domingo, 30 de maio de 2004

Einstein, ícone da ciência

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Ninguém ficou muito surpreso quando a revista norte-americana "Time" elegeu Einstein a "Pessoa do Século". Afinal, ele já havia aparecido na capa da revista cinco vezes, mais do que qualquer outra pessoa. Mesmo assim, muitos acharam um absurdo um cientista ter sido escolhido, em meio a tantos candidatos. Por que não Gandhi, Charles Chaplin, Winston Churchill, Picasso, John Lennon? Tenho certeza de que o leitor poderia encher esta coluna com seus candidatos.

Mas foi Einstein o escolhido, um físico teórico cuja obra científica é compreendida por poucos especialistas. Todo mundo associa Einstein à famosa fórmula E=mc2 e sabe que sua teoria da relatividade demoliu os conceitos de espaço e tempo absolutos, criando uma nova visão de mundo, em que diferentes observadores, em movimento relativo, têm percepções distintas da realidade.

O que poucos sabem é que a teoria busca justamente relacionar as percepções de diferentes observadores, mostrando como eles podem comparar suas medidas sem conflitos. A teoria é, na verdade, uma teoria de absolutos: as leis da física independem da percepção particular de observadores em movimento relativo. Elas são as mesmas para todos.

O que a teoria da relatividade faz é dar voz a cada observador, mostrando que sua percepção da realidade é perfeitamente válida e equivalente à de outros. Ela democratiza a percepção do real.
Einstein levou essa democratização para além da física. Pacifista, renunciou à cidadania alemã para protestar contra sua crescente militarização. Sionista, preocupava-se com o futuro dos judeus numa Europa repleta de anti-semitismo. Acreditava que o grande mal do mundo era sua divisão em fronteiras, cada país ilhado dentro da sua. Se pudesse, ele as aboliria, junto com os passaportes.

Quando, em 1919, uma das previsões de sua teoria da relatividade geral foi comprovada -a luz de estrelas distantes é desviada ao passar perto do Sol devido à curvatura do espaço em sua vizinhança-, Einstein foi imediatamente catapultado à fama internacional.

O mundo estava se recuperando de duas tragédias, a Primeira Guerra Mundial e a terrível epidemia da gripe de 1918, que matou entre 20 e 50 milhões de pessoas. Com a realidade enegrecida, as pessoas olharam para esse decifrador dos segredos do cosmo como uma espécie de profeta, alguém que conseguiu entender a natureza como nenhum outro.

O pressuposto esoterismo de suas idéias, lidando com espaço e tempo, com a velocidade da luz e a cosmologia, o átomo e suas propriedades, certamente contribuiu para tal. O cientista tornou-se profeta, ao mesmo tempo humano e semidivino.

Em uma capa da "Time" de 1979, o centenário do seu nascimento, o rosto de Einstein aparece em "close", circundado de galáxias e estrelas. A imagem o mostra envelhecido, sábio, olhos profundos e tristes, alguém que vislumbrou os segredos mais profundos e que sofreu com os males do mundo. Como contraste, a capa de 1946 mostra também o rosto de Einstein, mas atrás dele se vê uma nuvem em forma de cogumelo típica de uma explosão nuclear, com a fórmula E=mc2 escrita em meio à fumaça. Ou seja, logo após a Segunda Guerra, que terminou com as explosões nucleares em Hiroshima e Nagasaki, Einstein aparece como responsável pelo uso da ciência para fins destrutivos. Um pulo grande, disso até a pessoa do século! A participação de Einstein na construção da bomba foi praticamente inexistente. Ele escreveu uma carta ao presidente Roosevelt em 1939, sugerindo que os EUA iniciassem estudos sobre a produção de bombas antes que os nazistas o fizessem.

A famosa fórmula, que descreve parte das transformações de energia que ocorrem no núcleo atômico, foi proposta completamente fora do contexto de uma bomba e não é usada em sua construção. Mas como é sempre muito mais fácil culpar alguém do que entender o que de fato ocorreu, a mídia achou o seu bode expiatório.

