang", mas não antes. Quem vai pagar por máquinas maiores, mais caras e, ainda assim, incapazes de atingir energias realmente próximas das do início do tempo?

O Universo primordial atingiu energias imensas, milhares de trilhões de vezes maiores do que as dos aceleradores. Tal como a radiação cósmica de fundo, é possível que essa era primordial tenha deixado fósseis, capazes de ser identificados hoje. Se partículas bem maciças foram produzidas na fornalha primordial, elas podem ser detectadas aqui na Terra. Na falta de tecnologias alternativas, o futuro da física de altíssimas energias está nas mãos da cosmologia. E o futuro da cosmologia também está nas mãos da física de partículas. Voltando a Eliot, o conhecimento futuro virá de uma volta ao momento no qual tudo começou.


domingo, 15 de dezembro de 2002

Einstein, Picasso e a quarta dimensão


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No início do século 20, uma revolução ocorreu simultaneamente nas artes e nas ciências físicas. De um lado, Pablo Picasso destruiu a rigidez plástica na pintura, tentando, com o cubismo, expandir as possibilidades de representação de imagens tridimensionais em telas bidimensionais. Aproximadamente na mesma época, Albert Einstein destruiu a rigidez da concepção newtoniana de espaço e tempo, mostrando que medidas de distância e de tempo não são absolutas, independentes do estado de movimento de quem as faz, mas, sim, dependentes do movimento relativo entre observadores. Dada a proximidade nas datas (o quadro de Picasso "Les Demoiselles D'Avignon" é de 1907, e a teoria da relatividade especial de Einstein é de 1905), é natural se conjecturar que houve uma influência da física nas artes.

Em recente livro, "Einstein, Picasso: Espaço, Tempo e a Beleza que Causa Confusão", Arthur I. Miller revisita esse tema, oferecendo uma explicação muito plausível para a aparente coincidência de datas. Segundo Miller, não houve, na verdade, uma influência direta entre os trabalhos de Einstein e de Picasso; ambos são partes de uma profunda transformação cultural que já ocorria no princípio do século, cujo foco maior de atenção era justamente o questionamento da natureza do espaço e da relação entre a realidade e sua percepção sensorial.
Picasso tentou representar a totalidade de uma imagem, vista ao mesmo tempo de vários ângulos diferentes, como se o observador existisse em uma dimensão a mais, a quarta dimensão. Explico: imagine uma bola flutuando no espaço. Vemos a superfície dessa bola que, como toda superfície, tem duas dimensões. Mas nós sabemos que essa superfície é curva e não plana, como, por exemplo, o topo de uma mesa. Por quê? Porque vemos a bola em três dimensões. Sabemos que ela tem também um raio que define a distância entre a superfície da bola e o seu centro. Caso o raio variasse de ponto a ponto, isto é, se a distância entre os pontos na superfície e o centro não fosse fixa, a bola teria uma aspecto distorcido.

Imaginemos, então, uma bola distorcida, como a superfície da Lua, repleta de crateras e montanhas, ou uma cabeça. De nossa perspectiva tridimensional, jamais poderemos captar a totalidade da bola: veremos apenas a parte que se encontra voltada para nós, e não a face oculta. Com o cubismo, Picasso tentou representar todos os aspectos de uma superfície, como se pudéssemos ver a frente e as costas de uma pessoa ao mesmo tempo, transformando-nos em observadores de uma quarta dimensão espacial.

Já Einstein, em sua teoria da relatividade especial, mostrou que observadores com um movimento relativo entre si, por exemplo, uma pessoa em pé numa calçada e outra passando de carro, obterão resultados diferentes ao medirem distâncias e intervalos de tempo. Se a pessoa em pé na calçada estiver segurando uma régua de um metro na horizontal (medida por ela), a pessoa passando de carro verá essa régua um pouco mais curta. Não percebemos isso, pois esses efeitos só se tornam importantes a velocidades próximas da velocidade da luz, de 300 mil quilômetros por segundo. O oposto ocorre com o tempo: para o observador passando de carro, um relógio na mão da pessoa na calçada bate mais devagar, ou seja, a passagem do tempo dilata. Einstein concluiu que tempo e espaço são manifestações conjuntas da realidade física. Poucos anos mais tarde, ficou claro que a teoria da relatividade trata o tempo como uma dimensão a mais, em pé de igualdade com as três espaciais.

Picasso e Einstein foram influenciados pelo matemático francês Henri Poincaré que, no início do século, propôs que a geometria descrevendo a realidade não era única. Picasso, através de seu amigo Maurice Princet, e Einstein, ao ler o livro "Ciência e Hipótese", publicado em alemão em 1904. Para ambos, a função da ciência e da arte é revelar a essência da realidade que se esconde por trás da limitada percepção sensorial. Mesmo que a quarta dimensão de Picasso seja diferente da de Einstein, nossa visão de mundo foi profundamente mudada por ambas.

domingo, 8 de dezembro de 2002

O homem, colonizador galáctico

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Será que um dia seremos capazes de viajar até as estrelas, visitar outros sistemas solares e, quem sabe, colonizar outros planetas? Essa pergunta pode parecer coisa de ficção científica. E, para ser sincero, no momento é mesmo. O que não significa que cientistas sérios não estejam pensando no assunto.

Existe um grande obstáculo entre nós e as estrelas: as distâncias são enormes, inviabilizando o uso de combustíveis convencionais, baseados em processos químicos. Não só são necessárias quantidades absurdas de combustível, como a viagem seria interminavelmente longa.

Consideremos, por exemplo, uma viagem até a estrela mais próxima do Sol, Alfa Centauri, a 4,2 anos-luz. A luz que sai de Alfa Centauri, viajando a 300 mil km/s (você pisca o olho e a luz dá 7,5 voltas em torno da Terra), demora quatro anos e pouco para chegar aqui. São cerca de 40 trilhões de quilômetros, viagem que, em naves convencionais, não só demoraria uns 90 mil anos como consumiria o equivalente a 50 anos do combustível de um ônibus espacial. Imagine o tamanho do tanque para armazenar essa quantidade brutal. Para chegar às estrelas precisamos de combustíveis muito mais eficientes, ou de processos físicos para encurtar as distâncias interestelares.

Combustíveis alternativos já estão sendo propostos. Entre eles está a fusão nuclear, como a usada em bombas de hidrogênio e no interior do Sol: a energia vem da fusão de núcleos do átomo de hidrogênio, convertendo-os em hélio. O problema é que a velocidade ainda não é muito alta (quando comparada à velocidade da luz), e a quantidade de combustível necessária é enorme (a menos que o hidrogênio seja coletado na viagem).

Outra possibilidade é a vela a laser: uma verdadeira caravela espacial, em que a luz de um enorme canhão de laser é focada por uma lente de mil quilômetros de diâmetro e projetada sobre uma vela plana. A luz, uma onda, transfere energia e momento a objetos. A idéia é usar esses recursos vindos da luz do canhão de laser para impulsionar a vela, como uma caravela com ventilador próprio.

Mais uma vez, é necessária grande quantidade de energia para fazer o canhão de laser funcionar (como a tomada do ventilador). Entretanto, testes recentes são bem positivos: é possível criar veleiros espaciais que encurtariam a viagem a Alfa Centauri de 900 séculos para 40 anos. Uma viagem até Júpiter demoraria só oito horas, o mesmo que ir de avião de Miami a São Paulo. Nada mau.

A melhor solução já foi discutida em inúmeros filmes e livros de ficção científica: encurtar as distâncias, encurvando o espaço entre as estrelas.

Imagine uma formiga andando sobre uma cama elástica. Para ela atravessar a cama de um lado a outro em velocidade de formiga, demoraria muito. Mas se uma formiga muito inteligente puser uma bola de boliche no meio da cama, o trajeto da formiga encurta. Quanto mais pesada for a bola, mais deformada a superfície da cama elástica e menor a distância que a formiga tem de atravessar (ou pular, em um foguete de formiga).

O mesmo poderia ocorrer para o espaço entre duas estrelas. Einstein mostrou, em sua teoria da relatividade geral, que a matéria encurva a geometria do espaço. Caso fosse possível concentrar muita matéria (uma estrela bem densa, por exemplo) entre o ponto de chegada e o de partida, a distância entre os dois encurtaria muito. Esses atalhos espaciais, chamados buracos de verme, existem apenas em teoria.

Não temos a mínima idéia de como seria possível desenvolver uma engenharia de túneis espaciais. Vendo o que a ciência fez em tão pouco tempo, podemos supor que descobriremos muita coisa nos próximos milhares de anos. Quem sabe não seremos nós os colonizadores da nossa galáxia, criando uma rede de buracos de verme que se estenda pelo espaço interestelar como a rede de estradas da Terra? Afinal, o que hoje é fantasia pode, amanhã, se tornar realidade.

domingo, 1 de dezembro de 2002

Uma colisão de gigantes


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

NGC6240. O leitor deve, recentemente, ter visto imagens dessa estranha galáxia. Se não, eis o porquê do enorme interesse nesse longínquo objeto cósmico: em vez da elegância das galáxias elípticas, com formato de bolas de futebol americano, ou das espirais, como a nossa Via Láctea, com seus tênues braços repletos de estrelas e gás, NGC6240 é toda deformada, uma teia cósmica pontilhada de fontes de luz, como se estivesse sendo puxada em direções opostas. As imagens do Telescópio Espacial Hubble já haviam sugerido que algo de dramático estava acontecendo por lá. Mas exatamente o que permanecia em aberto. Ao menos até agora.

A distorção de NGC6240 é atribuída a um fenômeno cósmico raro, a colisão entre duas galáxias. Na verdade, NGC6240 não é uma galáxia, mas duas: devido à sua mútua atração gravitacional, elas acabaram por formar uma só estrutura, como dois redemoinhos de matéria se unindo em uma dança espiralada. Dependendo da massa de cada galáxia, da distância entre as duas e de sua velocidade relativa, um número incontável de combinações se torna viável, o que explica em parte a forma exótica de NGC6240. Mas a junção de duas galáxias é apenas parte da história.
Como os redemoinhos aquáticos, as galáxias também têm um centro. O que se descobriu nos últimos anos é que nesse centro reside um buraco negro gigantesco, com massa milhões de vezes maior que a do Sol. Ou seja, no caso das galáxias, o olho da tempestade é, na verdade, um funil na estrutura do espaço, capaz de sugar tudo que se aproxime demais de suas bordas. A Via Láctea tem um buraco negro em seu centro com aproximadamente 300 milhões de massas solares. Mas o leitor não precisa se preocupar: estamos muito longe das suas garras. Um redemoinho no Caribe não traga banhistas no litoral de São Paulo, certo?

Voltando à NGC6240, as imagens do Hubble foram complementadas por outro olho cósmico, o do Observatório de Raios X Chandra, um satélite espacial dotado de um telescópio extremamente sensível, nesse caso aos raios X. Esse pulo da astronomia da Terra ao espaço mudou nossa concepção do cosmo.

Várias das especulações dos astrofísicos teóricos dos anos 70 e 80 agora podem ser comprovadas (ou não) através desses instrumentos. Uma delas era justamente que buracos negros não só existem no centro de galáxias, como podem formar objetos binários, como um planeta e sua lua, orbitando um em torno do outro. A enorme atração entre eles causa um movimento espiralado até terminar em uma colisão que, até para padrões astronômicos, é espetacular.

