domingo, 25 de fevereiro de 2001

Aconteceu em Copenhague

Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, dois gigantes da física encontram-se em Copenhague, na Dinamarca: Niels Bohr e Werner Heisenberg. Bohr, dinamarquês, foi o primeiro a desenvolver, em 1913, um modelo do átomo usando princípios da física quântica, proposta na virada do século 20 por Max Planck (1900) e Albert Einstein (1905).

Heisenberg, alemão, propôs as equações que descrevem o comportamento de sistemas atômicos (outra versão, equivalente à de Heisenberg, foi proposta pelo austríaco Erwin Schrödinger). Bohr, mais velho, era tido como o "pai" da mecânica quântica, sendo venerado pelos jovens que a construíram: Heisenberg, Pauli, Born, Dirac, Jordan e outros. Heinsenberg era o menino-prodígio de Bohr, um mestre da matemática. E uma pessoa extremamente misteriosa.

Heisenberg foi o único dos "grandes" a permanecer na Alemanha durante a Segunda Guerra. Todos os outros escaparam, alguns para outros países da Europa, ou para os Estados Unidos, como fez Einstein. Quando Heisenberg foi visitar Bohr em Copenhague, a Alemanha já havia dominado boa parte da Europa, inclusive a Dinamarca. Heisenberg era o chefe do programa nuclear nazista. Bohr deplorava o expansionismo de Hitler e mantinha-se em contato com os aliados. Heisenberg foi visitar seu antigo mentor como representante da potência invasora.

Qual era o objetivo de Heisenberg em Copenhague? Por que ele queria tanto conversar com Bohr? Será que ele queria arrancar segredos de seu velho mentor para usá-los na construção da bomba atômica nazista? Será que ele foi informar a Bohr que ele deveria escapar o quanto antes de Copenhague? Ou será que ele foi confessar a Bohr que sua verdadeira intenção era boicotar o programa nuclear nazista, de modo que Hitler nunca pudesse ter uma bomba atômica em suas mãos?Essas questões formam o pano de fundo para a magnífica peça teatral "Copenhagen", do inglês Michael Frayn, que vem fazendo tremendo sucesso na Inglaterra e nos EUA e que deverá estrear em abril em São Paulo.

O mais fascinante aspecto desse drama é a sua incerteza. Heisenberg foi o criador do famoso princípio da incerteza da mecânica quântica, que diz que certos pares de variáveis não podem ser medidos juntamente com precisão arbitrária. Por exemplo, se tentarmos medir a velocidade e a posição de um elétron em órbita em torno de um núcleo atômico, encontraremos um limite máximo de precisão em nossas medidas e, quanto mais precisas forem as medidas de uma das variáveis, maior será a imprecisão, ou a incerteza, na outra.

As incertezas da visita, ou não sabermos ao certo o que Heisenberg foi fazer em Copenhague, são traduzidas na peça em várias possíveis versões do que de fato aconteceu, todas plausíveis e todas envolvendo profundas decisões éticas. Imagine a responsabilidade moral nas mãos de um homem que seria (ou talvez não) capaz de fornecer a um líder maníaco e assassino um instrumento de destruição global. Se ele seguisse o seu patriotismo, transformando a sua nação no grande império do mundo ocidental, ele mancharia para sempre seu nome nas páginas da história.

Qual o preço da vitória? Se ele boicotasse o seu país, ele estaria ajudando os inimigos de sua nação (seus colegas de profissão e amigos pessoais) a construir a mesma arma de destruição que transformaria para sempre o destino da humanidade. Heisenberg enfrenta no seu dilema moral a mesma incerteza que ele explicou existir na física que rege o átomo. É impossível, para ele, escolher o caminho "certo" com precisão absoluta. A vida, como o átomo, não oferece respostas precisas, exatas. Cada escolha moral envolve ganhos e perdas, a formação de novas alianças e a destruição de outras.

Cada escolha seleciona apenas um caminho, onde antes existiam vários. Nossas escolhas influenciam nosso destino, mesmo quando sabemos que nenhuma delas é a escolha "certa".Não sabemos nem se Heisenberg tinha o conhecimento necessário para produzir a bomba -aparentemente não. Quando comparamos o programa nuclear nazista com a gigantesca operação norte-americana, o Projeto Manhattan, vemos que os nazistas jamais poderiam ter construído a bomba em tempo hábil. Se isso foi devido ao boicote ou à ineficiência de Heisenberg, jamais saberemos. Teremos de nos contentar com a incerteza e tentar aprender com ela.

domingo, 18 de fevereiro de 2001

Ciência e Criação

A origem do Universo inspirou incontáveis mitos de criação no passado e inspira muita ciência no presente. De fato, todas as culturas relatam, de uma forma ou de outra, uma história da criação do mundo. A cultura moderna, tão influenciada pela ciência, não é uma exceção. Essa necessidade que temos de explicar a origem de "tudo", incluindo a nossa, não escapa aos cientistas.