Imagino como Einstein, que morreu em 1955, deve ter se sentido ao ver sua imagem usada desse modo. Talvez a capa de 1979 e a eleição dele como pessoa do século tenham sido a forma de a revista se desculpar por seu sensacionalismo em 1946. Um pouco tarde demais, mesmo em tempo relativo.

domingo, 23 de maio de 2004

A natureza enfurecida

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Nos dias 9 e 10 de maio, o canal de TV norte-americano NBC mostrou o filme "10,5", onde uma série de terremotos monstruosos destrói boa parte da Costa Oeste americana, incluindo desde as maiores cidades da Califórnia, Los Angeles e São Francisco, e até Seattle, no estado de Washington.
O título refere-se à escala Richter, que mede a intensidade de terremotos. Um terremoto com 10,5 de intensidade seria absolutamente devastador. Segundo o filme, não é uma má idéia comprar terra no deserto do Arizona: em breve essas terras terão vista para o mar. O interessante é que "10,5" foi o filme mais visto nos últimos cinco anos de televisão: teve quase 21 milhões de telespectadores. Só o documentário "9-11", sobre os ataques terroristas em Nova York e Washington, bateu o recorde. Mas esse foi um desastre que de fato ocorreu.

Os terremotos gigantescos de "10,5" são coisa de criança quando comparados com o que vem por aí. No dia 28, estréia nos EUA o filme "O Dia Depois de Amanhã" (The Day After Tomorrow), uma produção de 125 milhões de dólares que narra a devastação da Terra por um desequilíbrio climático provocado pelo efeito estufa. Basicamente, o aquecimento global degela grande parte das calotas polares. Esse degelo injeta uma quantidade enorme de água doce nos oceanos, causando o resfriamento das águas do Atlântico Norte e interrompendo o ciclo de aquecimento e resfriamento que existe entre o sul e o norte do oceano Atlântico. O resultado é um caos total no clima do planeta: granizo do tamanho de abacaxis em Tóquio, neve em Nova Déli, tornados que destroem Los Angeles (parece que essa cidade não tem mesmo salvação), um maremoto destruindo Nova York e por aí afora.

Imagino que, se os produtores prestassem atenção ao Brasil, a metade leste de seu território também seria submersa pelas águas. (Ainda não vi o filme, apenas um trailer de dez minutos.) Após o caos inicial, grande parte da Terra entra em uma nova Era Glacial, como a que ocorreu há 10 mil anos. Tudo isso em alguns dias.

O diretor do filme, Roland Emmerich, que dirigiu "Independence Day", usou todos os efeitos especiais possíveis para criar um quadro assustador da fragilidade do homem perante a fúria da natureza. Climatologistas prevêem alguns destes efeitos caso a poluição global causada por gases industriais continue no nível atual. Mas o processo é lento, durando décadas ou até centenas de anos, e não dias. O que o filme faz é acelerar a devastação que, segundo muitos cientistas, será inevitável.

É justamente a lentidão das conseqüências do efeito estufa que torna difícil a implementação de controles e políticas de prevenção. Para complicar as coisas, as previsões dependem de modelos complexos e não são perfeitas, sendo portanto alvo de crítica por grupos de interesse ligados a certas indústrias, como as produtoras de petróleo e petroquímicas em geral, entre outras.
Mesmo cientistas vêm debatendo a relação entre o aquecimento global e a poluição. Em declaração recente, um grupo de cem cientistas australianos argumenta que o aquecimento faz com que o planeta fique mais úmido e que essa umidade aumenta a quantidade de plantas. Plantas diluem os efeitos dos gases causadores do efeito estufa, dando mais tempo para que políticas de prevenção sejam implementadas.

O que me parece óbvio é que mesmo o estudo dos australianos demonstra claramente o impacto da presença humana no planeta. Visto que a Terra é um sistema finito, com capacidade de absorção finita, é uma mera questão de tempo até que as perturbações causadas por humanos comecem a causar sérios desequilíbrios climáticos. Quem cutuca uma colméia sabe que, mais cedo ou mais tarde, ela cairá no chão.

