domingo, 24 de novembro de 2002

Repensando a nossa existência


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A vida é um experimento em complexidade: conhecemos os ingredientes, os vários compostos químicos que fazem parte dos seres vivos, mas não sabemos como combiná-los para formar sequer o mais simples deles. Ainda não sabemos como reproduzir a vida no laboratório. Dadas as várias combinações possíveis de átomos de carbono, nitrogênio, oxigênio etc., é mesmo maravilhoso o salto da química à biologia, do inerte ao vivo. Outro salto maravilhoso é o da vida à vida inteligente, certamente um resultado raro dentre os vários possíveis caminhos evolutivos.

A raridade da inteligência nos seres vivos nos põe em uma situação delicada, indo de encontro ao que aprendemos nos últimos 400 anos de ciência, que, quanto mais descobrimos sobre o Universo, menos importantes parecemos ser. Afinal, nós vivemos em uma dentre bilhões de outras galáxias espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual com bilhões de estrelas. A matéria que nos compõe e às estrelas é de pouca importância: a maior parte da matéria cósmica não é feita de prótons e elétrons, mas de algo que não produz a sua própria luz, a ainda misteriosa matéria escura. Tanto a nossa localização no cosmo como a nossa composição material não são lá das mais relevantes. Mas as nossas mentes são.

Pelo que se sabe, não existem outras formas de vida inteligente. Caso existissem, provavelmente já teríamos sido visitados. Perdoem-me os crentes em visitas de ETs, mas elas não ocorreram.

Nossa galáxia, com diâmetro de 100 mil anos-luz e idade de 12 bilhões de anos, já teria sido atravessada inúmeras vezes por outras civilizações inteligentes. Parece que isso não ocorreu -a menos, claro, que os alienígenas tenham vindo bem antes de nós existirmos e partido sem deixar pistas, ou sem vontade de estabelecer um diálogo. Dado que existem várias incógnitas (como podemos entender a psique de extraterrestres, quando mal entendemos a nossa?), devemos manter a cabeça aberta e repetir, com Carl Sagan, que "a ausência de evidência não significa a evidência de ausência". Talvez ETs sejam apenas muito tímidos.

Vamos supor que sejamos, de fato, um evento raro no cosmo. Nesse caso, devemos estar prontos para assumir, sozinhos, uma enorme responsabilidade: preservar o nosso legado, sobrepujando os nossos instintos destrutivos. Os seres humanos são capazes das mais belas criações e dos mais horrendos crimes. É muito conveniente sonharmos com alienígenas sábios e serenos, que irão nos educar e inspirar antes que seja tarde.

Esses ETs são as versões modernas dos santos e profetas das várias religiões, que nos trazem esperança e fé. (Já os destrutivos são a versão dos demônios, ou, talvez, de nós mesmos.) Mas, se nós estamos sozinhos, temos de encontrar essa sabedoria por nós mesmos. Talvez seja aqui que possa existir um casamento entre ciência e ética religiosa. Podemos começar estendendo o provérbio do Antigo Testamento -"faça aos outros o que queres que façam a ti"- da sociedade para todos os seres vivos, conhecidos ou não, aqui e em todo o cosmo.

Para tanto, seria bom começar a aprender um pouco com a elegância e a simplicidade do mundo natural. Por trás da ordem que vemos em nossos corpos e à nossa volta, existe uma necessidade inerente de existir e de criar estruturas complexas, através de combinações e ligações entre entidades diversas. Esse impulso criativo se manifesta do mundo subatômico até os confins do Universo observado, incluindo, claro, seres vivos. Ele tem a ver com a economia das estruturas ligadas, com o fato de que, juntas, entidades conseguem minimizar a energia necessária para se autopreservar.

Todos os processos naturais invariavelmente escolhem o caminho mais econômico para chegar a seu objetivo. Isso é verdade para átomos, bactérias, elefantes ou galáxias. Mas nós nos distanciamos da natureza e nos tornamos seres dispendiosos. Nossos excessos são revelados no desprezo com que tratamos o planeta e a nós mesmos. Se somos mesmos raros, temos de merecer essa distinção e não nos tornarmos vítima dela.

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