Pois foi exatamente isso que as imagens do Chandra revelaram: no centro de NGC6240 se encontram dois gigantescos buracos negros, os centros das respectivas galáxias antes de sua junção, marchando inexoravelmente em direção à colisão final. Jamais buracos negros binários haviam sido identificados, muito menos com massas milhões de vezes maiores do que a do Sol, viajando a velocidades de aproximadamente 35 mil quilômetros por hora. A colisão final ocorrerá em uns 100 milhões de anos e sacudirá a própria geometria do espaço, criando ondas como as que vemos ao jogar uma pedra na superfície de um lago. Esse será também nosso destino.

Andrômeda, a nossa galáxia vizinha, e seu buraco negro central estão em rota de colisão com a Via Láctea. As imagens que vemos hoje de NGC6240 com os telescópios Hubble e Chandra são semelhantes ao que observadores distantes verão ocorrer um dia com a nossa galáxia (se eles existirem).

NGC6240 está a 400 milhões de anos-luz da Terra. Ou seja, são 400 milhões de anos para a luz viajar de lá até aqui: o que vemos agora com nossos telescópios ocorreu há 400 milhões de anos. Para um observador em NGC6240, a colisão já ocorreu. (E, provavelmente, observador nenhum sobreviveu a ela.) Somos parte dessa dança cósmica de criação e destruição e nossa existência é iluminada pela beleza e pelo drama de um Universo em permanente transformação.

domingo, 24 de novembro de 2002

Repensando a nossa existência


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A vida é um experimento em complexidade: conhecemos os ingredientes, os vários compostos químicos que fazem parte dos seres vivos, mas não sabemos como combiná-los para formar sequer o mais simples deles. Ainda não sabemos como reproduzir a vida no laboratório. Dadas as várias combinações possíveis de átomos de carbono, nitrogênio, oxigênio etc., é mesmo maravilhoso o salto da química à biologia, do inerte ao vivo. Outro salto maravilhoso é o da vida à vida inteligente, certamente um resultado raro dentre os vários possíveis caminhos evolutivos.

A raridade da inteligência nos seres vivos nos põe em uma situação delicada, indo de encontro ao que aprendemos nos últimos 400 anos de ciência, que, quanto mais descobrimos sobre o Universo, menos importantes parecemos ser. Afinal, nós vivemos em uma dentre bilhões de outras galáxias espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual com bilhões de estrelas. A matéria que nos compõe e às estrelas é de pouca importância: a maior parte da matéria cósmica não é feita de prótons e elétrons, mas de algo que não produz a sua própria luz, a ainda misteriosa matéria escura. Tanto a nossa localização no cosmo como a nossa composição material não são lá das mais relevantes. Mas as nossas mentes são.

Pelo que se sabe, não existem outras formas de vida inteligente. Caso existissem, provavelmente já teríamos sido visitados. Perdoem-me os crentes em visitas de ETs, mas elas não ocorreram.

Nossa galáxia, com diâmetro de 100 mil anos-luz e idade de 12 bilhões de anos, já teria sido atravessada inúmeras vezes por outras civilizações inteligentes. Parece que isso não ocorreu -a menos, claro, que os alienígenas tenham vindo bem antes de nós existirmos e partido sem deixar pistas, ou sem vontade de estabelecer um diálogo. Dado que existem várias incógnitas (como podemos entender a psique de extraterrestres, quando mal entendemos a nossa?), devemos manter a cabeça aberta e repetir, com Carl Sagan, que "a ausência de evidência não significa a evidência de ausência". Talvez ETs sejam apenas muito tímidos.

Vamos supor que sejamos, de fato, um evento raro no cosmo. Nesse caso, devemos estar prontos para assumir, sozinhos, uma enorme responsabilidade: preservar o nosso legado, sobrepujando os nossos instintos destrutivos. Os seres humanos são capazes das mais belas criações e dos mais horrendos crimes. É muito conveniente sonharmos com alienígenas sábios e serenos, que irão nos educar e inspirar antes que seja tarde.

Esses ETs são as versões modernas dos santos e profetas das várias religiões, que nos trazem esperança e fé. (Já os destrutivos são a versão dos demônios, ou, talvez, de nós mesmos.) Mas, se nós estamos sozinhos, temos de encontrar essa sabedoria por nós mesmos. Talvez seja aqui que possa existir um casamento entre ciência e ética religiosa. Podemos começar estendendo o provérbio do Antigo Testamento -"faça aos outros o que queres que façam a ti"- da sociedade para todos os seres vivos, conhecidos ou não, aqui e em todo o cosmo.

Para tanto, seria bom começar a aprender um pouco com a elegância e a simplicidade do mundo natural. Por trás da ordem que vemos em nossos corpos e à nossa volta, existe uma necessidade inerente de existir e de criar estruturas complexas, através de combinações e ligações entre entidades diversas. Esse impulso criativo se manifesta do mundo subatômico até os confins do Universo observado, incluindo, claro, seres vivos. Ele tem a ver com a economia das estruturas ligadas, com o fato de que, juntas, entidades conseguem minimizar a energia necessária para se autopreservar.

Todos os processos naturais invariavelmente escolhem o caminho mais econômico para chegar a seu objetivo. Isso é verdade para átomos, bactérias, elefantes ou galáxias. Mas nós nos distanciamos da natureza e nos tornamos seres dispendiosos. Nossos excessos são revelados no desprezo com que tratamos o planeta e a nós mesmos. Se somos mesmos raros, temos de merecer essa distinção e não nos tornarmos vítima dela.

domingo, 17 de novembro de 2002

Uma lua muito exótica


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Júpiter, o planeta gigante do Sistema Solar, tem 39 luas conhecidas. Só em 2001, foram descobertas 11. Algumas delas são extremamente exóticas, como é o caso de Io, que tem vulcões ativos jorrando compostos sulfurosos a 300 quilômetros de altitude. E isso em um corpo celeste apenas um pouco maior do que a nossa Lua, que, em comparação, é extremamente inerte e passiva.

Devido a sua órbita muito alongada em torno de Júpiter, a atração gravitacional entre Io e o planeta em torno do qual o satélite gira tem enormes variações: quanto mais perto de Júpiter, maior a força gravitacional sobre Io. (E sobre Júpiter, já que, como diz a terceira lei de Newton, a cada ação corresponde uma reação igual em sentido contrário. O leitor certamente já experimentou a eficácia dessa lei ao dar uma topada em uma pedra. Só que Júpiter não se abala muito com a atração exercida por Io.)

A atração gravitacional exercida por Júpiter sobre Io é tão gigantesca que o nível de sua superfície sofre variações de mais de cem metros. Só como comparação, o efeito de marés aqui na Terra pode provocar uma variação no nível do mar de uns 18 metros, no máximo.
O exemplo de Io mostra como o foco da exploração atual do Sistema Solar foi ampliado nas últimas décadas, englobando hoje não só os planetas, mas, também, as suas luas, corpos celestes de grande individualidade, mundos estranhos e fascinantes. Apesar dos dramáticos estertores de Io, a lua mais fascinante de Júpiter para mim é outra, conhecida como Europa.

Tanto Io quanto Europa foram descobertas em 1610, quando o grande cientista italiano Galileu Galilei apontou o seu telescópio para os céus. Ele percebeu quatro objetos orbitando Júpiter, as suas quatro maiores luas. Muito esperto, Galileu apressou-se em chamar as novas luas de "estrelas de Medici", na tentativa (que funcionou muito bem) de conquistar o favor do poderoso líder de Florença, Cosimo 2º de Medici. O que passou despercebido para Galileu e, até há pouco tempo, para todos os astrônomos, foram justamente as exóticas propriedades dos satélites jovianos, u seja, de Júpiter.

A sonda espacial Voyager-2 capturou imagens impressionantes de Europa. Para começar, ao contrário das outras três grandes luas de Júpiter (que incluem, fora Io, Ganimede e Calisto), Europa não tem crateras. A sua superfície é relativamente lisa, com traços alongados aparentando veias varicosas. Análises mais detalhadas mostram que a superfície de Europa é composta por uma camada de gelo de aproximadamente cinco quilômetros de espessura.
O mais interessante é o que existe abaixo dessa camada: um oceano, provavelmente de água salgada, com pelo menos 50 quilômetros de profundidade. As ranhuras na superfície provavelmente são cicatrizes de fraturas que ocorrem ocasionalmente, causadas por variações gravitacionais como as sofridas por Io. Uma vez aberta uma fissura na superfície, a água escapa das entranhas de Europa, congelando quase que imediatamente.

Um mundo aquático, como no clássico de ficção científica soviético "Solaris", de Andrei Tarkovsky. Nesse filme, o planeta aquático era uma entidade viva, capaz de materializar os desejos inconscientes das pessoas. Não acredito que Europa chegue a tanto, mas certamente a presença de água líquida transformou-a em um dos melhores candidatos para a existência de vida extraterrestre.

Infelizmente, um projeto que levaria uma sonda com uma broca especial até Europa para colher amostras de sua água foi cancelado pelo governo Bush, que no momento prefere explorar o petróleo iraquiano. Mas os cientistas interessados em Europa não se deram por vencidos.
Uma nova proposta está sendo estudada, em que a sonda a ser enviada não é maior do que uma bola de basquete. Seu objetivo não é extrair uma amostra da água de Europa, mas confirmar de fato a sua presença através de estudos das vibrações sísmicas da lua joviana. Caso o projeto vingue e a presença de água salgada em Europa seja confirmada, será impossível ignorar os seus mistérios.

domingo, 10 de novembro de 2002

A tensão criativa do cosmos


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Existe uma tensão criativa no cosmos. Nós a sentimos todas as vezes em que olhamos para o mundo à nossa volta e em nós mesmos. Ela se manifesta nos menores detalhes, em uma gota de orvalho equilibrando-se na ponta de uma folha nas primeiras horas da madrugada, ou na simetria das asas de uma borboleta. E também em grandes escalas, em um relâmpago rasgando de luz a escuridão da noite, ou nas estrelas, que queimam as suas próprias entranhas para gerar a energia que resiste à sua implosão gravitacional. A história da humanidade pode ser contada como uma série de representações da dança entre o caos e a ordem que dá forma ao mundo.
Inúmeras histórias, pinturas, danças e rituais foram (e são) criados procurando dar significado à nossa existência. Nós olhamos para o cosmo com um misto de adoração e terror, de devoção e insegurança. Nossa curiosidade não tem limites.

Como algo pode surgir do nada? Qual a origem de todas as coisas? Como a ordem pode surgir por si só, sem algo ou alguém para dirigi-la? Será que a beleza que percebemos no mundo é um acidente ou ela tem um significado mais profundo? Por que temos tanta atração pelas coisas belas, como drogados pelas drogas? O que nos faz cultivar jardins, compor poemas e sinfonias, criar teoremas matemáticos e equações? Por que não nos contentamos simplesmente em comer, dormir e procriar?

Essas questões servem de ponte entre as várias formas de conhecimento, incluindo a pesquisa científica de ponta, as meditações filosóficas, as preces religiosas e as artes. De certo modo, essa busca por respostas nos define. Ao perguntar, ao querer saber sempre mais, nós damos significado à nossa existência. Mesmo que as respostas mudem de cultura para cultura, várias questões são essencialmente idênticas. E muitas permanecem sem resposta.

A ciência moderna desenvolveu uma narrativa descrevendo o surgimento das estruturas materiais no Universo. Embora muitos detalhes e questões fundamentais permaneçam em aberto, podemos hoje afirmar com certeza que a história do cosmo traça a "complexificação" crescente de seus habitantes -viventes ou não- baseada no desenvolvimento hierárquico de forma e função, do simples ao mais complexo.