A famosa teoria do caos nasceu das investigações de Edward Lorenz, um climatologista do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Ao analisar as equações descrevendo o fluxo de calor na atmosfera, ele descobriu que, devido a uma propriedade delas chamada não-linearidade, pequenas pertubações podem ter efeitos enormes. Os exageros de Hollywood são cientificamente implausíveis. Mas eles mostram que, em uma guerra entre nós e a natureza, os perdedores seremos nós.

domingo, 16 de maio de 2004

Oppenheimer e a bomba

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Assim escreveu o físico J. Robert Oppenheimer, líder do Projeto Manhattan, que projetou e construiu as primeiras bombas atômicas norte-americanas, após o primeiro teste em 1945: "Sabíamos que o mundo jamais seria o mesmo. Algumas pessoas riam, outras choravam. Mas a maioria permaneceu em silêncio. Me recordei de uma passagem das escrituras hindus, o Bagavad-Gita: Vishnu, tentando convencer o príncipe a concluir suas tarefas, assumiu sua forma com vários braços e disse: "Agora sou a Morte, destruidora de mundos". Acho que todos nós, de uma forma ou de outra, estávamos pensando a mesma coisa". Mais tarde, em 1948, Oppenheimer declarou, "os físicos conheceram o pecado". Nenhum físico encarna tão claramente a complicada relação entre ciência, ética e moral.

Oppenheimer foi escolhido para liderar o Projeto Manhattan pelo general Leslie R. Groves, que comandava a operação em nome do governo. As credenciais científicas de Oppenheimer eram impecáveis: físico brilhante, ele já havia demonstrado sua criatividade em vários projetos, incluindo um em que ele obteve os primeiros resultados sobre buracos negros. Sua capacidade de liderança também era óbvia; em sua posição como professor na Universidade da Califórnia em Berkeley e no Instituto de Tecnologia da Califórnia, Oppenheimer, treinado nos melhores centros da Europa, formou a primeira geração de físicos teóricos dos EUA. Ele era respeitado pelos melhores físicos do mundo, inclusive Einstein e Bohr. A única "sombra" em seu currículo era a sua posição política. Embora Oppenheimer negasse a acusação, alguns políticos o consideravam um comunista. Talvez até um espião da União Soviética.

O debate sobre a afiliação política de Oppenheimer continua até hoje. O que se sabe é que as acusações foram usadas na década de 50 para desligá-lo de seu cargo de diretor da Comissão Americana de Energia Atômica. Por trás das manobras estava outro físico, Edward Teller, que discordava da política de antiproliferação nuclear defendida por Oppenheimer. Não havia dúvida que os físicos que trabalharam no Projeto Manhattan o fizeram com medo de que a Alemanha produzisse uma bomba atômica durante a guerra. A possibilidade de Hitler com a bomba era assustadora. Mas, após os episódios de Hiroshima e Nagasaki, a maioria dos físicos mudou radicalmente de posição. Desenvolver outras armas nucleares, como a bomba de hidrogênio, centenas de vezes mais poderosa do que as bombas de fissão nuclear jogadas no Japão, era imoral.

Mas não para Teller, um húngaro radicalmente anticomunista. Para ele, era apenas questão de tempo até que os soviéticos desenvolvessem não só bombas de fissão como as de urânio e plutônio, mas também as de fusão. E a possibilidade de Stalin ter bombas termonucleares sob seu poder era quase tão assustadora quanto Hitler. Para Teller, o único caminho para a segurança nacional era a corrida armamentista: um país com essas armas jamais seria atacado.
Em 1952, os EUA começaram a construção da bomba H. Oppenheimer, talvez paradoxalmente, inicialmente também tomou parte. Mas logo começou a sua oposição. Teller não iria permitir isso. Em 1953, um relatório para o Congresso dizia que "muito provavelmente, Oppenheimer era um agente soviético". Não havia qualquer evidência de fato incriminadora. Um processo foi aberto, no qual vários físicos defenderam a integridade de Oppenheimer. O prêmio Nobel I. I. Rabi declarou: "Vocês têm vários tipos de bomba atômica. O que mais querem? Vocês estão escrevendo a vida de um homem". Um homem que emergiu da Segunda Guerra como herói nacional e que, em 1954, teve cassado o seu acesso à política nuclear. Teller, usando a paranóia do medo que surte grande efeito na política norte-americana até hoje, acabou vencendo. Como disse em 1995 Hans Bethe, integrante do Projeto Manhattan: "Eu peço aos cientistas de todos os países que parem de trabalhar no desenvolvimento de armas nucleares ou quaisquer armas de destruição em massa". Mas as pesquisas continuam, alimentadas pelo medo e por um senso distorcido de patriotismo. Uma vez conhecido o pecado fica difícil retornar ao caminho da virtude.


