domingo, 30 de novembro de 2008

Decifrando a "mente de Deus"



Por que sempre buscamos ver a natureza em ordem?

Somos amantes da regularidade.

O que foge aos padrões da normalidade, o comportamento irregular, inesperado, incontrolável, é sempre visto com censura ou mesmo com medo. Isso é tanto verdade na sociedade quanto na natureza.

Quando os primeiros humanos olharam na direção dos céus, perceberam que existiam dois tipos de fenômenos. Os que se repetiam regularmente, como o ciclo das estações do ano, e os inesperados, como o aparecimento de cometas.

Reconhecer esses padrões regulares se fez necessário para a nossa sobrevivência como espécie. Se um caçador na floresta via algo que fugia ao normal, logo ficava alerta. Podia ser um predador, um inimigo ou, com sorte, comida. Evoluímos com a capacidade mental de reconhecer padrões.

A matemática nada mais é do que a linguagem que criamos para descrever esses padrões. Na geometria, descrevemos os padrões espaciais, as formas da natureza e as suas simetrias.

Na aritmética e na álgebra, lidamos com padrões entre números e suas relações. Quando Pitágoras criou sua seita no sul da Itália, em torno de 600 a.C., seu objetivo místico-filosófico era a compreensão dos padrões da natureza através da matemática.

Para os pitagóricos, tudo era número. A essência do conhecimento começava com a matemática e terminava na descrição da mente do "criador" -da sua criação- como um elaborado mosaico de padrões. O filósofo era quem se dedicava a esses estudos, uma espécie de matemático-sacerdote. É natural supor que, com o desenvolvimento da ciência, essas idéias tenham caído em desuso.

Afinal, nenhum matemático ou físico moderno -ou quase nenhum- se diz um místico em busca de desvendar os segredos matemáticos da mente de Deus. Porém, é talvez surpreendente o quanto essa metáfora ainda é usada, o "desvendar a mente de Deus" como sendo o objetivo final da ciência. Um exemplo recente é o de Stephen Hawking em seu livro "Uma Breve História da Tempo". Como o dele, existem vários outros. Por que isso?

A história é longa demais para uma coluna (estou escrevendo um livro sobre o assunto), mas podemos começar a partir de Kepler. No início de século XVII, ele tentou criar um modelo geométrico do cosmo usando os cinco sólidos platônicos (o cubo e a pirâmide são dois deles).

A idéia, meio genial e meio louca, era realizar o sonho pitagórico, obter o padrão geométrico da criação. Pulando para Einstein, sua teoria da relatividade foi o próximo grande passo.
Claro, o modelo de Kepler estava errado e a teoria de Einstein funciona muito bem.

Einstein, influenciado por Spinoza que, por sua vez, foi influenciado por Platão que, por sua vez, foi influenciado por Pitágoras, queria obter uma descrição geométrica do mundo, que ele atribuía à uma inteligência abstrata. Não o Deus judaico-cristão, com certeza. Mas a racionalidade que via manifesta nos padrões do mundo à nossa volta.

Einstein passou as últimas duas décadas de sua vida buscando por uma teoria unificada das forças gravitacional e eletromagnética.

Para ele, essa unificação era inevitável, a expressão mais cristalina da inteligência da natureza. Einstein falhou em sua empreitada, mas outros continuam buscando por essa unificação geométrica, a versão científica da "mente de Deus".

A falta de resultados experimentais indicando a direção certa dificulta muito as coisas. Ou, talvez a natureza esteja tentando nos dizer algo: a ordem que tanto buscamos nela é, na verdade, a ordem que buscamos em nossas vidas.

domingo, 23 de novembro de 2008

A origem do tempo



No universo quântico, intervalos temporais não têm sentido

Continuando nossa exploração do tempo, nesta semana toco na questão de sua origem. Como começou o tempo? Santo Agostinho tinha duas respostas para quem lhe perguntava o que Deus estava fazendo antes de criar o mundo.

"Estava criando o Inferno para pôr os chatos que fazem esse tipo de pergunta" era uma delas. (Parece que ele não levava essa muito a sério.) A outra resposta, bem interessante, é que "o tempo surgiu com a Criação". Ou seja, antes de o mundo existir o tempo também não existia. Em linguagem mais moderna, revertemos a questão ao modelo do Big Bang, que diz que o Universo teve sua origem há aproximadamente 14 bilhões de anos.

Quando afirmamos isso, implicitamente supomos que o tempo, como o conhecemos, começou a passar a partir do Big Bang, o evento que marca a origem cósmica. A pergunta clássica que tantos fazem é: "E antes do Big Bang? O que estava acontecendo?" Perfeitamente natural a pergunta.

