domingo, 31 de agosto de 2008

Sede humana



Em 2050, serão quase 10 bilhões de pessoas para alimentar

Tudo começou cerca de 10 mil anos atrás, quando os humanos decidiram se agrupar em comunidades fixas numa determinada região. Antes disso, grupos nômades pulavam de ponto a ponto, colhendo frutos e raízes que achavam pelo caminho e caçando animais e peixes para sua subsistência. Acumulando experiência, aprenderam quais vegetais eram comestíveis, quais eram venenosos e quais tratavam doenças. Nessa virada da história, os homens descobriram que era possível acelerar a produtividade da natureza, concentrando árvores frutíferas e vegetais em plantações. Em vez de ir atrás da comida, passaram a viver em torno dela.

Assim foi, por exemplo, na região do Crescente Fértil, no Oriente Médio. Essa transição de comportamento iniciou também o profundo impacto ecológico causado pela presença dos seres humanos na Terra.

Plantações precisam de espaço e de água. Portanto, era necessário preparar a terra, ou seja, cortar vastas áreas florestais ou soterrar o mangue para cultivá-las. Era também necessário redirecionar enormes quantidades de água para suprir as novas plantações.

Com o sucesso da agricultura, o acúmulo de riqueza e o desenvolvimento das primeiras cidades, essas necessidades aumentaram. O equilíbrio dinâmico que havia definido a existência da vida na Terra por bilhões de anos foi irreversivelmente rompido pelo desenvolvimento da civilização humana.

É paradoxal que a atividade que historicamente mais devastou o meio ambiente seja a agricultura. Olhe para as enormes áreas do interior do Brasil e da maioria dos países do mundo com regiões férteis. As florestas originais se foram há centenas de anos, deixando plantações ou, caso estas tenham sido abandonadas, a grama alta dos pastos, a terra sem uma árvore sequer.
Fazer o quê, certo? Afinal, as pessoas precisam se alimentar.

E cada vez somos mais. O aumento da população mundial é assustador. Após atingir o pico em 1987 de 87 milhões de pessoas por ano, chegou até a descer. Em 2002 foi de "apenas" 75 milhões de pessoas, começando a subir novamente em 2007, com 77 milhões de pessoas por ano. Se a tendência continuar, em dez anos teremos mais 800 milhões de pessoas no mundo, todas precisando comer, beber e de combustíveis fósseis ou outras fontes de energia para sobreviver.
Como comparação, estima-se que, no início da civilização, a população aproximada da Terra fosse de 5 milhões, em torno de 25% da população da Grande São Paulo. No ano 1000, cresceu para cerca de 300 milhões.

Em 1900, era de 1,7 bilhão de pessoas.

O enorme aumento de 570% em 900 anos foi devido ao desenvolvimento de tecnologias de produção de alimentos, da medicina e da extração de energia. Hoje, a população é de 6,7 bilhões de pessoas. Ou seja, em 108 anos a população mundial quadruplicou.

As estimativas para 2050 giram em torno de 9,3 bilhões de pessoas. Enorme, mas com taxa de crescimento relativo menor. Mesmo assim, são quase 10 bilhões de pessoas para alimentar e hidratar. Será que podemos continuar a nos fiar na inventividade humana, no desenvolvimento de tecnologias para resolver nossos problemas? (Resolver em parte, dada a enorme quantidade de pessoas famintas e doentes no planeta.)

Os problemas da superpopulação, do aquecimento global, da produção de alimentos e da distribuição de água são os maiores desafios já enfrentados pela humanidade. Podemos ver isso com desespero ou como uma grande oportunidade para nos reinventar.

Prefiro apostar na nossa capacidade de sobrevivência. Não temos muito tempo a perder.

domingo, 24 de agosto de 2008

Contos da infância galáctica



O cosmo é semelhante a um campo com árvores de Natal na noite escura


S abemos hoje a idade do Universo: em números arredondados, 14 bilhões de anos. Esse é o tempo passado desde o Big Bang, o evento que deu origem a tudo. Sabemos, também, que o Universo é salpicado de centenas de bilhões de galáxias, cada uma com milhões ou até centenas de bilhões de estrelas. Esse é o caso da nossa galáxia, a Via Láctea, onde o Sol é uma humilde estrela em meio a tantas outras. Mas não se iluda pensando que essas estrelas todas estão pertinho umas das outras. Não, o espaço é praticamente vazio, e as distâncias entre as estrelas são em média de dezenas de anos-luz. Ou seja, viajando à velocidade da luz, demoraríamos dezenas de anos para ir de uma a outra.

