domingo, 27 de agosto de 2006

Nós, os marcianos


A vida que há na Terra pode ter surgido em Marte

Invasões marcianas vêm ocorrendo ao menos desde o final do século 19, quando o magnata americano Percival Lowell resolveu deixar os negócios e construir um telescópio em Flagstaff, no Arizona, dedicado exclusivamente a pesquisar o planeta vermelho. Lowell motivou-se nas observações do italiano Giovanni Schiaparelli, que identificou o que chamou de "canais" cruzando a superfície do planeta. Suas observações o levaram a uma conclusão surpreendente: os canais foram escavados por uma civilização antiga e sábia que habitava as regiões equatoriais extremamente áridas do planeta. De acordo com Lowell, a função dos canais seria levar água dos pólos ao equador.

Entre os leitores de Lowell estava H. G. Wells, o grande escritor de ficção científica. Em 1898, Wells publica "A Guerra dos Mundos", que conta como os marcianos vieram até aqui para acabar com os humanos e tomar posse da nossa querida Terra. O medo dos marcianos tomou conta da imaginação das pessoas. Passaram a representar tudo de terrível que somos capazes de fazer e que, de fato, foi feito, quando potências tecnologicamente avançadas invadiram (e invadem) novas terras, como quando os europeus "colonizaram" as Américas e a África.

Mas os marcianos não ficaram apenas na ficção. A possibilidade de que a vida tenha existido e ainda exista em Marte é foco de pesquisas realizadas por cientistas no mundo inteiro. Em 1975, as sondas americanas Viking-1 e Viking-2 coletaram amostras da superfície marciana buscando restos biológicos de seres vivos ou, se não isso, ao menos alguma pista de processos bioquímicos.
Infelizmente, os resultados foram negativos: nenhum vestígio de vida foi encontrado. Ao menos parecida com a nossa. É sempre possível supor que outras formas de vida tenham uma bioquímica difícil de identificar com métodos tradicionais. Afinal, a vida é bem mais criativa do que nós. Novas missões procurarão não só ampliar essas pesquisas mas, também, escavar o subsolo marciano, que pode conter água. Isso porque a superfície marciana é um deserto árido e sua atmosfera pouco densa não é das mais propícias à vida. Pelo menos hoje.

No passado, a coisa era bem diferente. A superfície de Marte é repleta de vales e leitos de rios ressecados, escavados pelo fluxo de água líquida. Lowell não estava assim tão errado, mesmo que esses "canais" tenham sido escavados pela natureza e não por máquinas marcianas. Se água líquida existia no passado, a temperatura em Marte era semelhante à da Terra de hoje. Isso sugere que a vida pode ter existido lá.

A geologia marciana sugere que os canais foram formados quando Marte e a Terra eram bem jovens, durante o seu primeiro bilhão de anos de existência, uma época em que a Terra não oferecia condições para o desenvolvimento da vida. Enquanto a Terra estava sendo bombardeada por asteróides de todos os tamanhos e sua superfície era mais parecida com uma visão do inferno, Marte possivelmente era um paraíso tropical.

Volta e meia, asteróides caíam também em Marte, arrancando rochas de sua superfície. Algumas delas viajaram pelo espaço e vieram parar aqui. Se a vida existia em Marte, é possível que tenha pego carona nessas rochas. Se não a vida, ao menos as moléculas orgânicas necessárias para ela. Em 1984, foi descoberto um meteorito marciano na Antártica que parecia conter restos de vida. Após muito debate, parece que foi alarme falso. Mas existe a possibilidade de que a vida tenha surgido em Marte e sido transferida para a Terra. Nesse caso, seríamos nós os marcianos. A realidade pode ser mais fascinante do que a ficção.

domingo, 20 de agosto de 2006

Ora (direis) contar planetas! Parece haver casos em que a definição de planeta não vale

O imenso aumento no poder dos telescópios na última década tem causado uma verdadeira revolução no nosso conhecimento do Sistema Solar. Aliás, do Sistema Solar e de dezenas de outros sistemas estelares que não sabíamos que existiam; bandos de planetas girando em torno de suas próprias estrelas, algumas a incomensuráveis anos-luz de distância daqui. Com essa chuva de novos mundos, vêm também as surpresas. Como saber se o padrão seguido pelo Sistema Solar é a regra ou a exceção? Seríamos exóticos ou normais? Para respondermos, temos primeiro que entender bem o que é um planeta. E é aqui que nasce a confusão.
Na época de Copérnico era tudo simples: existiam apenas seis planetas, aqueles visíveis a olho nu. Com o desenvolvimento dos telescópios, as surpresas começaram. Primeiro, Galileu descobriu em 1610 que existiam quatro luas girando em torno de Júpiter. Em 1781, Urano foi descoberto por William Herschel, seguido por Netuno em 1845. Embora Urano esteja no limite do que é visível a olho nu, passou despercebido até o século 18. Ficou claro que existem muitos objetos girando em torno do Sol além dos que podemos ver a olho nu. Mas quantos? Até 1930, as coisas paravam em Netuno e tudo parecia estar bem. Foi então que o americano Clyde Tombaugh descobriu o pequenino Plutão, menor do que a nossa Lua. Comparado com seus vizinhos, os gigantes gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, Plutão é um detalhe. Até sua composição química é diferente: enquanto os gasosos são ricos em hidrogênio e hélio, Plutão é composto de gelo e metano congelado. Fora isso, enquanto os outros planetas giram em torno do Sol aproximadamente no mesmo plano, feito azeitonas numa pizza, a órbita de Plutão tem uma inclinação de 17 graus. A inclinação de Mercúrio, o único outro fora da pizza orbital, tem inclinação de 7 graus. Dadas essas diferenças, alguns astrônomos começaram a se questionar se Plutão é mesmo um planeta.
A coisa ficou ainda mais complicada quando se descobriu que existem milhares de corpos celestes formando um cinturão além da órbita de Plutão. O cinturão de Kuiper, como é chamado, é o berçário de muitos dos cometas que passeiam pelo interior do Sistema Solar -bolas de gelo e gás congelado que entram em incandescência ao se aproximar do Sol. O próprio Tombaugh apelidou Plutão de "rei do cinturão de Kuiper". Mas se Plutão for mesmo considerado parte do cinturão, será que seus outros integrantes também são planetas? Ou será que devemos definir planetas a partir de um tamanho mínimo, digamos, um raio de mais de mil quilômetros?
A definição comum é que planeta é um corpo esférico, grande, que gira em torno de uma estrela e que não tem massa suficiente para gerar a própria luz. Recentemente, um planeta gigantesco foi encontrado girando em torno de uma estrela que... não brilha! Do tipo conhecido como anã marrom, a miniestrela tem massa equivalente a 14 vezes a de Júpiter. E o seu planeta, a sete. Estão no limiar do que divide um planeta de uma estrela. A definição claramente não se aplica: afinal, planeta não gira em torno de planeta.
Voltando a Plutão, ano passado foi descoberto um objeto maior do que ele apelidado de "Xena", com órbita três vezes mais distante do Sol e que demora 560 anos para ser completada. (A de Plutão leva 248). Tem até lua. Integrante do cinturão de Kuiper, "Xena" se tornou candidato a ser o décimo planeta. Ou será que Plutão virá a perder seu status? Em breve, a situação ficará definida. Se aparecerem muitos "Xenas", melhor baixar a contagem e tirar Plutão da lista. Tenho certeza de que ele não se importaria.