Afinal, estamos acostumados com o fluir do tempo, com o passado, o presente e o futuro. Se o Big Bang marca a origem do cosmo, ele marca também a origem do tempo. Segundo a teoria da relatividade de Einstein, que descreve as propriedades do tempo e do espaço, devemos pensar em termos de um espaço-tempo, uma entidade que engloba tanto o tempo quanto o espaço. Um não existe sem o outro. Então, se o Big Bang marca a origem do espaço, marca também a origem do tempo. Ou melhor, a origem do espaço-tempo.

Apenas a partir desse conceito podemos definir distâncias entre dois pontos ou intervalos de tempo entre dois eventos. Por que isso?

Essencialmente, a teoria de Einstein deixa de fazer sentido quando nos aproximamos do momento inicial, o t = 0 (tempo igual a zero.) Aí os cálculos dão resultados absurdos. Isso ocorre porque a teoria, como qualquer teoria em física, tem seu limite de validade. Aplicá-la além desse limite gera erros.

Chamamos a teoria de Einstein de teoria clássica. Isso a diferencia de uma teoria quântica, ideal para tratar de estruturas atômicas ou subatômicas. Perto do Big Bang, as distâncias cósmicas eram subatômicas: o Universo, como um todo, tem de ser descrito pela teoria quântica.

Mas o que vem a ser um Universo quântico? Segundo a teoria quântica, estruturas de dimensões subatômicas estão sempre vibrando, como se tivessem um desconforto. Essas vibrações são descritas pelo celebrado princípio de incerteza de Heisenberg, que diz ser impossível medir simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula, como um elétron, com precisão arbitrariamente alta. Há um limite no que podemos saber sobre essas quantidades. Essa limitação de deve à agitação inerente ao mundo quântico.

É inescapável, propriedade da Natureza. Traduzindo isso para o nosso Universo, quando chegamos perto do início, as distâncias espaciais são tão pequenas que o Universo assume dimensões atômicas. Portanto, deve ser descrito pela teoria quântica. Mesmo que não tenhamos ainda uma teoria quântica do espaço-tempo, sabemos que é inevitável que o próprio espaço-tempo flutue violentamente devido à incerteza quântica, como se fosse uma cama elástica enlouquecida. Distâncias espaciais e intervalos de tempo deixam de fazer sentido. Não existe perto e longe, antes e depois.

Nesse mundo, digno de um conto de Jorge Luís Borges, passado e futuro não existem. Todos os instantes coexistem; o próprio tempo pode ir para a frente ou para trás. De repente, dessas flutuações espaço-temporais, surge uma grande o suficiente para ser descrita pela teoria de Einstein. A partir daí, o tempo começa a passar alegremente, marcando a origem de tudo.

domingo, 16 de novembro de 2008

Um pouco mais sobre o tempo


Existimos numa espécie de cama elástica, o espaço-tempo



Na semana passada, escrevi sobre o tempo, essa misteriosa entidade que tanto define nossas vidas. Expliquei que existiam essencialmente dois tipos de tempo, ou duas percepções dele. Na newtoniana, que é a do nosso dia-a-dia, o tempo passa sempre no mesmo ritmo, inexoravelmente, feito um rio. Sua passagem é independente da nossa percepção dela, absoluta e universal.

Na relativística, as coisas são bem diferentes. A passagem do tempo depende de quem o está medindo. Mais precisamente, do estado de movimento do observador. Dois observadores munidos dos mesmos relógios, um em movimento e outro parado na calçada, discordam se duas bolas de basquete batem no chão ao mesmo tempo. Fenômenos que são simultâneos para um observador não são para o outro. A simultaneidade é relativa.

Essa relatividade do tempo confunde muita gente. O que ela afeta de fato? Os mecanismos dos relógios? Relógios em movimento batem mais devagar, diz a teoria de Einstein. Será que o coração do observador em movimento também bate mais devagar segundo o observador parado?

Para esclarecer um pouco as coisas, é necessário entender que a teoria da relatividade é uma teoria sobre a estrutura do espaço e do tempo, e não sobre mecanismos de relógios ou sobre a fisiologia cardíaca. Ao contrário do que ocorre com a física newtoniana, na relatividade o espaço e o tempo agem conjuntamente: o tempo passa a ser uma dimensão onde medimos "distâncias" e não segundos. O presente é a origem. Pontos no passado e futuro ficam a uma certa distância dele.