E, muito da "crise" que existe entre a ciência e a religião vem justamente da -desnecessária- colisão entre a versão (ou, melhor, versões) religiosa da origem do cosmo e a versão científica.Para focarmos melhor nossa discussão, vamos nos concentrar na versão judaico-cristã da Criação, conforme ela é relatada no Antigo Testamento. O ponto fundamental aqui é que a criação do mundo, segundo esse relato, marcou também a origem do tempo.

Essa interpretação é sugerida, por exemplo, por Santo Agostinho, que escreveu que Deus criou o tempo juntamente com o cosmo. "Antes" da Criação, argumentou Santo Agostinho, não faz sentido. (Segundo ele mesmo escreveu, alguns respondem à questão de o que Deus estava fazendo antes de criar o mundo dizendo que estava criando o Inferno para todos aqueles que fazem esse tipo de pergunta.)Continuando com o relato judaico-cristão, Deus criou o cosmo ex nihilo, do nada: sua ação criadora foi a causa inicial da existência material do mundo.

Por que Deus, que é por definição perfeito, sentiu a necessidade de criar, é um problema mais complicado, muitas vezes atribuído a uma vaidade divina: para ser amado pela sua criação. Mas acho melhor deixar este debate de lado. De qualquer forma, o ponto crucial aqui é que, segundo o Antigo Testamento, a Criação é um processo eminentemente sobrenatural, atribuído à ação divina, milagrosa e onipotente.Entram os cientistas, especialmente os cosmólogos modernos, atribuindo ao Universo propriedades quantitativas e explicáveis por meio de leis naturais.

O modelo cosmológico conhecido como Big Bang, que localiza a Criação do Universo no tempo (mas não no espaço -o Big Bang não foi uma explosão a partir de um ponto central) imediatamente inspira analogias com o relato do Gênese. Afinal, ambos falam de um início de tudo, antes do que o tempo não existia. Esse tipo de comparação só gera confusão e animosidade entre cientistas e pessoas de fé. Eis por quê: primeiro, a Bíblia não tem o intuito de descrever quantitativamente a estrutura do cosmo. Voltando a Santo Agostinho, a interpretação da Bíblia deve ser alegórica e não literal.

Usar a narrativa do Gênese como texto científico corrompe a função do texto, que é a de estabelecer a natureza onipotente de Deus. Note, também, que existem dois relatos de Criação no Gênese. Qual é o "correto"?Por outro lado, os cosmólogos que dizem entender a origem do Universo não estão sendo honestos.

Antes de mais nada, a teoria que descreve a expansão do Universo usada em cosmologia, a teoria da relatividade geral de Einstein, tem, como qualquer teoria física, limite de validade. Ela deixa de ser válida quando a matéria atinge densidades inimaginavelmente altas, possíveis bem perto do tempo "t=0". Se o Universo está em expansão, e as galáxias estão se afastando cada vez mais, ao voltarmos no tempo elas estarão cada vez mais próximas. Perto do "t=0", a matéria estaria espremida em volumes tão pequenos que sua densidade e temperatura seriam enormes.

A relatividade geral deixa de funcionar e temos de usar outra teoria. Mas qual? Existem versões diferentes, mas todas misturam idéias da mecânica quântica, que estuda a física atômica e subatômica -no Universo primordial, a física do muito pequeno passa a ser fundamental. Uma das versões chama-se supercordas, outra, cosmologia quântica.

Ambas ainda incompletas, se bem que muito sugestivas.Vamos supor que, um dia, tenhamos uma teoria física da origem do Universo. Será que ela explicará o mistério da Criação? Eu acredito que não: essa será uma resposta científica da questão, e, portanto, calcada em leis naturais e conceitos. Podemos sempre perguntar de onde vêm essas leis e esses conceitos. Acredito que a melhor atitude com relação ao mistério da Criação é a de complementaridade: a ciência oferece um relato, a religião, outros (vários). É importante aceitar que ambos têm limitações, o que não tira em nada sua beleza e importância.

domingo, 11 de fevereiro de 2001

Anatomia de um fio

A vida moderna, cercada como é de artefatos elétricos, torna a sociedade extremamente dependente do uso da eletricidade. E onde existe eletricidade, existe fio. Ao menos por enquanto. Eu me lembro de ter de quebrar a cabeça imaginando onde eu poria os 20 fios que ligavam os vários componentes do meu equipamento de som sem embolá-los, uma tarefa quase impossível.

