domingo, 29 de outubro de 2000

Davi, Golias e o destino do Sol

O Sol, como qualquer outra estrela, não brilhará para sempre: em aproximadamente cinco bilhões de anos ele esgotará suas reservas de combustível e entrará em fase de decadência, pontuada pelos mais diversos efeitos cataclísmicos. Isso porque estrelas passam suas vidas combatendo a própria implosão que sua gravidade lhes impõe. Imagine uma pessoa deitada sobre um colchão de molas. Quanto mais pesada for essa pessoa, ou melhor, quanto maior for a sua massa, mais as molas terão de trabalhar para contrabalançar o colapso do colchão.

O mesmo acontece com o Sol. Se nós o representarmos como uma cebola gigante, camada sobre camada, as camadas superiores exercerão uma enorme força gravitacional sobre as inferiores, equivalentes ao colchão sob uma ou mais pessoas. É na região central do Sol que as absurdas energias que contrabalançam a pressão gravitacional são produzidas, por meio do processo de fusão nuclear, o mesmo que causa as explosões das bombas de hidrogênio. Portanto, a existência do Sol se deve a esse equilíbrio entre sua tendência a implodir, devido à sua enorme massa, e a explodir, devido à fusão nuclear de hidrogênio na região central.

Fusão em quê? O hidrogênio se transforma no segundo elemento mais leve, o hélio. Essa mudança revela de forma belíssima a transformação de massa em energia prevista na teoria da relatividade de Einstein, encapsulada na famosa fórmula E=mc2. Basicamente, a massa do produto final das reações de fusão é menor do que a massa dos produtos iniciais, e o excesso é convertido em radiação. Se o Sol, em um ato desesperado de autocanibalismo, usa sua própria matéria para produzir a energia necessária para sua estabilidade, o que acontecerá quando ele devorar todas as suas entranhas, isto é, quando ele tiver convertido todo o hidrogênio de sua região central em hélio?

A resposta mais curta é que ele começará a fundir o hélio em outro elemento, no caso, o carbono. Mas vários efeitos extremamente dramáticos acontecem entre as duas fusões (hélio e carbono), incluindo a transformação do Sol em uma estrela do tipo "gigante vermelha", cujo raio será maior do que a órbita de Mercúrio. Expansões estelares desse tipo ocorrem quando o calor gerado em seu interior é maior do que a implosão gravitacional pode contrabalançar. Eu espero que a essa altura já tenhamos colonizado outras partes da galáxia; caso contrário, esse será o fim da vida na Terra.

Enquanto o envelope da estrela cresce, sua região central encolhe devido à sua gravidade, já que a fusão de hélio ainda não começou. A pressão é tão grande que os elétrons não circulam mais em torno dos núcleos atômicos, mas movem-se livremente no meio da congestão. A um certo ponto, um novo efeito passa a ser importante, o Davi que irá derrotar o gigante Golias. Segundo a física quântica, elétrons e outras partículas, como o próton e o nêutron, são extremamente anti-sociais e tentam se evitar ao máximo. De fato, esse efeito de repulsão é conhecido como o Princípio de Exclusão de Pauli, proposto pelo físico austríaco Wolfgang Pauli em 1925. Quando elétrons são forçados a coexistir em volumes muito pequenos, como nas regiões centrais de estrelas em crise, eles reagem movendo-se a altíssimas velocidades, criando uma enorme contrapressão. O colapso da estrela é detido por um efeito que ocorre na escala subatômica, o micro balanceando o macro.

Esse efeito torna-se crucial no estágio final de evolução do Sol. Após curto período de fusão de hélio em carbono, a região central, agora rica em carbono, não consegue fundir-se em outro elemento mais pesado (para estrelas mais maciças que o Sol, isso não ocorre). Ela continua a contrair-se devido à sua própria gravidade até que os elétrons digam: "Chega de aperto!", reagindo de forma que o colapso pára e os restos da estrela encontram sua paz final. Essa bola de carbono e elétrons, do tamanho da Terra e com metade da massa do Sol, chama-se "anã branca". Ela continuará a resfriar-se até desaparecer na escuridão do espaço. Fria, mas com a dignidade de quem brilhou por dez bilhões de anos.

