domingo, 30 de outubro de 2011

Dexter entre a ciência e a religião




Na série de TV, um mata em nome de Deus, e o outro, em nome da sua justiça pessoal; ambos estão errados



Imagino que muitos de vocês conheçam a popular série da Showtime chamada "Dexter", agora no seu sexto ano. Se não conhecem, não tem problema: aqui vai um resumo.

Imagine um assassino justiceiro, que mata apenas os criminosos. Na série, Dexter Morgan, representado pelo ator Michael Hall, é adorável, boa gente e trabalha como analista para a polícia de Miami. Sua especialidade é explorar os traços de sangue no local do crime, buscando pistas que levem ao assassino. Ele só mata suas vítimas após conferir que, de fato, são culpadas. O interessante da série é que você acaba torcendo por um assassino que ignora o sistema penal. Sua lógica é: quem assassina uma pessoa inocente merece morrer. Ponto.

A cada ano, Dexter confronta assassinos diversos, cada qual com suas características. A diferença é que Dexter conseguiu domar o seu "passageiro negro," o instinto assassino que o faz matar outros seres humanos. Se não o domou, conseguiu converter uma força destrutiva numa força positiva (que busca um senso de justiça).

Nesta temporada, Dexter, um ateu que baseia suas ações em decisões racionais, confronta pela primeira vez a fé e suas dúvidas. Os assassinos agem em nome de Deus, ou assim acreditam, recriando os eventos descritos no Apocalipse de João, último livro do Novo Testamento. O show é uma paródia dos inúmeros assassinatos em nome da religião, tema que discuti com Frei Betto no livro "Conversa sobre a Fé e a Ciência" (Ed. Agir, 2011).

Numa conversa entre Dexter e o irmão Sam, um ex-criminoso que virou pastor e que ajuda outros criminosos a encontrar o caminho do bem, a essência do confronto é esclarecida. Diz o irmão Sam: "Não posso provar para você que Deus existe. Mas a ciência não pode provar que Ele não existe". Ou seja, para os que têm fé, Deus só pode ser encontrado além do plano de ação da ciência, baseado numa metodologia dedutiva. Já um ateu reverteria o argumento dizendo: "Se você está tão certo de que Deus existe, então prove. Não vejo evidência".

No cerne do argumento encontramos uma incompatibilidade fundamental entre o discurso da ciência e os da fé. O irmão Sam já disse: para os que acreditam em presenças sobrenaturais no mundo, o discurso científico tem pouco a dizer sobre a existência de Deus. Eles tomam antibióticos e mandam e-mails com seus iPads, mas param por aí.

Seria de esperar que alguma espécie de coexistência pacífica pudesse ser encontrada, em que o crente e o descrente concordassem em não concordar. Se você acredita em Deus, vá em frente. Se não, vá em frente também. Infelizmente, as muitas questões nas quais a religião pode influenciar decisões políticas, educacionais e sociais não permitem essa coexistência inocente. A separação entre Igreja e Estado deveria tomar conta disso, mas, infelizmente, não é o caso.

Não sei o que vai ocorrer na série. Ao usar assassinos que são fanáticos religiosos, os autores estão tomando partido. Por outro lado, Dexter também é um assassino, mesmo se ateu. Um mata em nome de Deus, o outro em nome de uma justiça pessoal. Ambos estão errados. Espero que ao menos na TV algum meio-termo seja atingido. Ficaria decepcionado se Dexter virasse religioso.

domingo, 23 de outubro de 2011

O Brasil deve aprender mais ciência




Ao entender os mecanismos da natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação

COM FREQUÊNCIA, perguntam -me por que escrevo para o público não especializado. "Isso não toma tempo de sua pesquisa?" A resposta é sim, toma. Porém, para mim -e para outros cientistas que dedicam parte de seu tempo à divulgação científica- apresentar as ideias da ciência à sociedade é mais do que divertido ou intelectualmente estimulante: é nosso dever. E, mais importante ainda, é também vital para o nosso futuro.
Há diversas razões para isso. Aqui posso tocar em apenas algumas delas. Uma é que a ciência é parte essencial da nossa cultura e contribui crucialmente para a nossa visão de mundo. Pense que quando Cabral chegou aqui as pessoas pensavam que a Terra era o centro do cosmo e que nós éramos os escolhidos, criados à imagem de Deus. À medida que a compreensão científica do Universo avançou, nossa percepção de quem somos e de onde vivemos mudou.
A influência científica da nossa visão de mundo não se limita a ideias abstratas. Pelo contrário, nossa percepção da realidade é determinada por inovações tecnológicas. A morte recente de Steve Jobs, o líder da Apple, ilustra claramente como a ciência de ponta, aliada ao design inovador, pode mudar como a sociedade vive e se comunica.
Uma segunda razão se origina ao menos com os Atomistas da Grécia Antiga, se não antes, com Tales e Heráclito no século 6 a.C. Conforme escreveu o pensador romano Lucrécio em seu poema "Sobre a natureza das coisas": as pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus. Quando finalmente entendermos que nada pode surgir do nada, teremos uma imagem muito melhor de como formas materiais podem ser criadas ou como fenômenos podem ser ocasionados sem a ajuda de um deus.
A razão e a lógica são propostas como antídotos contra medos irracionais, baseados na fé cega em crenças supersticiosas. A ciência é uma consequência direta dessa profunda mudança de atitude: nada de se curvar perante divindades. Ao entender os mecanismos que regem a natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação.
A ciência terá um papel cada vez maior no nosso futuro. Tome, por exemplo, a questão das fontes de energia e do aquecimento global. Quais as escolhas que melhor equilibram nossas necessidades e a saúde do planeta? Quais candidatos políticos se alinham com suas escolhas? Ou a engenharia genética e de como as células-tronco podem criar novas curas para doenças que afligem milhões de pessoas. Até que ponto nossas pesquisas devem ir? Até a clonagem humana? Será que a religião deve ter algum papel na decisão de quais pesquisas devem ou não ser financiadas?
Apenas uma população bem informada será capaz de tomar as decisões para um futuro melhor. Por isso, precisamos de mais ciência na mídia, nas escolas, nas nossas comunidades. Se o Brasil quer estar entre as cinco maiores potências mundiais nas próximas décadas, precisará de uma população educada cientificamente, preparada para competir com países que sabem da importância da ciência para o desenvolvimento.

domingo, 16 de outubro de 2011

O filme da sua mente




Supondo que tecnologias capazes de ler a mente se tornem disponíveis, elas exigirão limites jurídicos?


Será que um dia você poderá visualizar os seus pensamentos e torná-los acessíveis em arquivos visuais? Imagine assistir os seus sonhos como se fossem um filme!
Parece coisa de ficção científica, certo? E se outra pessoa (ou o governo) ganhasse acesso ao que ocorre na sua mente? Ou se víssemos o que ocorre na mente de um paciente em coma? As possibilidades médicas são enormes, as complicações éticas também. Supondo que essas tecnologias virem realidade, onde devemos parar? Será que prisioneiros deverão ser submetidos a leituras cerebrais para que o júri possa confirmar o seu veredicto?
Continuamos longe de ver o que ocorre em nossas mentes. Mas não tão longe quanto costumávamos estar. Num experimento recente, voluntários assistiram a videoclipes enquanto sua atividade cerebral era registrada usando ressonância magnética funcional (fMRI). Com os dados coletados, computadores foram capazes de reconstruir parcialmente as imagens que os voluntários viram. Não é o mesmo que ver dentro de suas mentes, mas ver o que suas mentes viam, um feito já bem impressionante.
Como afirmou o cientista cognitivo Jack Gallant, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que é um dos autores do estudo, "é um grande avanço para a reconstrução de imagens internas... abrimos uma tela para assistir os filmes que passam em nossas mentes".
Dentre os inúmeros benefícios dessa tecnologia, podemos imaginar o dia em que pessoas deficientes (ou qualquer outra) poderão comandar computadores com suas mentes. No experimento, os voluntários tiveram de ficar sendo escaneados por horas, para que a máquina de fMRI registrasse o fluxo sanguíneo do córtex visual, a região do cérebro que processa a visão.
Num computador, os pesquisadores dividiram o cérebro em pequenos cubos, chamados voxels (pixels volumétricos). A informação dos clipes que chegava ao córtex era medida pelo fMRI, enquanto o computador gravava o tipo e o local da atividade neuronal correspondente a cada imagem, criando um mapa da informação segundo a segundo.
O computador então comparou essa informação com 18 milhões de clipes tirados do YouTube, buscando padrões semelhantes. Os cem mais parecidos eram combinados, e as imagens eram usadas para reconstruir os clipes originais.
Não há dúvida de que esses são apenas os primeiros passos de uma nova tecnologia, e que ninguém pode ainda ver o que se passa na sua cabeça. Dois desafios importantes são a baixa velocidade com que as máquinas atuais de fMRI registram a atividade neuronal (é por isso que a reconstrução é de segundo a segundo) e o tamanho limitado da videoteca usada para comparação.
(Por exemplo, nos 18 milhões de videoclipes do YouTube não havia um com um elefante, de modo que aquela parte da correspondência foi prejudicada.) Porém, como é o caso com novas tecnologias, os primeiros passos podem ser lentos, mas o progresso ocorre mais rápido do que o esperado.
Talvez nossa geração não tenha de censurar nossos sonhos para maridos e mulheres; mas é bem provável que a geração de nossos filhos não terá tanta sorte.