Mesmo com tantas estrelas, a galáxia em si é tão enorme que as distâncias entre elas são...astronômicas. A Via Láctea tem um diâmetro de 100 mil anos-luz. Com tecnologia atual, demoraríamos em torno de 25 mil anos para atravessar um mero ano-luz. A galáxia inteira tomaria uns 2,5 bilhões de anos. Penso nisso e sinto uma grande solidão: estamos mesmo muito isolados do resto do cosmo, nós e os outros planetas do Sistema Solar, todos eles -ao menos hoje- sem vida.

A Terra é uma ilha de atividade biológica em meio à desolação total que nos cerca por muitos anos-luz. Mas o Sol não é a única estrela. E a Via Láctea não é a única galáxia. Hoje temos uma visão do cosmo que é semelhante à de um campo com árvores de Natal espalhadas na noite escura.

Cada árvore iluminada é uma galáxia, e as luzes, suas estrelas. Na escuridão da noite, vemos apenas as luzes das árvores piscando, parecendo flutuar pelo campo afora. Assim nos parecem as galáxias, formadas apenas de estrelas e gás. De perto, porém, a história é outra. Na árvore de Natal existe uma estrutura que sustenta as lâmpadas, a árvore e os seus galhos. Mas e nas galáxias? O que as sustenta? Em cada uma delas existe também uma estrutura, uma teia invisível de matéria que dá suporte às estrelas e ao gás que produz sua luz.

Só que essa teia invisível não é feita da mesma matéria que as estrelas e as nuvens de gás. Essa "matéria escura" -esse é o seu nome- não tem nada a ver com a matéria comum que conhecemos. Ninguém sabe que matéria é essa. Mas sabemos que cerca de 80% da massa das galáxias corresponde a essa matéria e não às estrelas. Exagerando um pouco a metáfora das árvores de Natal, nelas também a massa em matéria escura -o tronco e os galhos- é bem maior do que a massa total das pequenas lâmpadas.

Uma das questões de ponta em astrofísica, fora, claro, o que é essa matéria escura, é como nasceram as galáxias. Sabemos que a grande escultora das formas cósmicas é a força da gravidade. Dado que 80% da massa das galáxias é em matéria escura, é claro que sua dinâmica de formação também é dominada por esse tipo de matéria. Estudando as propriedades de galáxias quando o Universo tinha 7 bilhões de anos, metade de sua idade atual, astrônomos descobriram que as coisas eram semelhantes; os mesmos tipos de galáxias, com a mesma dinâmica: galáxias espirais cheias de estrelas nascendo e galáxias elípticas com estrelas velhas.

A matéria escura cria poços gravitacionais para onde flui a matéria normal, que forma as estrelas. Esse movimento causa ondas de choque violentas. Quanto mais matéria escura, mais violenta a onda de choque. Nos casos mais dramáticos, o choque pode interromper a formação de estrelas. Galáxias elípticas são as que têm a formação de estrelas interrompida mais cedo. Mesmo que ainda existam muitos pontos obscuros, a infância das galáxias começa a ser desvendada.

domingo, 17 de agosto de 2008

Sobre a criatividade



Como bom carioca, "sacada" é a boa tradução para "insight"

Na semana passada, escrevi sobre o riso. Como vimos, não existe uma teoria aceita que explique a relação entre o estímulo mental causado pela piada e sua transformação na reação física igual em todas as partes. Todo mundo ri da mesma forma, mesmo que seja de piadas diferentes.

Dentre as teorias populares, a de Kant é bem razoável, especialmente casada com a de Freud.
Kant disse que rimos quando existe uma interrupção inesperada na lógica da história, uma contradição na expectativa do desenlace. Sem surpresa não rimos. Freud disse que a reação física vem da liberação de impulsos que os superegos reprimem. No universo da piada, podemos "deixar cair". Existe uma outra dimensão do riso causado pelo humor que gostaria de abordar: sua relação com a criatividade.

A palavra inglesa "insight" não tem uma boa tradução em português. Segundo o venerado dicionário Michaelis, "insight" significa "introspecção, compreensão, discernimento, critério". Talvez "compreensão" se aproxime do significado, mas ainda não lhe faz jus. Como bom carioca, "sacada" me parece funcionar melhor, especialmente adicionada de "genial". O ponto interessante é a conexão entre humor e "insight", o momento do "ahá!", da compreensão inconsciente de algo.

Toda piada, quando explicada, perde a graça. A reação física característica do riso, o alívio de uma tensão mental, só se manifesta quando "entendemos" a piada de forma não-racional ou consciente.