Em seus primórdios, o Universo era extremamente quente e denso, e a matéria era composta de seus constituintes mais básicos, as partículas elementares. A expansão e o consequente resfriamento do Universo, juntamente com forças atrativas entre as várias partículas, estimularam a formação de estruturas compostas de mais de um componente, chamadas de estruturas ligadas: prótons e nêutrons surgiram a partir da junção de quarks; núcleos atômicos, da junção de prótons e nêutrons; átomos leves como o hidrogênio, da junção de núcleos atômicos e elétrons; galáxias, a partir do colapso de enormes nuvens de hidrogênio, estrelas de nuvens de hidrogênio e hélio dentro das jovens galáxias -até que, eventualmente, seres vivos surgiram em ao menos um dos bilhões de sistemas solares espalhados pelo cosmo.

A descrição científica da emergência de estruturas materiais complexas vem tendo enorme sucesso. A cosmologia, por exemplo, é hoje uma ciência empírica, com uma enorme quantidade de dados, o que há duas décadas seria impensável.

Esse sucesso, como deve ser em ciência, acaba por gerar mais perguntas. Entre as mais fascinantes estão as questões das origens: a origem do cosmo, a origem da vida e a origem da mente. As respostas a essas perguntas estão necessariamente relacionadas com a existência de estruturas emergentes: como estruturas podem se auto-organizar a ponto de gerar comportamentos extremamente complexos?

Seja o nosso Universo surgindo de uma sopa quântica de universos, seja um ser vivo composto de milhões de macromoléculas orgânicas, ou um ser pensante, capaz de refletir sobre a sua origem ou sobre questões morais, a emergência de estruturas complexas representa um dos grandes desafios intelectuais de nossa época, prova da incrível criatividade da natureza. E, por que não dizer, da nossa também.

domingo, 3 de novembro de 2002

A obscura matéria escura


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O astrônomo americano Carl Sagan dizia que nós somos poeira das estrelas. Os elementos dos quais somos compostos, como o carbono, o nitrogênio e o oxigênio, vieram dos restos mortais de estrelas que existiram antes da formação do nosso Sistema Solar, há aproximadamente 5 bilhões de anos. Quando estrelas morrem, explosões gigantescas espalham a sua matéria através do espaço interestelar. Pois é essa matéria que, fazendo parte da Terra, é encontrada em nossos ossos e órgãos.

O interessante é que essa matéria, composta de prótons, nêutrons e elétrons, não tem muita relevância cósmica. Sem dúvida, é ela que compõe as estrelas e nuvens de gás que observamos pelo Universo afora. Mas esse tipo comum de matéria, que é chamada de matéria bariônica, não consiste em mais do que 1/6 da matéria total existente no Universo. A maior parte não tem nada a ver com a matéria da qual nós somos feitos. Não é composta de prótons e elétrons e não forma astros luminosos, como estrelas. Nós só percebemos a sua existência através da atração que ela exerce sobre a matéria luminosa comum. Por isso, esse tipo exótico de matéria é conhecido como matéria escura. Um dos grandes desafios da física moderna é desvendar a natureza dessa matéria. Se ela não é feita de átomos comuns, do que é feita?

Antes de abordarmos essa questão, vale notar que planetas, asteróides, ou outros astros que não produzem a própria luz (como fazem as estrelas), mesmo se feitos de átomos comuns, também são matéria escura. Eles são considerados matéria escura bariônica, menos interessante e já incluída no 1/6 mencionado acima. Portanto, quando falamos em matéria escura exótica, nos referimos àquela que não é composta de prótons e elétrons, os outros 5/6 da matéria cósmica, de composição desconhecida.

A maior pista que temos da existência de matéria escura é obtida quando se observa como as galáxias giram. Como tudo mais no cosmo, galáxias também giram em torno de seu eixo central. A velocidade de rotação é medida observando-se a luz de estrelas posicionadas a distâncias variáveis do centro. Se a galáxia fosse feita de matéria bariônica comum, a velocidade chegaria a um valor máximo a uma certa distância, e cairia em direção à borda. O que se observa é que a velocidade cresce e chega a um valor aproximadamente constante, sem diminuir na proximidade da borda. A explicação mais plausível é que existe mais matéria na galáxia do que a que produz luz. Essa matéria escura circunda a galáxia como um véu invisível, cuja massa altera a sua velocidade de rotação. As observações confirmam que todos os tipos de galáxia têm esse comportamento. A matéria escura está por toda parte.

Uma das teorias mais aceitas é que essa matéria escura é composta por partículas submicroscópicas exóticas, muito diferentes dos prótons e elétrons que formam os átomos normais. Caso isso seja verdade, deveria ser possível detectá-las aqui na Terra, na medida em que nosso planeta passeia pelo véu de matéria escura circundando a galáxia. Vários grupos de pesquisa, incluindo um na Universidade da Califórnia em Berkeley e outro na montanha de Gran Sasso, na Itália, vêm caçando essas partículas exóticas, até o momento sem sucesso. (Houve um alarme falso há um tempo na Itália, que causou grande alvoroço na comunidade científica.)

A idéia é ter um detector de partículas, feito de cristais de germânio (material que se usa também em chips de computador) mantidos a baixíssimas temperaturas. O detector possui uma superfície coletora, como uma rede, que tem a probabilidade de absorver um certo número de partículas de matéria escura por mês.

Quando a partícula se choca com os núcleos dos átomos de germânio, ela faz eles vibrarem e sua energia de movimento é transformada em energia de vibração do cristal. Por sua vez, essa energia de vibração é transformada em energia térmica. Dessas variações pode-se obter a direção original da partícula e a sua massa. Segundo os caçadores de matéria escura, uma detecção decisiva ocorrerá em breve. Nesse caso, a astrofísica estará abrindo uma nova janela para a física de partículas, numa belíssima união do micro com o macro. No meio-tempo, a matéria escura continua obscura.

domingo, 27 de outubro de 2002

O tamanho do Universo


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Pai, qual é o tamanho do Universo?", pergunta o garoto de nove anos ao seu pai. "Ah, sei lá filho, muito, muito grande", responde o pai, meio irritado, mais interessado em ler o jornal do que em conversar com o filho. "Mas, pai, se o Universo tem tudo dentro dele, como que ele pode ser só muito grande? O que está do outro lado?", insiste o garoto. O pai joga a toalha, "Olha filho, o Universo é infinito, OK? Não tem nada do lado de fora!" "E como você sabe disso?", continua o filho. "Você ou alguém já foi até o fim do Universo?"

Pois é, as crianças às vezes fazem mesmo essas perguntas, para a aflição dos adultos. Infelizmente, muitos se esquecem de que, quando eram crianças, também tinham essas dúvidas. Após anos de educação, a curiosidade por essas grandes questões vai murchando e as perguntas vão ficando cada vez mais raras. O escritor tcheco Milan Kundera, em seu livro "A Insustentável Leveza do Ser", proclama que as perguntas mais fundamentais são justamente aquelas feitas pelas crianças. Muitas vezes elas são perguntas sem resposta, que forçam as pessoas a expandirem os seus horizontes culturais e a sua criatividade na tentativa de respondê-las. De certa forma, o cientista mantém viva essa curiosidade, debatendo-se com as mesmas dúvidas que o afligiam quando criança. Essa visão pode parece meio romantizada, mas não é; sem essa curiosidade constante, sem a constante indagação, a ciência simplesmente não evolui. A pergunta é mais fundamental do que a resposta.

O que não significa que as respostas não sejam importantes. Voltando à questão do tamanho do Universo, livros inteiros podem ser escritos sintetizando as várias respostas que foram dadas a essa única pergunta através dos tempos. A preocupação com o tamanho do cosmo é tão antiga quanto a história da humanidade. Não podendo resumir essa fascinante história aqui, basta lembrar que apenas no final da Renascença o cosmo passou de fechado a infinito. O inglês Isaac Newton, que propôs a lei universal da gravitação, ponderou que o Universo deveria ser infinito em todas as direções; caso contrário, a atração gravitacional entre os corpos celestes faria com que eles se embolassem todos no centro, em vez de serem distribuídos através do espaço, conforme é observado.

Após Newton, a grande revolução na concepção das dimensões cósmicas veio com a descoberta da expansão do Universo, em 1929, pelo astrônomo americano Edwin Hubble. Anos antes, Einstein havia proposto um universo finito, com a geometria semelhante à da superfície de uma esfera, mas em três dimensões. (A superfície de uma esfera, por exemplo, uma bola, tem duas dimensões. Infelizmente, não dá para visualizar a superfície de uma esfera em três dimensões, daí o exemplo em duas dimensões.) O Universo de Einstein não só era finito como também estático, ou seja, o mesmo por toda a eternidade. Em 1931, após visitar Hubble, Einstein concedeu que a expansão do Universo era mesmo fato consumado. (Interessante que para Hubble a conclusão não fosse assim tão simples.)

Por incrível que pareça, hoje sabemos qual a geometria do Universo: ela é plana como a superfície de uma mesa, mas estendendo-se ao infinito em três dimensões. (Novamente, a superfície de uma mesa tem duas dimensões.) Será que finalmente respondemos à antiga pergunta? Ainda não. Dado que a velocidade da luz é a maior que existe, e é a velocidade com que a informação que coletamos sobre o Universo se propaga, o que observamos do Universo é apenas uma parte dele. Como o Universo existe há 14 bilhões de anos, estamos limitados a observações dentro de uma esfera com raio de 14 bilhões de anos-luz. Essa parte do Universo, a nossa vizinhança cósmica, sabemos que é plana. Mas nada podemos afirmar sobre o que existe "lá fora". Portanto, a menos que possamos de alguma forma ultrapassar a velocidade da luz -algo improvável no momento- essa vai continuar sendo uma daquelas perguntas sem uma resposta final. Mas cheia de respostas intermediárias, todas fascinantes.


domingo, 20 de outubro de 2002

Psicologia e evolução


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A psicologia anda em guerra. Não a mais tradicional, baseada em Freud, Jung ou Lacan, mas a psicologia evolucionista, que tenta aplicar idéias da teoria da evolução de Darwin (e adaptações posteriores) para explicar certas facetas do comportamento humano e mesmo do desenvolvimento do cérebro. Os revolucionários, aqui, são os psicólogos que questionam o conceito básico da psicologia evolucionista, o de que muitos comportamentos observados em grupos e em indivíduos podem ser entendidos como resultado de uma guerra permanente entre os genes, que tentam preservar a sua existência a todo custo.

Por exemplo, alguns psicólogos evolucionistas afirmam que as fêmeas tendem a procurar relações monogâmicas com os machos mais poderosos do grupo de modo a proteger a sua prole. Segundo eles, esse comportamento não é simplesmente consequência de um instinto materno, o amor puro e descompromissado da mãe. Na verdade, a atitude das fêmeas não é particularmente devota à sua prole, mas aos próprios genes, que estão preservados nela. Portanto, em última instância, quem está determinando o comportamento das fêmeas não é o amor materno, e sim o DNA, cuja missão principal é se preservar a qualquer custo. É ele quem manda. Não é a toa que Richard Dawkins, um biólogo de renome que escreve livros de divulgação científica sobre a teoria da evolução, deu o título de "O Gene Egoísta" a um de seus livros.