A grande inovação da teoria da relatividade foi tornar a velocidade da luz a velocidade limite na natureza. Nada pode viajar mais rápido do que ela. É ela que determina a velocidade com que a informação é trocada entre observadores e que limita a percepção de cada um dos observadores quando se deparam com um fenômeno. Além disso, a velocidade da luz é sempre a mesma, não importa se sua fonte está ou não se movendo. Ela é um absoluto da teoria. Ninguém sabe por que, mas ela é assim. Isso a torna muito peculiar. Todos os efeitos "estranhos" da relatividade, como a dilatação temporal, são conseqüência dessa propriedade da luz.

Como traduzir isso tudo? Segundo a relatividade, existimos numa espécie de cama elástica, o espaço-tempo. Não é o mecanismo do relógio nem as batidas do coração que são alterados, mas a própria estrutura do tempo e do espaço. Imagine uma rua reta numa cidade, com um lampião a cada esquina. Cada lampião pisca com uma freqüência, digamos a cada segundo para quem está em pé ao lado. Agora imagine que você passa muito rápido por essa rua. Você vê os lampiões se aproximarem uns dos outros como se a rua fosse feita de material elástico.

Já a luz demora mais de um segundo para piscar. Quanto mais rápido você passar, mais os lampiões se aproximam e maior o intervalo entre duas piscadas. O que Einstein mostrou foi que essas contorções são conseqüência da luz e das suas peculiaridades. E do movimento relativo entre o observador e o observado. Nossa percepção da realidade com o tempo e o espaço rígidos é uma ilusão, produto de nossas baixíssimas velocidades quando comparadas com a da luz. Se pudéssemos viajar mais rápido, veríamos tudo diferente. Somos míopes por sermos lentos. Não são relógios ou corações que batem mais devagar. É o próprio fluir do tempo que muda, em sua estrutura mais íntima.

Relógios e corações seguem o fluxo desse tempo elástico, como se viajassem num rio cheio de correntes, ora mais rápidas, ora mais lentas.

domingo, 9 de novembro de 2008

Sobre o tempo



Sementes brotam, flores desabrocham e caem pelo chão

Volta e meia leitores me escrevem pedindo que aborde determinados tópicos. Dentre eles, o tempo é, sem a menor dúvida, um dos mais populares.

Que o significado do tempo -filosófico, científico, existencial- exerça um fascínio não é muito surpreendente. Afinal, o tempo está intimamente ligado com a preocupação mais profunda e inquietante da humanidade, a nossa mortalidade.

A consciência que temos de que nosso tempo de vida é finito está por trás de muitos dos anseios que nos afligem. Não é à toa que muitas religiões tentam, de alguma forma, driblar a morte, propondo existências alternativas, seja no paraíso (ou inferno), seja por meio da imortalidade da alma, que reencarna ciclicamente, ou mesmo por meio da aceitação da morte como uma conseqüência inevitável da vida, algo que deveríamos abraçar e não lutar contra.

Apesar de a ciência não oferecer uma resposta de ordem existencial ou teológica, ao menos oferece uma definição concreta do que seja o tempo. A escolha do que fazer com ela, claro, pertence ao indivíduo, embora eu espere que alternativas sobrenaturais não sejam levadas muito a sério.

Existem duas noções de tempo. A newtoniana assume que o tempo flui inexoravelmente, sempre no mesmo ritmo para todo o mundo, do passado ao futuro. É a tal noção do tempo como um rio. Esse é o tempo que percebemos pelas mudanças à nossa volta, uma ferramenta criada para quantificar as transformações da natureza. Sementes brotam, flores desabrocham e caem pelo chão. Nós também. Ao tempo newtoniano, juntamos as leis da termodinâmica, que mostram que a tendência dos sistemas naturais é equalizar diferenças, é evoluir na direção do equilíbrio.

A vida é um sistema fora do equilíbrio, que precisa estar em permanente contato com o ambiente externo, com fontes de energia, para permanecer viável; se não comemos e excretamos, morremos. Claro, a determinação do zero do tempo, quando começamos a marcar datas, ou de quão rápido o tempo passa é arbitrária.

Nós adotamos um sistema baseado no número 60: dividimos a hora em 60 minutos e o minuto em 60 segundos. Como nas medidas de temperatura, em graus Celsius ou Fahrenheit, poderíamos ter inventado um sistema completamente diferente para marcar a passagem do tempo. Mas o tempo passa da mesma forma. A outra noção de tempo, a relativística, vai além da noção newtoniana, mostrando que a passagem do tempo, o quão rápido ele flui, depende de quem o está medindo.