A compreensão ocorre em algum lugar do cérebro que parece funcionar por si. Se o interrompemos com explicações, a reação da descoberta é perdida. Assim é com os momentos criativos nas artes e nas ciências. Existe uma preocupação com a obra, um objetivo a ser atingido que permanece arredio.

Esse é o análogo da tensão na piada, do encadeamento lógico da história da qual não conhecemos o fim. Não conseguimos provar o teorema, resolver a questão, encontrar a nota certa na composição musical ou o traço certo no quadro. Mas nossos cérebros continuam a funcionar, a buscar conexões na memória, correlacionando fatos e possibilidades. De repente, quando menos esperamos, a solução vem à tona explosivamente, o momento do "ahá!", da sacada. Esse momento é sempre acompanhado de uma sensação física de liberação, de um alívio que pode até mesmo levar a um estado de êxtase.

Deve ser causado por uma corrente turbulenta de reações químicas regadas a muita endorfina. Imagino os neurônios piscando como loucos, transformando o cérebro numa espécie de árvore de Natal. O grego Arquimedes (diz a lenda) saiu correndo nu pelas ruas de Siracusa ao encontrar a solução para um problema que o afligia, um modo de provar que a coroa de seu rei, que deveria ter sido feita de ouro puro, foi na verdade feita de uma mistura de ouro e prata: a densidade determina se algo bóia ou não.

Mas como estudar quantitativamente o momento da sacada? Experimentos nos EUA e na Inglaterra vêm tentando fazer isso. Para tal, usam voluntários com chapéus cobertos de eletrodos capazes de medir as mudanças de corrente elétrica no cérebro quando tentam resolver problemas envolvendo palavras.

Vêem que, quando as pessoas estão num impasse, a atividade cerebral se limita à áreas associadas com o foco seletivo. Segundos antes de a solução chegar, o padrão muda e a atividade migra para a região frontal à direita, implicada na organização do conhecimento e na arquitetura de planos. Porém, os estudos estão longe de serem conclusivos. Falta uma sacada genial para entender o mecanismo mental que leva a ela.

domingo, 10 de agosto de 2008

Sobre o riso



A piada abre os canais para expressarmos impulsos socialmente proibidos ou reprimidos

Um português e um físico entram num bar e encontram um buraco negro aos prantos, tomando uma cerveja. O físico, pasmo, não acredita no que vê e fica olhando, desconfiado, da porta. Já o português, encantado com a visão, se aproxima do buraco negro: "Ó, seu buraco negro, sinto-me muito atraído por você". E o buraco negro responde: "Seu falso! Todos me dizem a mesma coisa antes de sumir..."

Por que rimos? Ninguém sabe. O riso tem uma qualidade universal: todas as culturas têm seus contadores de piadas. E, mesmo que a piada tenha graça só para uma cultura, as pessoas reagem sempre da mesma forma. Não importa se a língua é completamente diferente, se a pessoa é da Mongólia, um aborígene australiano ou um índio tupi, o riso é sempre muito parecido, uma reação física a um estímulo mental. Mas que estímulo mental é esse que nos faz reagir fisicamente de uma forma tão característica?

As teorias são muitas, começando desde a Antigüidade. Platão e Aristóteles diziam que o riso vem de uma sensação de superioridade, vendo o humor como um modo de expressar nosso desprezo pelos que julgamos ser inferiores. Na piada acima, o português faz esse papel. O físico, esperto, sabe que devemos nos manter longe dum buraco negro. Já o português, coitado, se aproxima e tem o mesmo fim dos infelizes que desconhecem as leis da física.
Mas esse não é o único tipo de humor. Existem vários outros, como quando rimos com um jogo de palavras: "O trabalho é a maldição das massas alcoólatras", disse Oscar Wilde, o mestre inveterado das frases feitas. Kant, o grande filósofo alemão, teorizou que o riso é resultado do rompimento inesperado de uma expectativa, o que às vezes é chamado de "teoria da incongruência".

A piada é uma história que esperamos que tenha um fim lógico. É o rompimento inesperado da lógica numa direção absurda que nos faz rir.

Por isso, quando explicamos uma piada ela perde completamente a graça.
O desafio, como afirma o autor Jim Holt em seu recente livro "Stop Me If You've Heard This" (Me Interrompa Se Você Já Ouviu Essa, em inglês, editora W.W. Norton), é entender por que o rompimento com a lógica provoca uma reação física tão peculiar. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Entra Freud com a sua "teoria do alívio". Segundo Freud, a piada abre os canais para expressarmos impulsos socialmente proibidos ou reprimidos, não só relacionados ao sexo e à agressividade como, também, o impulso lúdico que adultos, infelizmente, tendem a desprezar em sua pressa diária.