Os críticos dizem que os psicólogos evolucionistas estão levando o poder dos genes muito ao extremo. Segundo eles, vários fatores culturais e, de modo geral, exógenos também afetam o comportamento dos indivíduos. O interessante é que isso pode ocorrer na esfera genética. Pequenas modificações nos genes que controlam o desenvolvimento embrionário podem levar a profundas mudanças em uma espécie ou a diferenciações entre espécies. Essas modificações podem decorrer da interação entre genes, células, organismos e habitat.

A idéia é que muitas das combinações genéticas que determinam comportamentos permanecem em estado de hibernação, ou seja, elas não são estimuladas durante o desenvolvimento do indivíduo. No entanto, mudanças no ambiente cultural ou natural em que fetos ou bebês se desenvolvem podem despertar algumas combinações genéticas desse estado de hibernação. Por sua vez, essas novas combinações podem influenciar o comportamento do indivíduo, segundo afirma o psicólogo americano Gilbert Gottlieb, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill.

Já se sabia que fatores exógenos afetavam o comportamento das pessoas. A novidade é que muitos desses comportamentos existem em uma espécie de adega genética: tal como vinhos, selecionados de acordo com a ocasião, os genes que ditam esse ou aquele comportamento são estimulados seletivamente, de acordo com fatores exógenos.

Em uma experiência, camundongos separados de suas mães diariamente por alguns minutos demonstram, quando adultos, uma maior curiosidade na exploração de ambientes novos e, também, maior capacidade no aprendizado de novas tarefas. A explicação oferecida é que esses camundongos recebem mais atenção de suas mães quando retornam aos seus cuidados. Com isso, eles desenvolvem certos aparatos fisiológicos para controlar o estresse, como, por exemplo, aquele gerado durante a exploração de novos ambientes. Ou seja, o maior carinho das mães cria não só mais confiança nos camundongos como, também, uma maior capacidade intelectual. Isso pode parecer óbvio, mas não é. Nem sempre o filho predileto é aquele de maior capacidade intelectual na família. Parece-me que a inveja também pode ser usada como uma motivadora intelectual.

O problema maior aqui, como mostra o exemplo dos camundongos, é a falta de testes conclusivos. O mesmo experimento pode ser interpretado de modos diferentes, contribuindo para a confusão. Os genes podem ser egoístas, mas não são os únicos responsáveis pela complexidade do comportamento humano.

domingo, 13 de outubro de 2002

Partículas ou cordas?



Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A física das partículas, a parte da física que se dedica ao estudo desses tijolos fundamentais da matéria, é a herdeira histórica do atomismo grego, que data de cerca de 400 a.C. Segundo os atomistas, a matéria é composta por entidades indivisíveis e indestrutíveis, os átomos.
Todas as formas materiais na natureza podem ser descritas como combinações de átomos em posições diferentes, como num jogo Lego. O que entendemos hoje da estrutura fundamental da matéria é muito diferente dos átomos dos gregos. Átomos modernos não são indivisíveis, mas formados de prótons e nêutrons em seus núcleos, circundados por elétrons.

Mais ainda, essas partículas não são indestrutíveis, mas capazes de várias transformações e interações entre si. Demócrito jamais imaginaria que uma partícula de matéria pudesse se chocar com uma de antimatéria, ambas desintegrando-se em radiação eletromagnética, a conversão entre matéria e "energia" descrita pela famosa equação E=mc2. Mas o espírito das duas é o mesmo, a busca pelas entidades fundamentais da matéria, pelo que existe de mais íntimo por trás da realidade material que nos cerca.

Durante o século 20, grandes avanços teóricos e experimentais levaram a uma compreensão dessa realidade material a distâncias extremamente pequenas. Por exemplo, usando aceleradores de partículas extremamente sofisticados, hoje é possível investigar o que ocorre dentro de um próton, a um milésimo de trilionésimo de centímetro (10-15 cm).

Esse mundo é muito diferente do que vemos à nossa volta; as regras mudam, a física muda. Esse é o mundo do quantum, onde é impossível medir com precisão arbitrária a posição e a velocidade de uma partícula, ou mesmo a sua energia. A essas distâncias tudo flutua, nada pára quieto, como se a realidade material se transformasse em uma sopa em constante ebulição.
O que ferve é a energia do espaço vazio, cujo valor nunca chega a ser exatamente zero. Essas flutuações de energia levam, através da interconversão de energia em matéria descrita acima, à criação e destruição de partículas e antipartículas, como bolhas aparecendo e desaparecendo constantemente em um caldeirão de sopa. Essas são as chamadas partículas virtuais, de existência efêmera, as flutuações do vácuo quântico, literalmente da energia do espaço vazio, do nada.

Essa visão do nada quântico traz consigo um sério problema. Se tentarmos calcular a energia do espaço vazio, obteremos um resultado infinito. Ou seja, segundo a física quântica, o nada armazena uma quantidade infinita de energia. Como nós ainda estamos aqui, algo deve estar errado com essa descrição do nada.

Nos anos 70, foi proposto que as entidades fundamentais da matéria não são partículas pontuais, mas cordas, entidades unidimensionais tais como cordas de violão vistas a grande distância. Essas cordas não têm nada a ver com as usadas em instrumentos musicais, sendo tubos alongados de energia vibrando freneticamente, de dimensões muito, muito menores do que o interior do próton. Portanto, elas não são visíveis nem mesmo nos aceleradores de partículas mais poderosos que existem ou venham a existir. Para comprovar a sua existência serão necessárias provas indiretas, que vêm sendo avidamente procuradas por pesquisadores do mundo inteiro- por enquanto, sem sucesso.

Mesmo que ainda não observada, a idéia de que as entidades fundamentais da matéria sejam cordas tem muitos defensores. Uma das vantagens é justamente o problema da energia infinita do espaço vazio. Usando cordas ao invés de partículas, essas energias se tornam bem mais tratáveis. Especialmente quando uma nova simetria é invocada, a supersimetria, em que partículas de matéria e partículas que transmitem forças entre elas podem ser relacionadas entre si.

As "supercordas" não só amortizam a energia do nada como também prevêem que as quatro forças fundamentais da natureza, quando vistas a distâncias minúsculas, são uma só. Caso a teoria de supercordas esteja correta, não só a matéria como todas as forças vêm delas.

domingo, 6 de outubro de 2002

Gravitação e quanta, um casamento complicado


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Durante as três primeiras décadas do século 20, a física e, consequentemente, a visão de mundo moderna passaram por uma profunda revisão. Duas novas teorias, a teoria da relatividade e a teoria quântica, reformularam a concepção da estrutura do espaço e do tempo, assim como a do mundo dos átomos e das partículas subatômicas. Enquanto a teoria da relatividade geral, elaborada por Albert Einstein, mostrou que a atração gravitacional entre dois (ou mais) corpos pode ser interpretada como devida à curvatura do espaço em torno dos corpos, a teoria quântica mostrou que, no mundo dos átomos, processos físicos como a troca de energia entre átomos e radiação ocorrem descontinuamente.

Ambas as teorias causaram uma ruptura com a chamada visão de mundo clássica, segundo a qual a atração gravitacional era interpretada como uma força agindo à distância entre corpos maciços, e os processos do mundo atômico não eram particularmente distintos dos processos ocorrendo à nossa volta. A física passou a revelar um mundo onde a intuição simplesmente não funciona.

Com o desenvolvimento da tecnologia dedicada ao estudo dos átomos e das partículas subatômicas, como o elétron e o próton, ficou claro que a física do mundo submicroscópico é regida por três forças fundamentais: o eletromagnetismo, que trata da atração e da repulsão das cargas elétricas e da sua relação íntima com o magnetismo, e as forças nucleares forte e fraca que, como já diz o nome, atuam apenas dentro do núcleo atômico, ou seja, a distâncias menores do que um trilionésimo de centímetro. Claramente, nós não temos nenhuma percepção direta das duas forças nucleares. Das quatro forças fundamentais, nós temos familiaridade apenas com as duas de longo alcance, a gravidade e o eletromagnetismo.

Uma das características mais fundamentais da teoria quântica é que quantidades físicas como a energia ou o momento de uma partícula (que depende de sua velocidade) flutuam. Não é possível afirmar com absoluta precisão que "a energia desse elétron é tal e o seu momento é tal", como seria possível em física clássica. (Excluindo-se os inevitáveis erros que ocorrem sempre que fazemos alguma medida. Por exemplo, ao medirmos uma distância com uma régua, não temos precisão maior do que a metade da menor subdivisão da régua.)

Portanto, no mundo do muito pequeno nada pára, tudo está sempre em movimento, numa constante agitação quântica. Por exemplo, imagine que um elétron seja uma bola bem pequenina e que ele tenha sido posto em uma cuia côncava. Dentro da visão clássica, o elétron iria eventualmente parar no fundo da cuia, com energia zero. Segundo a física quântica, o elétron irá se aproximar do fundo da cuia e, em média, sua posição será a mesma da física clássica, mas ele continuará a flutuar permanentemente em torno do fundo da cuia.

A física quântica, mesmo que bem exótica, é extremamente bem-sucedida: muito de nossa tecnologia moderna, incluindo lasers, medicina nuclear e todos os produtos da tecnologia digital, são consequência dessas flutuações de elétrons e outras partículas. Esse sucesso e a descoberta das duas forças nucleares acabaram por criar um desequilíbrio na física: existem quatro forças, três delas atuando no mundo subatômico, e uma delas, a gravitacional, sendo praticamente desprezível no mundo do muito pequeno, mas absolutamente fundamental nas escalas macroscópicas, de bactérias e planetas até galáxias e o Universo.

Esse desequilíbrio cria um verdadeiro dilema: segundo a cosmologia moderna, o Universo está em expansão. Se voltarmos à sua infância, há 14 bilhões de anos, o próprio Universo era muito pequeno, de dimensões comparáveis às partículas subatômicas. Nesse caso, suas propriedades deveriam ser descritas pelas regras da teoria quântica. O problema é que a gravidade, segundo a descrição da relatividade geral, não se adapta facilmente à essas regras. O casamento entre as duas teorias é um dos grandes desafios da física moderna. E ainda não foi consumado.

domingo, 29 de setembro de 2002

As âncoras cósmicas


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Existe uma belíssima hierarquia no Universo, de padrões que se repetem a distâncias variando de um planeta e sua lua até aglomerados contendo milhares de galáxias. São objetos girando em torno de outros, os de menor massa em torno dos de maior, em uma coreografia controlada pela gravidade: a Lua gira em torno da Terra, assim como outras luas em torno de outros planetas. Os planetas giram em torno do Sol, e o Sol em torno do centro da Via Láctea, juntamente com bilhões de outras estrelas. E a Via Láctea gira em torno de aproximadamente 20 outras galáxias, pertencentes ao "grupo local".

Mais precisamente, objetos giram em torno do chamado centro de massa do sistema. Por exemplo, se você sentar com uma pessoa do seu mesmo peso em uma gangorra, o centro de massa será exatamente no meio da gangorra. Se a pessoa for bem mais pesada, o centro de massa será mais próximo dela. No caso do Sistema Solar, como o Sol é bem mais maciço do que todos os planetas, o centro de massa está próximo do seu centro, mas não exatamente nele. O centro de massa é a âncora gravitacional do sistema, o ponto em torno do qual tudo gira.
Se o Sol, a âncora gravitacional do sistema solar, gira em torno do centro da galáxia, então o centro de massa da galáxia, a sua âncora, deve estar bem próximo de seu centro. Até pouco tempo atrás, não se sabia o que se escondia por lá: telescópios terrestres não eram capazes de enxergar através da confusão de estrelas e gás incandescente que existem na região central da Via Láctea ou de qualquer outra galáxia. A solução foi utilizar uma combinação de telescópios que vêem não a luz visível, mas outros tipos de radiação eletromagnética, as ondas de rádio e a radiação infravermelha.