domingo, 22 de outubro de 2000

Viagem virtual ao centro da Terra


Em 1981, o físico norte-americano Marvin Ross propôs algo que chocaria o próprio Júlio Verne, escritor francês que nos levou -ou pelo menos a nossa imaginação- ao centro da Terra: o interior dos planetas Urano e Netuno era repleto de diamantes, "diamantes no céu", como ele chamou seu artigo, inspirado na canção dos Beatles.
Ross baseou-se em experiências que estudam o comportamento da matéria a pressões e temperaturas altíssimas, como no interior dos planetas do Sistema Solar. Para simular tais ambientes, as experiências têm de gerar pressões milhões de vezes maiores do que a pressão atmosférica terrestre e temperaturas de milhares de graus.

É claro que essas experiências usam métodos extremos. O mais dramático emprega explosões nucleares para causar ondas de choque em amostras de materiais diversos. Outro, menos dramático, usa balas ultra-rápidas, que atingem velocidades de até 10 km/s, dez vezes maiores do que as balas comuns. O impacto com alvos diversos cria uma onda de choque que gera pressões e temperaturas comparáveis às encontradas no interior de planetas.

Tanto bombas quanto balas duram apenas frações de segundo, o que não é tempo suficiente para fazer medições muito precisas do que acontece com a amostra. De qualquer forma, experimentos usando esses métodos, no início dos anos 80, indicaram que certos gases comuns nos planetas gigantes, como o metano (CH4, um átomo de carbono e quatro de hidrogênio), se dissociam em componentes básicos quando submetidos a pressões como no interior de planetas. Foram esses experimentos que inspiraram Ross a propor a teoria de diamantes no céu: caso o carbono fosse mesmo dissociado sob altas pressões, afundaria em direção ao centro do planeta, como uma chuva de diamantes.


Essa imagem, mesmo que poética, ainda está longe de ser confirmada. Não é possível enviar sondas que analisem o interior de planetas distantes. Aliás, nem mesmo o da Terra, que permanece uma das grandes incógnitas da ciência.

Outro método muito utilizado no estudo de matéria a altas pressões é uma prensa de diamante: uma amostra de material é posta entre dois cristais de diamante e espremida por um pistão. Com isso, simulam-se pressões de até 5,6 milhões de atmosferas, o atual recorde, maior que no centro da Terra. O problema é que o expediente não sustenta temperaturas elevadas. Acima de 2.000C, o sistema deixa de funcionar. Portanto, outro método tem de ser usado.

Aqui entram os computadores. Usando simulações chamadas de dinâmica molecular, é possível simular as interações dentro de um grupo relativamente pequeno de átomos quando submetidos a altas pressões e temperaturas. Apesar de esse método também ter problemas, computadores cada vez mais poderosos vêm resolvendo vários deles.

O mais óbvio vem de essas simulações serem feitas em uma "grade" fixa (para representar átomos em um computador, é preciso especificar suas posições e velocidades em relação a uma grade, como se cada um ocupasse um vértice num tabuleiro de xadrez). O problema é que, quando a matéria é submetida a pressões altas, ela se rearranja em redes cristalinas diferentes, por exemplo passando de uma forma cúbica para uma piramidal. Como simular essa maleabilidade numa grade fixa? Mais ainda, as interações entre os vários átomos obedecem às leis da mecânica quântica, consideravelmente mais complicadas do que as da física clássica. Incorporá-las numa simulação não é fácil.

Usando grades maleáveis, com forças fictícias que simulam as interações entre grupos com centenas de átomos, físicos mostraram que o metano se dissocia, mesmo, sob altas temperaturas e pressões. E que o interior da Terra é mesmo rico em ferro líquido, cujas propriedades sob altas pressões permaneciam desconhecidas. Ainda não sabemos se existem diamantes no céu, mas a possibilidade existe, ao menos nas viagens virtuais ao centro dos planetas.

domingo, 15 de outubro de 2000

Física com adrenalina

Quem acha que físicos ou outros cientistas levam uma vida pacata, reclusos em suas salas em universidades ou laboratórios, está muito enganado. A pesquisa em ciência é uma atividade extremamente competitiva, uma "corrida de ratos", como se costuma dizer nos Estados Unidos.
Isso porque em ciência, ao contrário das Olimpíadas, não existem medalhas de prata ou bronze. Ou você é o primeiro a encontrar a resposta a uma pergunta-chave ou a desvendar um novo fenômeno, ou é o último. A comunidade científica concede um "empate" quando dois ou mais grupos chegam a uma mesma conclusão quase que ao mesmo tempo. Mas isso é extremamente raro. Ao descobridor, fora a emoção de ter dado um passo avante no conhecimento humano, vêm as honras, prêmios, fama etc. Aos outros, a satisfação dúbia de ter confirmado os resultados de quem chegou ao degrau mais alto do pódio.