Duas pessoas, uma na calçada e outra num carro, têm relógios idênticos, que foram ajustados quando o carro estava em repouso. Quando o carro passa pela pessoa na calçada, ela olha para o relógio dentro dele e percebe que o intervalo entre um tique e um toque é mais longo: o tempo passa mais devagar para relógios em movimento. Essa é a famosa dilatação temporal da teoria da relatividade especial de Einstein, de 1905. O tempo é plástico, maleável, dependente de movimentos relativos. Contrariamente à nossa intuição newtoniana, não existe um tempo absoluto.

Em 1915, Einstein foi além, mostrando que a gravidade também afeta a passagem do tempo; quanto maior for a atração gravitacional num local, mais devagar o tempo passa ali: um relógio na superfície do Sol (se funcionasse) bateria mais devagar. Num buraco negro, ele pararia! Esses efeitos mudaram de forma profunda nossa concepção do tempo, algo que abordaremos em breve. Infelizmente, para nós, ele continua a passar, inexoravelmente feito um rio.

domingo, 2 de novembro de 2008

Chuva cósmica



O grande mistério hoje são os raros raios com alta energia

Físicos gostam de drama. São os fenômenos com maior energia, os que ocorrem no coração dos átomos ou nas maiores distâncias cósmicas, que expõem alguns dos segredos mais fascinantes do mundo natural. Dentre esses, os misteriosos raios cósmicos estão na linha de frente.

Tudo começou em 1912, quando o físico austríaco Victor Hess subiu num balão para examinar se existia radiação na atmosfera. Destemido como um explorador do Ártico, de seu balão Hess investigou a quantidade de radiação até altitudes de 5,3 km. Sua descoberta foi sensacional: não só existia muita radiação na atmosfera como, a altitudes de 5 km, seu nível era duas vezes maior do que na superfície. A chuva de partículas vinha do espaço. Daí o nome: raios cósmicos.

Após décadas de muitos vôos de balão e detectores nos picos de montanhas, ficou claro que a maioria dos raios cósmicos são elétrons ou núcleos atômicos, principalmente de hidrogênio, que consiste de um próton.

A maioria dessas partículas originam-se no Sol ou na nossa galáxia e são aceleradas por campos magnéticos. Quando colidem com as moléculas de ar na parte superior da atmosfera, provocam um verdadeiro chuveiro de partículas, às vezes bilhões delas.

Muitas chegam até a superfície da Terra, onde podem ser detectadas.

Observações mostram que raios cósmicos chegam com grande variação nas suas energias. Alguns atingem energias dezenas de milhões de vezes maiores que as dos aceleradores de partículas mais poderosos na Terra.

Existem duas perguntas importantes: de onde vêm os raios cósmicos e como são acelerados. Os de energias mais baixas, como vimos, são originados no Sol; os de energias medianas, em explosões de supernovas na nossa galáxia -que marcam a morte de estrelas. O grande mistério hoje são os raros raios cósmicos superenergéticos. Quais mecanismos podem acelerá-los às suas energias gigantescas?

De que canto do Universo eles vêm?

Entra em cena o Projeto Auger. No nordeste da Argentina, mais de 1.300 tanques de água, cada um com 12 mil litros, cobrem uma área de 3.000 quilômetros quadrados. Dentro de cada tanque, detectores sensíveis à radiação medem a passagem das partículas criadas pelos raios cósmicos, registrando suas energias e sua direção.

O projeto é uma operação internacional, envolvendo centenas de físicos de mais de 70 instituições espalhadas pelo mundo. Físicos brasileiros têm um papel extremamente importante.
Dentre dezenas de cientistas, Carlos Escobar, pesquisador da Unicamp, é o coordenador da colaboração nacional, enquanto que Ronald Shellard, da PUC-Rio e do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), é membro oficial do conselho internacional.

Semana passada, dei um colóquio na Universidade de Chicago. Lá, minha amiga brasileira Angela Olinto me convidou para uma reunião do grupo local do Auger. Angela é uma das pessoas-chaves na elaboração de modelos teóricos que visam explicar a origem dos raios cósmicos superenergéticos.

De quebra, o prêmio Nobel Jim Cronin, que junto com Alan Watson, da Inglaterra, foi o pioneiro do projeto, estava presente. Em novembro de 2007, a colaboração publicou uma descoberta crucial: os raios cósmicos mais energéticos parecem vir de fora da Via Láctea, provavelmente de núcleos de galáxias com buracos negros gigantescos. "Foi capa da revista Science", disse Angela empolgada. "O próximo passo é construir outro observatório no hemisfério Norte, ainda maior. Com mais dados, acho que resolveremos de uma vez por todas esse mistério." O clima de entusiasmo na sala não deixava dúvida de que é apenas uma questão de tempo.