Após anos de estudos detalhados, astrônomos descobriram algo de surpreendente: no coração da Via Láctea reside um gigantesco buraco negro, com uma massa equivalente à de milhões de sóis. Essa conclusão baseia-se em vários argumentos: primeiro, nuvens de gás girando em torno do centro galáctico têm uma forma toroidal (como uma rosca), emitindo quantidades enormes de radiação. Segundo, bilhões de estrelas também giram em torno dessa região, a altíssimas velocidades.Terceiro, a região central, a âncora gravitacional dessa atividade toda, é extremamente pequena. Apenas buracos negros podem causar tanto alvoroço em tão pouco espaço.

Essa descoberta não se limita à Via Láctea: todas as outras galáxias, desde as de forma espiral (o caso desta galáxia) até as elípticas, contêm um buraco negro em seu centro. O interessante é que, em todas as galáxias estudadas até agora, o buraco negro central tem em torno de 0,5% (1/ 200) da massa total da galáxia. Resultados como esse não são uma coincidência: eles expressam algo de universal na formação e no crescimento das galáxias, uma relação entre a âncora gravitacional e a sua corte de estrelas e gás.

Aqui reaparece a hierarquia dos padrões cósmicos: o Sistema Solar nasceu devido ao colapso de uma gigantesca nuvem de gás, rica em hidrogênio, há aproximadamente 5 bilhões de anos. A própria gravidade da nuvem, aliada à sua rotação, fez com que ela assumisse a forma de uma pizza durante o seu colapso, com a maioria da massa concentrada em seu centro. Essa massa central gerou o Sol, enquanto que aglomerados menores girando à sua volta produziram os planetas. (Esse processo é explicado em meu livro "O Fim da Terra e do Céu".) Ao menos aproximadamente, a nossa galáxia repetiu esse mesmo processo de formação, 7 bilhões de anos antes do Sol. Mas a concentração de massa em seu centro era tão gigantesca que ela não pôde suportar o próprio peso e entrou em colapso, terminado com um buraco negro.

Recentemente, um outro ramo dessa hierarquia cósmica foi descoberto. Aglomerados globulares contêm milhões de estrelas, entre elas as mais velhas do Universo, com 12 bilhões de anos. O Telescópio Espacial Hubble detectou buracos negros no centro de dois aglomerados, cada um contendo também 0,5% da massa de seu aglomerado, a mesma proporção das galáxias. Resta desvendar a função das âncoras cósmicas no processo de formação de galáxias, sejam elas pequenas ou grandes.


domingo, 22 de setembro de 2002

O debate sobre astrologia e ciência


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O recente interesse na regulamentação da astrologia como profissão oferece a oportunidade de refletir sobre questões que vão desde as raízes históricas da ciência até a percepção, infelizmente muito popular, de seu dogmatismo. Preocupa-me, e imagino que a muitos dos colegas cientistas, a rotulação do cientista como um sujeito inflexível, bitolado, que só sabe pensar dentro dos preceitos da ciência. Ela vem justamente do desconhecimento sobre como funciona a ciência. Talvez esteja aqui a raiz de tanta confusão e desentendimento.

Longe dos cientistas achar que a ciência é o único modo de conhecer o mundo e as pessoas, ou que a ciência está sempre certa. Muito ao contrário, seria absurdo não dar lugar às artes, aos mitos e às religiões como instrumentos complementares de conhecimento, expressões de como o mundo é visto por pessoas e culturas muito diversas entre si.

Um mundo sem esse tipo de conhecimento não-científico seria um mundo menor e, na minha opinião, insuportável. O que existe é uma distinção entre as várias formas de conhecimento, distinção baseada no método pertinente a cada uma delas. A confusão começa quando uma tenta entrar no território da outra, e os métodos passam a ser usados fora de seus contextos.
Portanto, é (ou deveria ser) inútil criticar a astrologia por ela não ser ciência, pois ela não é. Ela é uma outra forma de conhecimento. Na coluna de 28 de julho, tentei tornar esse ponto claro.
Essa caracterização da astrologia como não-ciência não é devida ao dogmatismo dos cientistas. É importante lembrar que, para a ciência progredir, dúvida e erro são fundamentais. Teorias não nascem prontas, mas são refinadas com o passar do tempo, a partir da comparação constante com dados. Erros são consertados, e, aos poucos, chega-se a um resultado aceito pela comunidade científica.

A ciência pode ser apresentada como um modelo de democracia: não existe o dono da verdade, ao menos a longo prazo. (Modismos, claro, existem sempre.) Todos podem ter uma opinião, que será sujeita ao escrutínio dos colegas e provada ou não. E isso tudo ocorre independentemente de raça, religião ou ideologia. Portanto, se cientistas vão contra alguma coisa, eles não vão como donos da verdade, mas com o mesmo ceticismo que caracteriza a sua atitude com relação aos próprios colegas. Por outro lado, eles devem ir dispostos a mudar de opinião, caso as provas sejam irrefutáveis.

Não creio que a questão seja, conforme argumentou o senador Artur da Távola em artigo na Folha de 26 de agosto, um embate do bitolado mecanicismo freudiano contra o holismo junguiano. Isso porque o mecanicismo na física não é freudiano, mas newtoniano.

A física hoje usa técnicas de análise baseadas em métodos qualitativos que podem ser considerados "holísticos", ou não-reducionistas. É o caso da teoria do caos, ou da emergência de estruturas coerentes em sistemas complexos. A ciência desconhece muito do mundo. Mas o que é passível desse conhecimento deve ser analisável de modo objetivo, não sujeito a opiniões subjetivas. Existem quase tantas astrologias quanto existem astrólogos.

Será necessário definir a astrologia? Afinal, qualquer definição necessariamente limita. Se popularidade é medida de importância, existem muito mais astrólogos do que astrônomos. Isso porque a astrologia lida com questões de relevância imediata na vida de cada um, tendo um papel emocional que a astronomia jamais poderia (ou deveria) suprir.

A astrologia está conosco há 4.000 anos e não irá embora. E nem acho que deveria. Ela faz parte da história das idéias, foi fundamental no desenvolvimento da astronomia e é testamento da necessidade coletiva de conhecer melhor a nós mesmos e os que nos cercam. De minha parte, acho que viver com a dúvida pode ser muito mais difícil, mas é muito mais gratificante. Se erramos por não saber, ao menos aprendemos com os nossos erros e, com isso, crescemos como indivíduos. Afinal, nós somos produtos de nossas escolhas, inspiradas ou não pelos astros.

domingo, 15 de setembro de 2002

O grande dilema de Einstein


Marcelo Gleiser
especial para a Folha


Em 1916, após quase dez anos de trabalho (não exclusivo), Einstein concluiu a Teoria da Relatividade Geral, na qual mostra que a atração gravitacional entre dois corpos pode ser interpretada como causada pela curvatura do espaço em torno deles: quanto maior a massa, maior a curvatura do espaço criada.

Como a Teoria Geral inclui a Teoria Especial de 1905, não só a massa pode encurvar o espaço, mas também a energia. Afinal, existe uma relação profunda entre massa e energia, conforme expressa a equação E=mc2.

Empolgado com a sua belíssima teoria, Einstein deu um passo ambicioso: já que a curvatura do espaço é ditada pela presença de massa e energia, se fosse possível estimar a massa-energia do Universo inteiro, a teoria poderia ser usada para determinar a geometria do cosmo.
Imagine só, determinar a forma do Universo usando apenas papel, lápis e as equações da Relatividade Geral. Sem dúvida, um dos grandes triunfos da razão humana. Em 1917, Einstein propõe a sua solução para a geometria cósmica, inaugurando a era da cosmologia moderna.
Segundo Einstein, o Universo deve ser estático, ou seja, o mesmo no passado e no futuro. Essa hipótese não era completamente aleatória: na época, não havia razão maior para crer em um Universo dinâmico, que muda no tempo.

Apenas algumas observações astronômicas, ainda não muito confiáveis, mostravam um afastamento das nebulosas distantes. Vale lembrar que somente em 1924, após o trabalho do astrônomo americano Edwin Hubble, ficou claro que o Universo está cheio de galáxias como a Via Láctea. Antes disso, com telescópios pouco potentes e precisos, achava-se que o Universo fosse a Via Láctea.

Fora um cosmo estático, ecoando Platão, Einstein acreditava que ele deveria ser o mais simétrico possível, no caso, com a geometria de uma esfera. Existe mesmo uma elegante propriedade em um Universo esférico: ele é finito, já que qualquer circunavegação acaba por voltar ao seu ponto de saída.

Por outro lado, como o leitor pode visualizar no caso de uma esfera em duas dimensões (a superfície de uma bola), uma esfera não tem fronteiras, já que qualquer ponto em sua superfície é perfeitamente equivalente a qualquer outro. Portanto, Einstein propôs um Universo estático e esférico, finito e sem fronteiras, onde todos os pontos são equivalentes.
Como calcular as suas propriedades? Se o cosmo é esférico, as coisas ficam muito mais fáceis. Para caracterizar uma esfera precisamos apenas saber o raio, um número. Segundo as equações da Relatividade Geral, esse número, que determina a geometria cósmica, deve ser fixado pela matéria existente no Universo.

Para reduzir a distribuição de matéria a apenas um número, Einstein propôs o Princípio Cosmológico, segundo o qual o Universo, quando visto a grandes distâncias, é, em média, idêntico. Claro, se olharmos para o céu estrelado, ele não tem nada de idêntico. Mas a idéia é olhar a distâncias realmente enormes, de milhões de anos-luz (a Via Láctea tem um diâmetro de 100 mil anos-luz).

Restava resolver as equações e determinar o raio do Universo como função da quantidade de matéria. Mas aqui surgiu um problema; a gravidade, sendo atrativa, resulta em um Universo instável. Não era possível obter um Universo estático, esférico e com uma distribuição média constante de matéria-energia.

Einstein propôs uma saída: adicionar um novo termo às equações, conhecido hoje como "constante cosmológica". Esse termo funciona como uma força repulsiva, equilibrando o universo de Einstein. Em 1917, ele escreveu para Willem de Sitter: "A teoria da relatividade permite a introdução desse termo. Um dia, nosso conhecimento do céu irá nos ajudar a determinar empiricamente se o termo existe ou não. Convicção é um bom motivo, mas um péssimo juiz".

Em 1931, com a confirmação da expansão do Universo por Hubble, Einstein abandona a constante cosmológica. Mas volta e meia ela reaparece, como é o caso agora. Ainda estamos à espera dessa determinação empírica.

domingo, 8 de setembro de 2002

Os solitários viajantes cósmicos


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

São já passados 25 anos desde o lançamento das duas sondas Voyager em 1977, a Voyager-1 e a Voyager-2. Segundo os planos originais da Nasa, as sondas robotizadas, pesando aproximadamente uma tonelada cada, deveriam durar apenas quatro anos, chegando a Júpiter, em 1979, e a Saturno, em 1981. Sua missão era coletar dados desses planetas, enviá-los por rádio até a Terra e, em seguida, terminar a sua existência abandonadas na imensidão do espaço.
Surpreendentemente, as duas sondas, que revolucionaram a compreensão dos quatro planetas gigantes e de suas luas, continuam muito vivas, viajando em direção aos confins do Sistema Solar a uma velocidade de 50 quilômetros por segundo. O seu destino final, incerto, é o espaço interestelar, pequenos brasões de uma civilização que habita um modesto planeta girando em torno de uma estrela também modesta.