Da mesma forma que a cobiçada medalha de ouro incentiva os atletas a estar sempre se superando, a busca pelo conhecimento incentiva a competitividade científica. Agora mesmo, um excelente exemplo disso está ocorrendo no Centro Europeu de Física de Partículas em Genebra, Suíça, conhecido como Cern.

O Cern é um laboratório gigantesco, um consórcio entre vários países do mundo inteiro. Seu grande rival é o Fermilab, um laboratório norte-americano perto da cidade de Chicago. Ambos usam enormes aceleradores de partículas para estudar a estrutura da matéria a distâncias subnucleares, ou seja, dentro mesmo do núcleo atômico.

O objetivo desses laboratórios é descobrir os tijolos fundamentais que, combinados, resultam na matéria que compõe o Universo no presente e que o compunha na sua infância, quando as energias eram comparáveis às que regem os processos subnucleares.

Até o momento, a ciência já descobriu 12 partículas fundamentais da matéria, uma delas o familiar elétron. A elas juntam-se as partículas que transmitem as forças entre esses tijolos de matéria, que recebem o nome pouco poético de bósons de calibre. Esse conjunto de partículas de matéria e de força é conhecido como "modelo padrão de partículas".

Existe uma outra partícula no modelo padrão chamada bóson de Higgs, em homenagem ao físico escocês Peter Higgs. Essa partícula é o centro das atrações no Cern e no Fermilab. Isso por dois motivos: primeiro, ela é a partícula que, segundo o modelo padrão, gera a massa de todas as outras partículas. Segundo, porque ela ainda não foi descoberta. Na verdade, nós nem sabemos se ela existe!

No Cern, o acelerador que vem procurando pelo bóson de Higgs chama-se Grande Colisor de Elétrons e Pósitrons, ou LEP. O LEP funciona há 11 anos e tem contribuído muito na busca pelo Higgs. Ainda não o achou explicitamente, mas pôs um limite mínimo na sua massa. Até abril deste ano, o LEP havia concluído que o Higgs tem uma massa no mínimo 108 vezes maior que a do próton.

Em abril a coisa mudou de figura. Os cientistas do Cern acharam alguns sinais que aparentemente indicavam a presença do elusivo bóson de Higgs, com massa cerca de 115 vezes maior que a do próton. Para isso, eles tiveram que puxar o LEP até o seu limite de funcionamento, já que achar partículas de maior massa requer colisões de maior energia.

Esse furor todo ia de encontro a um problema burocrático, pois o LEP estava para ser fechado no início de outubro, para dar lugar à construção de outra máquina muito mais poderosa.
Mas como deixar passar uma oportunidade dessas? Serão necessários pelo menos sete anos até a nova máquina ficar pronta e, nesse meio tempo, o Fermilab terá maiores energias e poderá detectar o Higgs conclusivamente.

A pressão da possível descoberta é tão grande que a diretoria do Cern resolveu adiar o fechamento do LEP até o dia 2 de novembro, na esperança de que seus cientistas dobrem o número de eventos semelhantes aos que indicaram a presença do Higgs. Quanto maior o número de eventos, melhor a qualidade estatística dos dados e, portanto, maior a probabilidade de uma detecção real. Com poucos eventos fica difícil separar o Higgs de outras pistas falsas.

Claro, se outros eventos com gosto de Higgs aparecerem até 2 de novembro, vai ser difícil convencer os cientistas do Cern de que sua máquina terá de ser desmantelada para dar lugar a uma outra. Por outro lado, se o Cern atrasar a construção nova, muito dinheiro será perdido. Será que encontrar o Higgs antes dos norte-americanos justifica milhões de francos suíços gastos? Enquanto isso, os cientistas no Cern trabalham dia e noite, com muita adrenalina, para resolver o mistério da massa.