domingo, 9 de outubro de 2011

Celebrando a energia escura




Astrônomos vencedores do Prêmio Nobel em Física nos fazem repensar a relação espaço, tempo e matéria


A energia escura está aqui para ficar. Essa semana foi anunciado o Prêmio Nobel em Física. Venceram três astrônomos que em 1998 descobriram algo surpreendente o Universo não só está em expansão, mas essa expansão é acelerada.
Conforme comentou outro vencedor do Nobel, Frank Wilczek: "esse é o maior mistério da física básica atual". E é mesmo. Quando a descoberta foi anunciada, pouca gente achou que estava correta. Mas, passados 13 anos, os efeitos da expansão acelerada foram comprovados por métodos diferentes.
Quando físicos afirmam que o Universo está em expansão, é comum imaginar que houve uma espécie de explosão, como a de uma bomba, que lança seus detritos em todas as direções. Se fosse assim, o Universo teria um ponto central, de onde tudo surgiu. E a verdade é que nenhum ponto no espaço é mais especial do que outro.
Para visualizar a expansão cósmica, convém imaginar uma tira de borracha em duas dimensões, como um quadrado. Imagine, também, que as galáxias são moedas grudadas à tira.
Conforme a tira cresce nas suas duas direções, as moedas afastam-se umas das outras. Um observador numa moeda vê as outras se afastando dele. Portanto, a expansão do Universo é uma expansão da geometria do espaço: as distâncias entre dois pontos crescem. Esse efeito só é observável a distâncias de milhões de anos-luz.
Para determinar que as galáxias estão se afastando umas das outras, astrônomos precisam medir sua distância e velocidade.
Para a distância, utilizam fontes de luz padrão. Por exemplo, usando lanternas idênticas, e sabendo que a intensidade da luz cai com o quadrado da distância, é possível, num descampado à noite, medir a distância das lanternas até um certo ponto a partir da intensidade da luz que chega a este ponto.
O feito dos três astrônomos foi ter achado uma fonte padrão tão poderosa que sua luz pode ser detectada a bilhões de anos-luz de distância. São as chamadas explosões de supernova do tipo Ia, que ocorrem quando uma estrela suga a matéria da sua vizinha até não poder suportar mais seu próprio peso.
As velocidades são determinadas usando o efeito Doppler, que nos é familiar ao ouvirmos uma ambulância. A distorção do som ocorre devido ao alongamento (quando ela se afasta) ou encolhimento (quando se aproxima) das ondas de som.
O mesmo ocorre com a luz. As galáxias que se afastam têm sua luz deslocada para maiores comprimentos de onda, em direção ao vermelho. Daí o nome "desvio para o vermelho das galáxias", a prova de que o Universo está em expansão.
Os astrônomos mostraram que a partir de 5 bilhões de anos atrás, o cosmo começou a expandir mais rapidamente, como se um tipo novo de matéria (ou energia) dominasse seu crescimento. Essa fonte de energia foi chamada de "energia escura". Não sabemos qual a sua natureza. Talvez esteja relacionada a minúsculas flutuações de energia ou a uma nova força da natureza ligada a um campo desconhecido. Ou, talvez, mostre a necessidade de se modificar a teoria da relatividade geral, de Albert Einstein.
Qualquer que seja a resposta, é certo que nos forçará a repensar a relação espaço, tempo e matéria.

domingo, 2 de outubro de 2011

Einstein errou?



Muitos sonham em desmentir o genial físico alemão; por enquanto, porém, suas teorias, que inspiraram tecnologias como laser e GPS , resistem ao teste do tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Esta semana marcou o 106º aniversário da publicação do artigo de Einstein com a famosa fórmula E=mc2, talvez a mais famosa da física.
Aos 26 anos, Einstein redefiniu nossa compreensão da matéria, mostrando sua íntima relação com a energia. O elo da correspondência é a velocidade da luz, representada pelo "c", com um valor aproximado de 300 mil km/s.
Você pisca o olho e a luz dá sete voltas e meia em torno da Terra. Segundo a teoria da relatividade, nada na natureza pode viajar mais rápido do que a luz: qualquer objeto com massa, de um elétron a um cometa, necessariamente deve viajar com uma velocidade mais baixa do que "c".
Porém, vimos recentemente cientistas dos laboratórios europeus Cern, em Genebra, na Suíça, e Gran Sasso, na Itália, anunciando a detecção de partículas com velocidades maiores que a da luz.