A sonda Voyager-1, o objeto mais distante da Terra já construído pelo homem, se encontra atualmente a aproximadamente 12 bilhões de quilômetros; a Voyager-2, a 9,5 bilhões. Entre 1979 e 1989 as duas sondas estudaram 48 luas dos planetas Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.
A incrível longevidade das sondas se deve ao uso extremamente eficiente de sua energia: o calor gerado pelo decaimento radioativo de uma amostra de plutônio produz em torno de 310 watts, 23 dos quais são usados por um transmissor a bordo. Muito provavelmente, ambas continuarão a funcionar por mais 20 anos, antes de a eletrônica falhar definitivamente.

Com o aumento da distância, a comunicação se torna cada vez mais difícil e demorada. Mesmo que as ondas de rádio geradas pelas sondas viajem à velocidade da luz, são 12 horas para um sinal saído da Voyager-1 chegar até a Terra.

O mecanismo usado pelos engenheiros da Nasa para impulsionar as sondas a distâncias tão gigantescas sem o uso de combustível é conhecido como catapulta gravitacional. Basicamente, a atração gravitacional entre a sonda e o planeta é usada para "catapultá-la" adiante.
Uma pedra cai no chão devido à atração gravitacional entre a pedra e a Terra. Ao cair, a pedra é acelerada devido a essa atração. Imagine que a pedra seja atirada transversalmente ao chão, como um tiro de canhão. Ao cair, a pedra será acelerada do mesmo jeito e a sua velocidade irá aumentar, tal como se ela estivesse caindo verticalmente.

Agora, imagine que a pedra seja a sonda Voyager-1 e que o planeta seja Júpiter. A sonda passa perto o suficiente de Júpiter para ser atraída gravitacionalmente e, portanto, acelerada pelo planeta. A sua velocidade transversal e a sua distância são tais que ela não cai no planeta, mas, devido a essa aceleração extra, é catapultada para longe.

Esse truque da catapulta gravitacional é usado com frequência em viagens interplanetárias. Só a Voyager-2 foi catapultada por Júpiter, em 1979, por Saturno, em 1981, por Urano, em 1986, e por Netuno, em 1989, tal como um macaco pulando de galho em galho. Essa última manobra lançou a sonda para fora do plano onde residem os planetas do Sistema Solar, em direção ao espaço sideral.

Juntas, as duas viajantes revelaram mundos que jamais havíamos imaginado possíveis: milhares de anéis em torno de Saturno, dotados de uma estrutura extremamente complexa; anéis também em torno de Júpiter, Urano e Netuno; vulcões em Io, uma lua de Júpiter, ejetando matéria a altitudes de 200 quilômetros; detalhes da superfície de outra lua de Júpiter, Europa, que é composta de um oceano coberto por uma crosta de gelo; nuvens e furacões gigantescos em Netuno, semelhantes ao "olho" (ou "grande mancha vermelha") de Júpiter. A lista é enorme.

Mesmo que as sondas Voyager estejam já longe dos planetas de nosso Sistema Solar, sua missão ainda não terminou. Ambas carregam uma placa (idêntica à de uma outra sonda que foi catapultada além do Sistema Solar, a Pioneer-10), com informações detalhadas de como localizar o nosso Sistema Solar e a Terra na galáxia, uma imagem de um homem e de uma mulher e o dado de quando a sonda foi lançada.

Quem sabe um dia uma outra civilização extraterrestre irá encontrar uma dessas sondas? Só espero que, se eles resolverem nos fazer uma visita, que seja com fins pacíficos.

domingo, 1 de setembro de 2002

Economia cósmica


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Em sua essência, a ciência busca organizar a nossa percepção dos fenômenos naturais. Por meio dessa busca, encontramos os mecanismos operacionais da natureza, chamados de leis. Elas descrevem, de modo econômico e preciso, como as coisas ocorrem no cosmo, do interior do núcleo atômico aos confins do Universo. Portanto, pode-se dizer que a essência da ciência tem sido a busca dessas leis naturais, o código cósmico.

Quatrocentos anos de ciência revelaram algumas dessas leis. Talvez a mais famosa seja a lei da conservação de energia, que afirma que a quantidade de energia antes e depois de algum evento é a mesma. Ela pode se transformar no decorrer do evento, mas jamais desaparece. Por exemplo, um carro usa a energia química armazenada na gasolina para impulsionar o seu motor que, por sua vez, faz girar as suas rodas. Existe uma perda de energia devido à fricção interna ao motor e nas rodas, mas a quantidade total de energia, incluindo a perda devido à fricção, deve ser a mesma. Essa lei, assim como todas as outras, é testada e confirmada quantitativamente todos os dias.

Talvez a questão mais básica em ciência seja: "Por que essa leis e não outras?" Como foi decidido que o Universo devia operar desse jeito e não de outro? Claro, uma resposta bem mais antiga do que a ciência é que Deus (ou os deuses, dependendo da crença de cada um) criou o Universo e as leis que regem o comportamento das coisas. Essa resposta, por mais popular que seja, não é muito interessante do ponto de vista científico, já que a missão da ciência é proporcionar explicações racionais do funcionamento do cosmo sem o uso de argumentos sobrenaturais. Idealmente, gostaríamos de responder a essa pergunta usando a própria ciência.

Esse problema se torna mais complexo ainda quando tentamos respondê-lo junto com uma outra questão complicada, a da origem do Universo. Segundo santo Agostinho, Deus criou o tempo junto com o cosmo. Portanto, a pergunta "O que estava acontecendo antes de o mundo existir?" não faz sentido, já que o tempo não existia antes do mundo. A relação com a origem das leis da natureza é imediata: mesmo se conseguirmos desenvolver um modelo matemático que explique a origem do Universo, esse modelo será necessariamente baseado nas leis da física. Ou seja, a pergunta "Como o mundo surgiu?" na verdade deveria ser "Como surgiram as leis da física?". As leis vêm antes dos modelos.

Mas, se as leis vêm antes dos modelos, o que vem antes das leis? Racionalmente, só existe uma resposta: os princípios. Pegue um dicionário e procure pela definição de "princípio". A primeira é: "Fonte primária, origem, ou causa de algo"; a segunda: "Uma tendência natural ou original"; a terceira: "Uma verdade fundamental ou força motivadora, donde outras se baseiam" (fonte: "Webster's New World Dictionary", 3rd College Edition). Ou seja, por trás das leis deve haver algum princípio fundamental, que é capaz de originá-las. A questão é, portanto, que princípio é esse.

Para responder a essa questão, temos de examinar a história cósmica. Segundo a cosmologia moderna, o cosmo começou simples, com a matéria desorganizada, constituída apenas de seus componentes básicos, as partículas elementares. Com o passar do tempo, a matéria passou a se organizar de forma cada vez mais complexa: os quarks formaram prótons e nêutrons, os prótons e nêutrons formaram núcleos atômicos, os elétrons se juntaram aos prótons para formar átomos.
Esses átomos, sob a ação da gravidade, formaram estrelas, que formaram outros elementos químicos e moléculas mais complexas. E essas moléculas, ao menos aqui na Terra, formaram seres vivos mais elementares e, eventualmente, seres humanos, capazes de refletir sobre as suas próprias origens. A história cósmica é a história da complexificação gradual das formas materiais. Qual o seu princípio operativo? A economia. A natureza sempre opta pelo caminho menos custoso. A agregação da matéria responde a esse princípio. As próprias leis naturais, acho eu, são consequência desse princípio. E de onde vem esse princípio? De si próprio. Sem ele, seria impossível decidir qual a forma material mais econômica e eficiente. E o caos reinaria eternamente.

domingo, 25 de agosto de 2002

A elusiva matéria escura


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A ciência nem sempre avança a passos certos. Muito pelo contrário, o processo de desenvolvimento das teorias científicas é marcado por pistas falsas, divergências de opinião e vários recomeços após tentativas fracassadas. Essa luta toda não é uma fraqueza da ciência, mas consequência de nossas próprias limitações ao lidar com os desafios impostos pela natureza. É sempre bom lembrar que sem dúvida o conhecimento não avança.

Dos vários desafios atuais, um dos mais fascinantes é o da matéria escura. Ao contrário da matéria luminosa, como a que vemos em estrelas e certas nuvens de gás, ela não produz a sua própria luz. Sua existência foi proposta para explicar um aparente problema com a velocidade de rotação das estrelas em galáxias.

Galáxias são aglomerados de estrelas e gás, principalmente hidrogênio e hélio. Como tudo no Universo, de planetas a estrelas, as galáxias também giram. A sua velocidade de rotação é medida através da observação da rotação das estrelas em torno do centro da galáxia.

No século 17, o físico inglês Isaac Newton propôs as três leis de movimento e a lei da atração gravitacional, que juntas ditam como as estrelas devem girar em torno do centro das galáxias. De acordo com a segunda lei de movimento de Newton, a aceleração de um objeto é proporcional à força aplicada sobre ele dividida pela sua massa. Quando essa lei, junto com a lei da atração gravitacional, é aplicada ao movimento das estrelas em galáxias, a previsão é que a velocidade de rotação das estrelas atinja um valor máximo a uma certa distância do centro e comece a cair a partir daí.

Surpreendentemente, não é o que se observa. Na maioria das galáxias, a velocidade de rotação chega a um valor máximo mas, em vez de cair a partir dali, ela fica aproximadamente constante. As observações discordam da teoria de Newton, a mais aceita da física clássica.

Das duas, uma: ou a teoria de Newton tem de ser modificada para grandes distâncias, ou existe mais matéria do que a luminosa que vemos nas galáxias. Essa última hipótese leva à matéria escura, um tipo de matéria cuja presença só pode ser detectada por sua atração gravitacional sobre outras formas de matéria luminosa, como as estrelas nas galáxias.

As primeiras idéias sobre matéria escura datam da década de 1930, quando o astrônomo Fritz Zwicky mostrou que as velocidades de galáxias em aglomerados de galáxias (sistemas onde várias galáxias giram uma em torno da outra, atraídas pela gravidade) são muito maiores do que o que se pode inferir devido à existência apenas da matéria luminosa.

Hoje, a maioria dos astrônomos e físicos acredita que essa matéria escura seja muito mais abundante do que a matéria de que nós somos feitos. Para os proponentes dessa hipótese, cerca de um terço do Universo é composto de matéria escura, enquanto apenas 5% é composto de matéria luminosa. O problema com esse cenário é que, até hoje, ninguém conseguiu detectar essa matéria escura, apesar dos esforços. Essa dificuldade tem levado alguns físicos a optar pela primeira solução, modificar a teoria de Newton.

A proposta que vem sendo levada mais a sério é a de Mordehai Milgrom, físico israelense do Instituto de Pesquisas Weizmann. Segundo Milgrom, quando as acelerações são muito pequenas, como é o caso das estrelas em galáxias, ou de galáxias em aglomerados de galáxias, a segunda lei de Newton é modificada de forma que a força seja proporcional ao quadrado da aceleração.