Mas, uma vez solucionado o complicado problema estético, a mágica não falha jamais: é só conectar o fio na tomada, ligar o amplificador e o tocador de CD, e a música jorra dos alto-falantes. A "alma" dessa mágica é a corrente elétrica, bilhões de trilhões de elétrons fluindo pelos fios e circuitos elétricos, como água em um rio. Dada a importância do fio em nossas vidas, acho que ele merece ser mais bem compreendido. Dedico, então, a coluna de hoje ao fio.Para começar, um fio comum é feito de dois materiais: uma substância capaz de conduzir eletricidade, como o cobre, e um material isolante, o plástico que vemos em torno do cobre.

O cobre, como todo metal, é um excelente condutor de eletricidade. Isso porque os metais têm uma propriedade extremamente importante, que pode ser entendida em grau atômico. Um átomo tem um núcleo, feito de prótons e nêutrons, e elétrons girando em torno. Essa visualização do átomo como um minissistema solar não é propriamente correta, mas é suficiente. Átomos de elementos diferentes têm números diferentes de elétrons e prótons.

O elemento mais simples, o hidrogênio, tem apenas 1 elétron e 1 próton. O cobre tem 29 de cada. O que difere os metais de outros elementos químicos é a facilidade com que um elétron, o que está na camada mais externa, pode ser extraído. São esses elétrons que fluem no fio, transportando carga elétrica de uma extremidade a outra.Podemos fazer uma analogia com uma cachoeira. A água "cai" do ponto mais alto ao ponto mais baixo devido à atração gravitacional da Terra. Na verdade, dizemos que existe uma "diferença de energia potencial gravitacional" entre o alto da cachoeira e a sua base.

Essa energia pode ser interpretada como a possibilidade de um corpo suspenso cair. É só largar e deixar a gravidade fazer o resto.Mesmo que a água seja um fluido para nós, microscopicamente ela é feita de moléculas. A corrente elétrica funciona de modo semelhante a uma cachoeira. Em lugar da diferença de energia potencial gravitacional, temos uma diferença de potencial elétrico, que pode ser criada por uma bateria.

A função da bateria é a mesma da diferença de altura na cachoeira. Fazer com que cargas elétricas "caiam" de um potencial maior para um menor. No caso, a diferença de potencial existe entre as duas extremidades do fio.A diferença de potencial elétrico extrai os elétrons exteriores dos átomos do metal que compõem o fio. No caso do sódio, também um metal, existem 25 bilhões de trilhões de átomos por centímetro cúbico (2,5 X 1022 átomos/cm3), e cada um deles libera um elétron para a corrente elétrica. Por isso a aproximação da corrente elétrica como um fluido contínuo não é nada má.

Os átomos dos metais, agora com um elétron a menos, se arranjam em estruturas geométricas extremamente regulares, como cubos ou pirâmides. E os elétrons fluem através dessas redes cristalinas como se elas praticamente não existissem. Claro, existe sempre uma resistência ao movimento dos elétrons, que, no caso dos metais, aumenta com a temperatura. Em altas temperaturas, a rede cristalina de íons (átomos que, no caso, perderam elétrons) oscila mais vigorosamente, oferecendo maior resistência à passagem dos elétrons.Mas os metais não são os únicos elementos químicos usados na condução de eletricidade.

A maioria dos circuitos elétricos modernos usa elementos conhecidos como semicondutores, como silício ou germânio. Esses elementos formam cristais extremamente rígidos, como o carbono forma o diamante. Em temperatura ambiente ou mais baixa, esses elementos são ótimos isolantes. Mas, com um aumento de temperatura, é possível fazer com que alguns de seus elétrons passem a ser condutores tais como os metais.