Basta conviver com uma criança para ver como o riso corre mais solto, como tudo é mais engraçado. O riso, para Freud, permite sermos criança mais uma vez, deixando escapar as inibições que nosso superego constrói ao longo de nossas vidas. O que não temos coragem de falar fica sancionado numa boa piada suja ou de conteúdo racista, machista ou xenófobo. No universo da piada vale tudo.

O problema com essa teoria é que ela prevê que, quanto mais inibida a pessoa, mais ela rirá com a piada, maior será o seu alívio. E estudos mostram justamente o oposto. As pessoas sexualmente mais "abertas" são as que riem mais das piadas sujas.

Existe até uma teoria que explica o riso através da teoria da evolução de Darwin. Segundo ela, o riso era um modo de comunicação pré-verbal -os chimpanzés, por exemplo, também riem- que visava diferenciar inimigos de amigos. O riso na chegada de um visitante era o sinal para o grupo de que não existia perigo. Seja qual for a explicação ou as explicações, uma coisa é certa: rir só faz bem.

domingo, 3 de agosto de 2008

O céu embaixo da Terra



Existe uma astronomia que se enterra para estudar os astros

Quando se pensa em astronomia e astrônomos, a primeira imagem que temos é a de um sujeito sozinho no seu observatório no alto de uma montanha, com o olho fixo na lente de seu enorme telescópio. Existe algo de romântico nessa visão, o homem em busca de uma compreensão mais profunda do Universo, armado apenas de seu instrumento e de sua criatividade.

Não há dúvida de que essa imagem do astrônomo foi inspirada pela prática da astronomia que, tradicionalmente, era mesmo feita assim. Porém, com a automatização dos telescópios e a digitação de sua óptica, hoje controlada por CCDs acoplados a computadores ultra-rápidos, poucos astrônomos precisam ir até seus observatórios para colher dados para pesquisa.

Um exemplo extremo dessa automatização é o Telescópio Espacial Hubble, um dos instrumentos científicos mais bem-sucedidos da história, que é operado inteiramente da Terra por controle remoto. O Hubble não passa de um robô extremamente sofisticado, desenhado para colher imagens de alta precisão de objetos celestes próximos e muito distantes.

Assim como ele, existem muitos outros robôs observatórios colhendo dados em regiões do espectro eletromagnético além das que nos são visíveis. Um exemplo recente é o observatório espacial Glast, que estuda a radiação eletromagnética (RE) mais energética, os raios gama. De passagem, menciono que um dos operadores principais do Glast é o físico brasileiro Eduardo do Couto e Silva (tema da coluna de 15 de junho de 2008).

Mas existe outro tipo de astronomia que, paradoxalmente, para estudar o que existe nos céus, é realizada embaixo da Terra. Para entendermos como isso é possível, é bom lembrar que a luz, os raios X, os raios gama e as várias outras formas de RE são compostas de partículas chamadas fótons. Os telescópios que captam a luz, os raios gama ou outros tipos de RE são, na verdade, detectores de fótons, como se fossem redes de pesca desenhadas para apreender essas partículas.

Só que os fótons não são as únicas partículas que existem nos céus. Pelo contrário, muitas outras "chovem" continuamente sobre nós. A maioria faz parte dos chamados raios cósmicos, compostos principalmente de prótons, elétrons e múons, que são elétrons mais pesados. Outras são os neutrinos, as "partículas-fantasma", produzidas no coração do Sol. Neutrinos são capazes de atravessar a matéria normal como se fossem fantasmas.

Paredes ou mesmo a Terra inteira não são obstáculos para eles. Algumas partículas, como os elétrons e os múons, também penetram a matéria por boas distâncias. Portanto, para estudar os neutrinos sem a interferência de outras partículas, físicos usam cavidades subterrâneas, em geral minas abandonadas. Nelas, montam seus "telescópios", detectores capazes de identificar as raras colisões de neutrinos com a matéria comum.

Existem outras partículas cruzando o espaço ainda mais misteriosas do que os neutrinos. Delas sabemos apenas que não são como a matéria comum. Elas não produzem RE, como fazem os elétrons. Portanto, não brilham, sendo conhecidas como "matéria escura". Sabemos que existem apenas porque sua massa afeta o comportamento das galáxias pela gravidade. Cada galáxia tem uma espécie de véu de matéria escura, com uma massa que chega a ser dez vezes maior do que a massa de todas as suas estrelas.

A matéria escura também é caçada em observatórios subterrâneos. Até agora, nenhuma candidata foi detectada, o que causa uma certa ansiedade nos físicos. Mas também aumenta o seu fascínio. Vivemos numa realidade dominada pelo que nos é invisível.