Nesse esquema, chamado Mond (sigla em inglês de "dinâmica newtoniana modificada"), uma mesma aceleração pode ser obtida com uma força menor, ou seja, com uma gravidade mais fraca. A modificação de Milgrom se encaixa muito bem nas observações, fazendo até certas previsões que foram confirmadas. Mas ela é apenas uma teoria fenomenológica, desenhada para funcionar.

Resta ver se existe algum princípio mais fundamental que determina essa modificação, ou se o Universo é repleto de matéria exótica. Nesse meio tempo, a crise inspira a criatividade dos físicos.

domingo, 18 de agosto de 2002

Em busca da supersimetria


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O desenvolvimento da física deve muito ao conceito de simetria. Em geral, a natureza é complexa demais para ser descrita exatamente, em todos os detalhes. Felizmente, muitas vezes é possível desprezar a maioria das complicações, focando a atenção no essencial.

Se um objeto é apenas aproximadamente esférico, como a Terra, que é achatada nos pólos e, portanto, tem forma oblonga, nós o aproximamos como sendo esférico. Em algumas aplicações da física nuclear, ótimos resultados podem ser obtidos considerando idênticas as massas do próton e do nêutron, mesmo que em realidade o nêutron tenha uma massa ligeiramente maior.

À parte a utilidade dessas simplificações, a busca por padrões e simetrias em processos físicos revela propriedades inesperadas. Átomos em estados excitados só podem emitir radiação em certas frequências, que dependem da simetria global do sistema. Mas é na física das partículas elementares que o conceito de simetria atinge o seu auge.

Tudo o que se sabe hoje sobre o mundo dos constituintes fundamentais da matéria está resumido no chamado Modelo Padrão. São 12 as partículas de matéria, seis quarks (que compõem, entre outros, o próton e o nêutron) e seis léptons (o elétron é um deles). São quatro as forças que regem as interações entre as partículas fundamentais: a gravidade, o eletromagnetismo e as forças nucleares fraca e forte. As forças entre as partículas de matéria também são descritas por partículas, chamadas bósons.

Uma imagem útil é a de dois patinadores no gelo atirando bolas de tênis entre si. Os patinadores são as partículas de matéria e as bolas de tênis são as partículas de força, descrevendo a interação entre as partículas de matéria. Por exemplo, dois elétrons, tendo a mesma carga elétrica, se repelem. Essa repulsão é descrita pela troca de fótons, os bósons da força eletromagnética.

O Modelo Padrão foi tenazmente construído através da constante interação entre experimento e teoria durante os últimos 50 anos, mas é incompleto. Várias questões permanecem em aberto.
As 12 partículas de matéria aparecem em três "famílias" de quatro partículas cada, dois léptons e dois quarks. A família que conhecemos melhor é a que contém o elétron, o seu neutrino e os quarks "up" e "down", que compõem o próton e o nêutron. Por que não quatro ou dez famílias? Por que existem apenas três forças fora a gravidade? Por que essas forças têm intensidades tão diferentes? E como construir uma teoria em que as quatro forças sejam descritas como sendo apenas uma, a força unificada?

Tentativas de resposta invocam teorias que vão além do Modelo Padrão, supondo a existência de simetrias e propriedades que ainda não foram detectadas. A mais promissora tem o nome de supersimetria, pois relaciona os dois tipos de partícula, as de matéria e as de força.
Segundo as teorias supersimétricas, cada partícula de matéria tem como companheira uma de força, e vice-versa. Com isso, essas teorias dobram o número de partículas elementares. Apesar de a supersimetria ter sido proposta há 28 anos, até agora nenhuma dessas partículas supersimétricas foi observada.

Apesar disso, as promessas dessas teorias são grandes o suficiente para justificar o otimismo de muitos físicos. Sem dúvida, a supersimetria pode resolver vários dos problemas do Modelo Padrão, explicando, por exemplo, por que as forças têm intensidades diferentes, ou como possivelmente construir uma teoria unificada das quatro forças.

Como a física é uma ciência baseada na validação empírica das teorias, otimismo, por maior que seja, jamais será suficiente. Será necessária uma demonstração experimental da validade da supersimetria, possivelmente através da detecção direta de partículas supersimétricas.

Nos próximos anos, duas máquinas serão capazes de detectar (ou não) essas elusivas parceiras supersimétricas. Uma é o acelerador Tevatron do Fermilab (EUA), e a outra, o acelerador LHC do Cern (Suíça). Como prêmios Nobel estão em jogo, a disputa EUA-Europa é intensa. Claro, existe sempre a possibilidade de a supersimetria não existir. Afinal, a natureza tende a ser mais esperta do que nós. E talvez não tão simétrica assim.

domingo, 11 de agosto de 2002

Turbilhão digital

Marcelo Gleiser

A vida moderna, mais do que nunca, se transforma num ritmo acelerado, devido ao incessante passo dos avanços tecnológicos. A tendência é que esse ritmo continue sempre a aumentar, mesmo que isso venha a requerer grandes inovações científicas.

Por exemplo, a miniaturização crescente dos computadores, que hoje têm processadores com milhões de componentes eletrônicos, chegará forçosamente a um limite, em que o seu tamanho será comparável ao dos átomos. Quando isso ocorrer, o progresso em computação terá de usar um novo tipo de máquina, baseada em processadores que serão compostos por moléculas, os chamados computadores quânticos. Fica difícil acompanhar essas novas tecnologias e a ciência por trás delas. E essa dificuldade tem sérias consequências sociais. Neste ensaio, reflito mais sobre os desafios educacionais dessa revolução do que sobre a sua ciência.

Mesmo que seja óbvio que o progresso digital não só é inevitável como bem-vindo, existem certos efeitos colaterais que devem ser pensados com muito cuidado. É praticamente impossível, sem o devido poder aquisitivo, se manter em dia com todos os tecnobrinquedos que existem no mercado. São DVDs, HDTVs (televisores de alta definição), palm pilots (computadores de bolso), telefones celulares com acesso à internet, câmaras digitais e por aí a fora.

Se eu repetir essa lista em cinco anos, ela certamente terá aparelhos que ainda nem imaginamos. Isso sem falar na constante produção de novas versões de programas, cada vez mais poderosas, que, para serem rodadas, precisam de computadores cada vez mais rápidos.
O alto custo e a constante renovação das tecnologias promove a existência de uma "subclasse" tecnológica, os deixados às margens do turbilhão digital. E, como o motor fundamental da sociedade moderna são a geração e a troca de informação, esses novos marginalizados digitais sofrem uma grande desvantagem no mercado de trabalho. Essa estratificação social é ainda maior em países onde a distribuição de renda é muito polarizada, como é o caso brasileiro.
Uma possibilidade é implantar um vasto programa de "internetização" das escolas, especialmente as públicas, aliado à formação de professores treinados no uso dessas novas tecnologias como instrumentos pedagógicos. O problema é que um plano dessa natureza, em um país com as dimensões do Brasil, é extremamente caro. É impossível que o governo, sozinho, possa arcar com os custos. E não é só isso. Devido à constante renovação tecnológica, esse compromisso tem de ser permanente.

Sem ter a presunção de querer oferecer aqui uma solução para um problema de tal complexidade (entender o comportamento dos átomos ou do Universo primordial é bem mais simples), gostaria apenas de sugerir uma opção que pode ter alguma utilidade. Por que não oferecer incentivos fiscais para que o setor privado possa financiar em parte essa "internetização" das escolas e o preparo dos professores? A lei de incentivo audiovisual tem sido extremamente importante, por exemplo, no sustento da indústria de documentários. Não seria difícil imaginar algo semelhante para a educação. E os incentivos fiscais não precisam se restringir a empresas. O contribuinte individual também poderia tê-los.

A explosão que está ocorrendo atualmente com a existência da internet e o fácil acesso à informação trará (e já está trazendo) profundas modificações sociais. Em princípio, é possível que cada um tenha uma voz, e que essa voz seja ouvida e opiniões sejam trocadas pelo mundo inteiro, sem nenhuma interferência geográfica (existe uma barreira linguística, mas a verdade é que o inglês é, de fato, a língua da rede).

Muitos estudantes brasileiros já participam desse debate. Mas muitos não sabem o que é a internet, ou como se liga um computador. Eu vejo isso como um grande desperdício de potencial humano, algo que deveria ser uma preocupação de todos. O governo declarou guerra ao analfabetismo e deu grandes passos na direção certa. Talvez seja hora de a sociedade como um todo se mobilizar na guerra pela "internetização" das escolas.

A comunidade acadêmica pode ter aqui um papel crucial, por meio de uma interação maior entre as instituições de ensino superior e de ensino médio. Por exemplo, com programas como "o cientista vai à escola", em que pesquisadores colaborem com educadores no desenho de instrumentos pedagógicos em suas áreas, como demonstrações em salas de aula usando recursos da internet. As possibilidades são inúmeras. E a necessidade, a julgar pela difusão da internet na vida dos estudantes das classes mais altas, é cada vez maior.

domingo, 4 de agosto de 2002

A dramática história da Terra


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Tentar recriar o passado não é nada fácil. Especialmente quando a maioria das pistas deixadas foi metodicamente apagada pelo tempo, o grande inimigo da memória. O arqueólogo tenta reconstruir a história de uma civilização usando as poucas pistas que encontra -pedaços de vasos e urnas, pontas de flechas e lanças, partes de um túmulo ou de uma pedra funerária. O paleontólogo tenta reproduzir os detalhes da evolução da vida a partir de fósseis que, na maioria das vezes, mal reconstroem uma pata ou uma asa. Já o geólogo tenta recontar a história da Terra por meio do estudo metódico das rochas, por exemplo das variações em sua composição química e em sua estrutura cristalográfica, ou da maneira como elas se amontoam em camadas cuja ordem funciona como um relógio: as mais profundas são as mais antigas.

As três profissões lutam contra o mesmo inimigo, a decomposição e a erosão gradual dos materiais, que é extremamente acentuada aqui na Terra, devido ao enorme dinamismo de sua atmosfera. O desafio é extrair o maior número de detalhes usando o que ficou registrado nos diversos materiais. No caso do geólogo, na memória das rochas.

A geologia teve uma infância relativamente tranquila. No início do século 19, o britânico Charles Lyell publicou o livro "Princípios de Geologia", no qual propôs a doutrina conhecida como gradualismo (ou uniformitarianismo), segundo a qual as mudanças na crosta terrestre são extremamente lentas, imperceptíveis dentro de parâmetros humanos de tempo.
No final da década de 1960, essa visão ganhou grande ímpeto, com a verificação da chamada tectônica de placas, teoria que concebe a crosta terrestre formada por várias camadas rochosas, que flutuam lentamente em várias direções, com velocidades de alguns centímetros por ano, comparáveis à velocidade de crescimento das unhas.

O leitor pode facilmente verificar, comparando mapas da África e da América do Sul, como os continentes se encaixam um no outro, como peças de um quebra-cabeças. Segundo o gradualismo, os incidentes mais violentos na história terrestre se limitam a erupções vulcânicas, terremotos e mudanças climáticas, como grandes dilúvios ou eras glaciais. Hoje, sabe-se que essa visão conta apenas metade da história: a outra metade não tem nada de gradual.
Basta olharmos para a superfície da Lua com um par de binóculos para detectar, imediatamente, inúmeras crateras, cicatrizes das violentas colisões que marcaram a história do satélite. São mais de 30 mil crateras conhecidas, com tamanhos os mais variados.
É fácil reproduzir (muito modestamente) o que ocorre em uma colisão entre um asteróide ou um cometa e um corpo celeste sólido, como a Lua ou a Terra. O leitor pode fazer essa experiência na próxima vez em que visitar um lago ou uma praia: jogue pedras de tamanhos diferentes na água, com velocidades diferentes.