Os semicondutores são usados nos transistores, que são fundamentais nos circuitos de computadores, nos amplificadores etc. Um processador Pentium tem milhões de transistores integrados em dimensões microscópicas. Pense nisso na próxima vez que você ligar seu computador.

domingo, 4 de fevereiro de 2001

A corrida com o tempo

Fora a usual corrida contra o tempo, a corrida com ele, isto é, a marcação cada vez mais precisa da sua passagem, tem uma vastíssima e nobre história. Os egípcios e os gregos usavam a queda d'água para medir o tempo: bastava fazer um furo bem pequeno no fundo de uma moringa e deixar a água gotejar através do furo. Quanto mais cheia a moringa, mais tempo passava.

Era relativamente fácil marcar gradações na moringa, de modo a tornar a passagem do tempo mais quantitativa. Mas a eficiência do relógio d'água era limitada. Em climas mais frios, se a água congelasse ou apenas mudasse de viscosidade, o relógio não funcionava. A solução veio com a ampulheta, que usa o mesmo princípio da passagem de material por um furo. Mas que, em vez de água, usa areia -que, como sabemos, não congela.

O problema ali foi frear a passagem da areia e, também, evitar que a umidade engrossasse a areia e entupisse a ampulheta. Apenas em meados da Idade Média a melhoria nas técnicas de fabricação de vasos de vidro resolveu algumas das dificuldades. O problema foi achar, então, quem ficasse virando a ampulheta durante a noite.

Uma grande revolução na construção de relógios ocorreu no início de 1600, após uma descoberta feita por Galileu Galilei em 1583. Segundo a lenda, Galileu, então com apenas 19 anos, durante uma missa na catedral de Pisa, olhava distraidamente para um candelabro cheio de velas que oscilava regularmente. Medindo o tempo com seu pulso, Galileu percebeu que o período de oscilação do candelabro não dependia da amplitude da oscilação.

Em casa, usando pedras amarradas em cordas, Galileu confirmou sua descoberta e, também, mostrou que o período de um pêndulo independe de sua massa. Pedras grandes ou pequenas, se largadas do mesmo ângulo, irão completar uma oscilação ao mesmo tempo. Galileu não usou suas descobertas para a marcação do tempo, mas o pêndulo transformou os relógios da época, cuja precisão passou de 15 minutos para 10 segundos por dia.

Mas os relógios movidos a pêndulo não eram portáteis e não podiam ser usados em navios, algo que, para potências marítimas como a Inglaterra e a Holanda, era um problema sério. Claramente, um relógio capaz de funcionar em um navio deve ser imune ao balanço das ondas. A solução veio ainda no século 17. Em vez do pêndulo, que usava a força da gravidade para movimentar o mecanismo interno do relógio, bastava usar uma mola que liberava energia armazenada em sua contração.

Em 1761, o inventor John Harrison construiu um relógio que, durante uma viagem de nove semanas da Inglaterra à Jamaica, atrasou apenas cinco segundos. Daí por diante, os relógios não dependiam mais da gravidade e podiam ser portáteis, postos no bolso. Parece que foi Santos Dumont que inventou o relógio de pulso.Mas a corrida pela precisão não parou ali. Os relógios eletrônicos, como os baseados nas vibrações de cristais de quartzo, alcançam precisões que, para o uso diário, são mais do que suficientes.

O cristal de quartzo vibra devido a variações elétricas ao seu redor, que fazem o mesmo papel do adulto que empurra a criança no balanço, sempre do mesmo ponto. As vibrações do cristal, em torno de 10 mil por segundo, produzem pequenos pulsos elétricos que podem acionar os micromotores que movem os braços do relógio ou os painéis de cristal líquido que mostram o tempo.Hoje, os relógios atômicos são os campeões absolutos da precisão. Um relógio de césio perde 1 segundo a cada 30 milhões de anos, uma precisão absolutamente incrível. Seu funcionamento baseia-se na estrutura do átomo, que tem elétrons girando em órbitas fixas ao redor do núcleo.

Quando um elétron pula de uma órbita mais afastada para uma mais próxima do núcleo, ele emite radiação eletromagnética com energia idêntica à diferença de energia entre as duas órbitas, como um pulo entre degraus de uma escada. Para subir de órbita, o életron precisa de energia, fornecida por radiação eletromagnética.

Daí ser possível fazer com que o elétron "vibre" entre duas órbitas com uma frequência extremamente precisa. Se, há 50 anos, o segundo era definido pela rotação da Terra, hoje ele é definido como sendo 9.192.631.770 oscilações do átomo de césio. Não é uma medida muito romântica, mas podemos sempre carregar um relógio de bolso para matar as saudades.