domingo, 9 de maio de 2004

A realidade dual

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Aristóteles, em seu cosmo centrado na Terra, dividiu a realidade física em duas partes: abaixo da Lua e da Lua para cima. Abaixo da Lua, tudo era composto de quatro elementos -terra, água, ar e fogo. Esse era o mundo das transformações e mudanças. Da Lua para cima, tudo era feito de uma quinta substância, ou essência, o éter. O éter, supôs Aristóteles, era imutável, eterno.
Essa divisão do mundo persistiu até que, na Renascença, Copérnico, Galileu e Kepler defenderam que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmo. A transição se completou com a teoria da gravitação universal de Newton, que mostrou que a mesma lei da gravidade operava na Terra e no céu: assim na Terra como no céu, versão científica. A unificação de Newton suplantou a dualidade aristotélica. E assim tem sido na história da física, dualismos sendo suplantados por teorias mais avançadas.

No início do século 20, um outro dualismo assaltou a física e, portanto, a explicação da realidade em que vivemos. (Leitores podem discordar de que a física explique a realidade em que vivemos. Refiro-me apenas à realidade física do mundo, do espaço e do tempo e das interações entre objetos inanimados.) Uma nova teoria, a mecânica quântica, foi proposta, quase que forçadamente, para explicar o bizarro comportamento dos átomos e das moléculas.
As regras que regem o comportamento dos objetos de dimensões atômicas são muito diferentes das que regem o comportamento que percebemos no nosso dia-a-dia. Em particular, o mundo clássico, o mundo das nossas percepções imediatas, é um mundo de certezas e de previsões concretas. Sabemos que, se uma bola cair de uma certa altura, ela vai se chocar com o chão após um intervalo de tempo.

Já o mundo quântico é um mundo de incertezas e probabilidades: não podemos afirmar ao certo qual caminho um elétron percorrerá ao viajar de um ponto a outro do espaço, apenas quais os mais prováveis.

Será que esse dualismo entre o mundo clássico e o mundo quântico irá também desaparecer com o surgimento de uma nova teoria, como desapareceu o dualismo aristotélico? E que teoria seria essa?

Aqui, as opiniões dos físicos estão divididas. Existe um grupo que afirma que a transição entre o clássico e o quântico é contínua e que a teoria quântica é realmente fundamental: o mundo clássico está contido nela, no limite em que os objetos são grandes o suficiente.

Caso isso seja verdade, todas as teorias da física devem ter uma formulação compatível com o mundo quântico, inclusive a da gravidade. Ou seja, a teoria que descreve as interações entre as pessoas e a Terra, entre a Terra e o Sol e mesmo a expansão do Universo deve ter uma formulação quântica, baseada em probabilidades.

Não vemos esse comportamento quântico da gravitação porque ele só se manifesta a distâncias muito pequenas. Cálculos indicam que essas distâncias são da ordem de milionésimos de trilionésimos de um núcleo atômico, impossíveis de observar hoje ou em futuro próximo. Céticos dizem que as propriedades quânticas da gravitação são inobserváveis. Se esse for o caso, o problema fica complicado: uma teoria física tem de ser testável para ser aceita.

O outro grupo diz que a realidade é dual: existe um mundo clássico e um mundo quântico, e eles são disjuntos. Não existe razão para tentar uni-los em uma única descrição. A atração gravitacional entre dois prótons é perfeitamente desprezível quando comparada com a repulsão elétrica entre eles. Portanto, a gravitação não tem um papel relevante no mundo do muito pequeno e deveria ser deixada de lado.

O físico Freeman Dyson é partidário dessa filosofia, conforme afirmou em artigo recente para a "New York Review of Books" (edição de 13 de maio de 2004). Essa posição, bastante pragmática, me parece incompatível com a cosmologia moderna: se o Universo está hoje em expansão, ele era muito menor no passado. Em um certo ponto, ele foi tão pequeno que todas as distâncias eram subatômicas. Como não incluir a gravidade nessa descrição do cosmo? Parece-me que esse dualismo também irá cair um dia. Qual teoria conseguirá tal feito é assunto para outro domingo.


domingo, 2 de maio de 2004

A realidade do invisível

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Cientista tem de ser cético; caso contrário, a ciência perderia a sua credibilidade. Imagine se qualquer um pudesse propor uma "teoria" da gravidade, dando a sua explicação ao fenômeno da atração gravitacional. Seria extremamente perigoso usar qualquer dessas teorias para, por exemplo, lançar um satélite em órbita da Terra.