Primeiro se observa o deslocamento da água, marcado pela cavidade que circunda o ponto de impacto. Depois, vê-se uma coluna de água erguer-se no meio da cavidade, cuja altura cresce com a energia do impacto -quanto maior a energia, maior a sua altura. Finalmente, ondas circulares se propagam concentricamente a partir do ponto de impacto, dissipando a energia da colisão.

O que ocorreu na Lua ocorreu também na Terra (e em todos os planetas e luas do Sistema Solar), se bem que se conhecem menos de 200 crateras na superfície terrestre. A erosão aqui é mesmo extremamente eficiente, mas não é perfeita. Várias técnicas vêm sendo desenvolvidas para descobrir impactos do passado.

A chamada cratera do Meteoro, aberta há 50 mil anos nos EUA por um asteróide rico em ferro e níquel com 45 metros de diâmetro, é o exemplo mais bem-preservado de um impacto. Até 1960, acreditava-se que a cratera houvesse sido deixada por uma erupção vulcânica. Mas a análise das rochas locais mostrou um processo de vitrificação típico das altíssimas temperaturas que ocorrem durante um impacto (mais de 1.500C).

Outro método é o das imagens de satélites: o lago Mistatin, no Canadá, revelou-se na verdade uma cratera de 38 milhões de anos. A ilha central no lago é o que restou da coluna criada pelo impacto. Até mesmo a desordem no campo magnético das rochas pode acusar um local de impacto.

Gradualismo e catastrofismo oferecem mais do que uma visão complementar do passado terrestre: essas doutrinas mostram que criação e destruição também são complementares, e que nós não estaríamos aqui sem uma combinação dos dois.

domingo, 28 de julho de 2002

Profissão: astrólogo?


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Durante minha recente visita ao Brasil, fiquei sabendo do projeto de lei nº 43 de 2002, de autoria do senador Artur da Távola (PSDB-RJ), que visa a regulamentar a profissão de astrólogo. Tendo em vista que o senador foi membro de comissões especiais que elaboraram importantes leis e estatutos, incluindo a lei de defesa do consumidor e a lei de diretrizes e bases da educação nacional, confesso que fiquei muito surpreso e decepcionado com o presente projeto.

Ao ler a justificativa para tal proposta, minha decepção transformou-se em choque: o projeto propõe que a astrologia seja ensinada nas universidades, incluindo graduação e pós-graduação, com currículo regulamentado pelo MEC. Segundo o texto do projeto, a sua elaboração contou com "pensamentos e caracterizações de autores ligados à práxis, mantendo-se o pragmatismo inerente a uma conceituação legal". Aparentemente, nenhum cientista foi consultado.

Sem dúvida alguma, a astronomia deve muito à astrologia: já os babilônios, dois mil anos antes de Cristo, olhavam para os céus em busca de mensagens enviadas pelos deuses. O céu, sendo a morada dos deuses, era sagrado. Os movimentos dos corpos celestes e das constelações eram interpretados como sendo a escrita divina, carregada de significado e prognósticos para nós aqui embaixo. Portanto, para os babilônios -e todas as outras culturas que olhavam para cima em busca de mensagens e revelações-, os céus eram uma entidade sobrenatural, regida pela poder divino. Como os prognósticos dependiam da posição relativa entre os planetas (os cinco conhecidos até então) e as 12 constelações do Zodíaco, quanto mais precisas as medidas das posições dos corpos, mais "precisas" seriam as previsões.

Essa busca por uma precisão cada vez maior das posições planetárias levou ao desenvolvimento de modelos extremamente sofisticados, como o dos epiciclos e equantes de Ptolomeu, proposto em torno de 150 d.C., no qual as posições planetárias futuras poderiam ser determinadas com uma precisão equivalente a uma ou duas luas cheias. Esses modelos combinavam a crença astrológica na existência de uma significado sobrenatural para os céus com os seus movimentos regulares, transformando o cosmo em uma máquina repleta de engrenagens as mais complexas.
O próprio Ptolomeu escreveu um tratado dedicado à astrologia, o "Tetrabiblos", no qual dizia que a prática astrológica "acalma a alma por meio do conhecimento de acontecimentos futuros, como se eles estivessem ocorrendo no presente, e nos prepara para receber com calma e equilíbrio o inesperado". Ou seja, o aspecto mais importante da prática astrológica é a sua capacidade de prever o futuro, para que se possa recebê-lo de forma calma e equilibrada. Na linguagem mais moderna, isso se chama "calcular os trânsitos", usando as posições futuras dos planetas para prognosticar o futuro.

Santo Agostinho, no século 4º, condenou firmemente a astrologia, pois ela interferia no livre-arbítrio e na onipotência divina: se tudo está já escrito nas estrelas, nós não podemos optar pelo bem ou pelo mal e a fé em Deus se torna irrelevante. A resposta oferecida pelos astrólogos de então, muito usada ainda hoje, foi que "as estrelas não determinam, apenas sugerem".

O ingrediente fundamental que estava faltando nos modelos de Ptolomeu e outros era a física, que descreve as relações causais que regem os movimentos celestes. Quando Galileu, Kepler e Newton desenvolveram as bases da ciência moderna, descrevendo os movimentos celestes como sendo consequência da força da gravidade, a astrologia começou a se divorciar da astronomia: em um Universo regido por forças causais entre objetos materiais, não havia espaço para relações sobrenaturais entre corpos celestes e pessoas que violassem o conceito mais fundamental da física, a causalidade. Ou seja, é impossível, segundo tudo o que conhecemos hoje sobre o Universo e as suas propriedades físicas, obter informações sobre eventos futuros na vida de uma pessoa lendo os céus. Mais ainda, não existe nenhuma evidência quantitativa de que planetas e estrelas possam influenciar o comportamento de pessoas aqui na Terra. A astrologia não é uma ciência, é uma crença. O mesmo se aplica à quiromancia, à leitura de cartas de tarô, à numerologia, aos búzios. Por que não regulamentar também essas profissões, ensiná-las nas universidades?

Isso não significa que cientistas sejam bitolados ou fechados para novas idéias. Muito pelo contrário: nós dedicamos a vida ao desconhecido. Mas, em ciência, o processo de validação empírica é fundamental. Tudo bem que as pessoas gostem de ler o seu horóscopo no jornal ou ter o seu "mapa astral" analisado por um astrólogo. Isso até leva a uma auto-reflexão, que pode ser muito positiva. Tudo bem que alguém escreva uma tese sobre astrologia, por exemplo, sob o tema história das religiões ou arqueoastronomia. Mas regimentar a astrologia em curso superior é uma volta à Idade Média, quando o natural e o sobrenatural se misturavam sob o véu do medo, da superstição e da ignorância.

domingo, 21 de julho de 2002

O Deus relojoeiro: uma parábola revisitada


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Em 1802, o teólogo inglês William Paley propôs o seguinte argumento tentando justificar a existência de Deus, que eu parafraseio: "Imagine uma pessoa passeando em uma floresta. Essa pessoa é perfeitamente normal, mas ela nunca havia visto um relógio. Enquanto ela explora as belezas naturais, encantada com tantas árvores, flores e animais, depara um relógio de bolso jogado aos pés de um arbusto. Ela pega o relógio e, imediatamente, conclui que ele deve ter sido criado por Deus. Segundo essa pessoa, um instrumento de tal complexidade jamais poderia ter sido criado por processos naturais; era necessária a mão de Deus." Paley extrapola o argumento para o mundo natural, dizendo que a complexidade da natureza é rica demais para ter aparecido por acaso. Para ele, a natureza é o nosso relógio, cuja existência devemos atribuir à mão de Deus.

Eu gostaria de revisitar essa parábola, tomando a liberdade de mudar a sua perspectiva. Vamos voltar à floresta, onde uma pessoa encontra um relógio. Maravilhada, ela pega o relógio e leva-o para o seu vilarejo. Lá chegando, reúne o conselho de anciãos e revela o misterioso tesouro perante o olhar incrédulo dos pressupostos sábios. Assustados, os anciãos começam a discutir o que fazer com tal instrumento, perguntando-se qual a sua função e quem o construiu.

Rapidamente, as opiniões se dividem em dois campos: aqueles que acreditam que o relógio é criação de Deus e aqueles que querem investigar a questão com mais cuidado. Os que acreditam que o relógio é obra de Deus querem decretá-lo sagrado e, portanto, intocável pelas mãos dos homens: o instrumento deve ser exposto como prova da existência de Deus, permanentemente protegido por uma redoma de cristal e por guardas. Sua existência deverá permanecer um mistério.

O outro grupo, por sua vez, quer examinar o instrumento, descobrir a sua função. Para eles, mesmo que a origem do instrumento seja, de fato, misteriosa, isso não significa que ela deva permanecer assim. Talvez, com paciência e criatividade, seja possível entender de onde ele veio e qual a sua função. Talvez o instrumento não tenha, no fim das contas, uma origem sobrenatural.

A briga entre as duas facções é feia. No final, vencem os que acreditam que o instrumento é criação de Deus e, portanto, é intocável. O relógio torna-se símbolo da existência de Deus e mais e mais pessoas passam a ir à igreja, ajoelhando e se benzendo com fervor perante o estranho objeto.

Anos se passam até que, um dia, um imenso terremoto destrói o vilarejo e a igreja. Ninguém consegue encontrar o relógio, perdido entre os escombros. Tropas do governo são despachadas da capital para ajudar nas escavações, procurando sobreviventes. Seu líder é um jovem capitão, muito audaz e curioso. Ele mesmo participa das escavações, ansioso por salvar vidas. No meio das montanhas de concreto e vidro, ele encontra, por acaso, o relógio, pondo-o discretamente em seu bolso: a história da misteriosa aparição do instrumento feito por Deus era famosa no país inteiro. Que sorte a dele encontrá-lo!

À noite, em sua tenda, o jovem capitão começa a examinar o estranho objeto. Ele puxa o único pino que encontrou e, para a sua surpresa, a parte posterior se abre, revelando o mecanismo interior. Girando o pino de um lado para o outro ele escuta o tique-taque e percebe que os ponteiros começam a se mover. Em menos de uma hora, o capitão descobre que o instrumento foi criado para marcar a passagem do tempo. Influenciado pelos ensinamentos teológicos de sua infância, ele se pergunta se esse é o aparelho que marcará a chegada do dia do Juízo Final. Rindo, conclui que o instrumento não tem nada de sobrenatural, que ele é criação humana.

Mas quem o criou? Antes de partir em busca de uma resposta, ele desmonta e remonta cuidadosamente o mecanismo do relógio. Em duas semanas, usando partes de madeira e pesos de pedra, o capitão constrói dois relógios bem grandes. Os incrédulos anciãos, ao receber os relógios de presente, imediatamente consideram o capitão como sendo o diabo. Eles só relaxam após vários habitantes da vila construírem os seus próprios relógios, seguindo as instruções do capitão. Alguns até penduram os relógios em suas casas, ao lado da cruz.

O capitão, então, sai pelo mundo em busca do construtor de relógios. E, mesmo que ele jamais o tenha encontrado, ele próprio torna-se em um grande relojoeiro e inventor. Assim faz a ciência, ao desvendar os mecanismos do mundo e ao nos ensinar a aceitar a dúvida como a única porta para o conhecimento.