domingo, 10 de novembro de 2002

A tensão criativa do cosmos


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Existe uma tensão criativa no cosmos. Nós a sentimos todas as vezes em que olhamos para o mundo à nossa volta e em nós mesmos. Ela se manifesta nos menores detalhes, em uma gota de orvalho equilibrando-se na ponta de uma folha nas primeiras horas da madrugada, ou na simetria das asas de uma borboleta. E também em grandes escalas, em um relâmpago rasgando de luz a escuridão da noite, ou nas estrelas, que queimam as suas próprias entranhas para gerar a energia que resiste à sua implosão gravitacional. A história da humanidade pode ser contada como uma série de representações da dança entre o caos e a ordem que dá forma ao mundo.
Inúmeras histórias, pinturas, danças e rituais foram (e são) criados procurando dar significado à nossa existência. Nós olhamos para o cosmo com um misto de adoração e terror, de devoção e insegurança. Nossa curiosidade não tem limites.

Como algo pode surgir do nada? Qual a origem de todas as coisas? Como a ordem pode surgir por si só, sem algo ou alguém para dirigi-la? Será que a beleza que percebemos no mundo é um acidente ou ela tem um significado mais profundo? Por que temos tanta atração pelas coisas belas, como drogados pelas drogas? O que nos faz cultivar jardins, compor poemas e sinfonias, criar teoremas matemáticos e equações? Por que não nos contentamos simplesmente em comer, dormir e procriar?

Essas questões servem de ponte entre as várias formas de conhecimento, incluindo a pesquisa científica de ponta, as meditações filosóficas, as preces religiosas e as artes. De certo modo, essa busca por respostas nos define. Ao perguntar, ao querer saber sempre mais, nós damos significado à nossa existência. Mesmo que as respostas mudem de cultura para cultura, várias questões são essencialmente idênticas. E muitas permanecem sem resposta.

A ciência moderna desenvolveu uma narrativa descrevendo o surgimento das estruturas materiais no Universo. Embora muitos detalhes e questões fundamentais permaneçam em aberto, podemos hoje afirmar com certeza que a história do cosmo traça a "complexificação" crescente de seus habitantes -viventes ou não- baseada no desenvolvimento hierárquico de forma e função, do simples ao mais complexo.

Em seus primórdios, o Universo era extremamente quente e denso, e a matéria era composta de seus constituintes mais básicos, as partículas elementares. A expansão e o consequente resfriamento do Universo, juntamente com forças atrativas entre as várias partículas, estimularam a formação de estruturas compostas de mais de um componente, chamadas de estruturas ligadas: prótons e nêutrons surgiram a partir da junção de quarks; núcleos atômicos, da junção de prótons e nêutrons; átomos leves como o hidrogênio, da junção de núcleos atômicos e elétrons; galáxias, a partir do colapso de enormes nuvens de hidrogênio, estrelas de nuvens de hidrogênio e hélio dentro das jovens galáxias -até que, eventualmente, seres vivos surgiram em ao menos um dos bilhões de sistemas solares espalhados pelo cosmo.

A descrição científica da emergência de estruturas materiais complexas vem tendo enorme sucesso. A cosmologia, por exemplo, é hoje uma ciência empírica, com uma enorme quantidade de dados, o que há duas décadas seria impensável.

Esse sucesso, como deve ser em ciência, acaba por gerar mais perguntas. Entre as mais fascinantes estão as questões das origens: a origem do cosmo, a origem da vida e a origem da mente. As respostas a essas perguntas estão necessariamente relacionadas com a existência de estruturas emergentes: como estruturas podem se auto-organizar a ponto de gerar comportamentos extremamente complexos?

Seja o nosso Universo surgindo de uma sopa quântica de universos, seja um ser vivo composto de milhões de macromoléculas orgânicas, ou um ser pensante, capaz de refletir sobre a sua origem ou sobre questões morais, a emergência de estruturas complexas representa um dos grandes desafios intelectuais de nossa época, prova da incrível criatividade da natureza. E, por que não dizer, da nossa também.

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