O ceticismo acirrado do cientista, que irrita muita gente, é absolutamente fundamental. Nós somos treinados para duvidar, para questionar. Apenas após passar por vários testes e confirmações, incluindo a explicação quantitativa de fenômenos observados, é que uma teoria será provisoriamente aceita.

Digo "provisoriamente" porque teorias nunca estão imunes a testes futuros. Muitas vezes, uma teoria que parece fornecer uma explicação completa de certos fenômenos acaba sendo revisada no futuro. Um exemplo é a própria gravidade. Até 1916, a teoria que Isaac Newton propôs em 1687 reinava suprema. Mas Einstein mostrou que ela é, na verdade, uma aproximação de uma teoria mais completa, a teoria da relatividade geral.

Essa é a cultura da ciência. Quando um cientista vai apresentar os resultados de sua pesquisa em um seminário, ele ou ela vai preparado para receber críticas e questões. Se a idéia estiver correta, ela sobrevive. Ou, pelo menos, deveria, caso o sistema fosse perfeito. Mas não é.
Muitas vezes, idéias corretas são massacradas, mesmo que expliquem fenômenos observados. Isso porque cientistas também são gente e, como qualquer um, também têm preconceitos com relação a essa ou aquela visão de mundo.

Uma ilustração disso é a história do átomo. Os gregos Leucipo e Demócrito propuseram, em torno de 400 a.C., que tudo é feito de tijolos invisíveis e indivisíveis de matéria, os átomos. Newton foi um grande defensor da teoria atômica, tentando explicar a luz usando partículas. Mas ninguém levou a idéia muito a sério até o século 20. Por que isso?

Eis um texto de 1883 do filósofo e físico alemão Ernst Mach, famoso pelos seus estudos de fenômenos supersônicos (daí a velocidade de aviões supersônicos ser dada em Mach 1, Mach 2 etc.): "Os átomos não podem ser percebidos pelos sentidos; como todas as substâncias, eles são produto do pensamento. Mesmo que a teoria atomística seja tão eficiente na reprodução de certos fatos, o físico que abraça as leis de Newton só poderá aceitar essas teorias como provisórias, tentando obter, de modo mais natural, um substituto satisfatório".

Ou seja, segundo Mach, como átomos são invisíveis, não podem ser levados a sério. São "produto do pensamento", e a ciência tem de ser construída com objetos que possam ser detectados pelos sentidos. Na época, não havia mesmo jeito de "ver" átomos. Microscópios haviam revelado o mundo invisível dos micróbios, mas se sabia que, se existissem, átomos estariam muito além da capacidade de microscópios comuns.

Na época em que Mach escreveu seu comentário, teorias estavam sendo propostas para explicar o comportamento dos gases (como o ar) usando átomos. Por exemplo, sabia-se que, quando se aquece um gás, sua pressão aumenta proporcionalmente à temperatura. Pressão e temperatura são grandezas macroscópicas, que podem ser medidas por instrumentos.

Foi a explicação da origem da temperatura e pressão de um gás que causou polêmica: em 1845, James Waterson propôs que, se um gás fosse composto por moléculas submicroscópicas, sua temperatura seria proporcional ao quadrado da velocidade média das moléculas: calor é movimento. Quanto mais quente o gás, mais rápido suas moléculas se movem. Já a pressão é proporcional ao quadrado da velocidade média multiplicado pelo número de moléculas: mais moléculas, pressão maior. Por isso sopramos o ar em um balão para fazê-lo crescer.
Waterson foi duramente criticado por usar objetos invisíveis. Seu artigo foi rejeitado. "Não faz o menor sentido e não deve ser lido perante a Royal Society", escreveu um crítico.

Passaram-se mais de 50 anos até que o átomo fosse aceito. E isso só ocorreu após a descoberta do elétron, em 1897, e a do núcleo atômico, em 1911. Após o invisível ter ficado visível. Às vezes, "produtos do pensamento" são reais. Mas, como nem sempre isso é verdade, é melhor mesmo ser cético.

Cético, mas não cego.