FANTASMAGÓRICAS
As partículas são neutrinos, conhecidas como "partículas-fantasmas" devido à sua fraca interação com a matéria: neutrinos atravessam paredes, pessoas e planetas como se não existissem, apenas raramente colidindo com outras partículas.
Os experimentos começam criando neutrinos no Cern. Depois, eles viajam 730 quilômetros através da crosta terrestre até chegar aos detectores em Gran Sasso.
Embora o porta-voz da experiência tenha afirmado que o processo é simples, que basta dividir distância por tempo para obter a velocidade, na prática a coisa é bem mais complicada. De fato, a maioria absoluta dos físicos vê os resultados com muito ceticismo, duvidando que sobrevivam por muito tempo.
Ou, claro, pode ser que os neutrinos tenham viajado mesmo algumas dezenas de bilionésimos de segundo mais rápido do que as partículas da luz. Mas eu não apostaria nisso.
O que acho interessante é o burburinho que surge cada vez que um cientista crê demonstrar que Einstein errou.
Cientistas têm o dever de testar teorias. Dada a profundidade das teorias de Einstein, achar uma falha numa delas pode revolucionar a nossa compreensão do mundo natural. Esse tipo de ceticismo é vital para o funcionamento da ciência.

MATURAÇÃO LENTA
Muitas vezes, uma teoria demora a maturar. De volta a Einstein, esse foi o caso com a sua teoria da relatividade geral, a que relaciona a atração gravitacional com a curvatura do espaço.
A teoria foi desenvolvida aos poucos, entre 1907 e 1915, até Einstein chegar à sua versão final. Afirmar que Einstein deu passos "errados" no meio do caminho é ignorar o processo criativo dos cientistas; a ciência não anda numa linha reta entre dois pontos. Ela meandra aqui e ali até chegar ao seu objetivo.
Que eu saiba, os resultados principais de Einstein estão todos ainda conosco e continuam a inspirar novas pesquisas, sem falar nas tecnologias "einstenianas" do cotidiano.
Mesmo que, um dia, algumas das ideias de Einstein sejam suplantadas por novas teorias-e isso deve acontecer -, dizer que ele estava errado é no mínimo ingênuo.
Será que podemos dizer que Newton estava errado quando Einstein corrigiu suas teorias? Certamente não! Toda teoria deve ser aplicada dentro do seu limite de validade: julgá-la errada quando aplicada fora desses limites é não saber como usá-la.
O próprio Einstein considerou uma de suas ideias como o "maior dos seus erros", a adição da chamada constante cosmológica às equações descrevendo a geometria do Universo.
Em 1931, Einstein visitou o astrônomo Edwin Hubble no observatório do monte Wilson, na Califórnia, e teve a oportunidade de ver o desvio para o vermelho da luz emitida por galáxias distantes. A interpretação mais imediata desse desvio é a expansão do Universo, isto é, que as galáxias estão se afastando umas das outras a altas velocidades. Em 1917, Einstein havia escrito um artigo onde supõe que o Universo é estático, sem expansão alguma.
Para isso, teve de adicionar a constante cosmológica, que garante a solução estática que queria. O resultado de Hubble mostrou que sua suposição não era necessária.

REVIRAVOLTA
Ironicamente, em 1998, astrônomos descobriram que o Universo está em expansão acelerada, efeito que pode ser causado justamente pela constante cosmológica de Einstein. A natureza tem razões que a razão desconhece.
Outro "erro" de Einstein é sua posição com relação à mecânica quântica, que descreve as partículas da matéria. Ele nunca aceitou que, conforme dizia essa área da física, a realidade tivesse um forte componente aleatório.
Até hoje, nada de anormal foi encontrado com a mecânica quântica. Em defesa de Einstein, não houve aqui um erro, mas uma diferença filosófica na sua visão de mundo. É prematuro julgar se sua posição está certa ou errada.
A lição aqui me parece simples: é bom termos cuidado ao julgar teorias a partir de resultados recentes e com pouco escrutínio. Afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias.
Embora o questionamento constante seja vital para a ciência avance, as trombetas da revolução só devem ser soadas após a revolução ter mesmo começado.