domingo, 13 de agosto de 2006

A nova sopa cósmica Fótons, prótons e elétrons viviam um triângulo amoroso

Costumo escrever com freqüência sobre a infância do Universo, falando de coisas que aconteceram há 13,8 bilhões de anos. Volta e meia leitores me perguntam, alguns mais curiosos, outros mais indignados, como é possível termos certeza do que ocorreu tão cedo na história cósmica, numa época em que não existiam pessoas, estrelas ou mesmo átomos para observar e fazer medidas.
A resposta tem duas partes. Uma delas é semelhante ao que diria um paleontólogo: embora não existíssemos quando os dinossauros reinavam sobre a Terra, podemos acumular evidências de sua presença e detalhes das várias espécies estudando seus fósseis. Esse é o modo mais direto de reconstruir o passado, através do estudo de coisas que foram preservadas e que são acessíveis hoje. No caso do Universo primordial, temos alguns fósseis também. O mais famoso deles é a chamada radiação cósmica de fundo, que é composta pelos fótons, as partículas que equivalem à luz e aos outros tipos de radiação eletromagnética, como os raios X e a radiação infravermelha, que emergiram do processo de formação dos primeiros átomos, quando o universo tinha a (relativamente) tenra idade de 400 mil anos.
Antes disso, prótons, elétrons e fótons interagiam violentamente, num triângulo amoroso que não se resolvia. Com a expansão gradual do Universo, a matéria se resfriou; no fim das contas, os prótons e elétrons se juntaram para formar os primeiros átomos de hidrogênio e os fótons passaram a se propagar livremente pelo espaço. Suas propriedades, estudadas em detalhe em dezenas de experimentos, alguns a bordo de satélites, permitem a reconstrução do cosmo nessa era tão distante do passado.
O segundo método para estudar a infância cósmica é mais ambicioso: tentar reconstruir no laboratório as condições presentes nos primeiros instantes de existência do Universo. A dificuldade é que, quando voltamos no tempo, a matéria fica cada vez mais comprimida e a temperatura sobe. Por exemplo, na época em que se formaram os primeiros átomos, a temperatura era de aproximadamente 2.700 graus Celsius, coisa fácil de reproduzir no laboratório. Como comparação, a temperatura na superfície do Sol é de 6.000 graus. Mais perto da origem do tempo, a temperatura sobe ainda mais. Para reproduzir tais condições, são necessárias máquinas que aceleram núcleos atômicos ou partículas subatômicas até velocidades próximas da velocidade da luz.
Um desses aceleradores é o RHIC (Colisor Relativístico de Íons Pesados), que opera nos EUA. Seu objetivo é repetir as condições que existiam no cosmo quando tinha apenas um centésimo de milésimo de segundo de existência. Para tal, núcleos de átomos de ouro são postos em dois anéis de 3,8 km de diâmetro e acelerados em sentidos opostos até atingirem 99,99% da velocidade da luz. Depois disso, os feixes de núcleos são alinhados como duas mangueiras, causando colisões entre deles. Durante frações de segundo, a matéria na região da colisão atinge temperaturas de 1 trilhão de graus Celsius: a mesma que existiu na infância cósmica quando nem mesmo núcleos atômicos estavam presentes. Os próprios prótons e nêutrons se dissolvem em seus constituintes, os quarks e os glúons. E o que se observa é uma sopa de quarks e glúons semelhante, mas não idêntica, àquela prevista por teorias que descrevem a infância cósmica. Essas diferenças podem ter repercussões profundas. Só com novos experimentos poderemos confirmar o que de fato ocorreu. Felizmente, uma máquina ainda maior entrará em funcionamento na Europa em 2008. Será o ponto mais quente do cosmo, ao menos hoje em dia.

domingo, 6 de agosto de 2006

Visões harmônicas Há uma tradição na ciência que mistura razão e espiritualidade

Sempre que reflito sobre a belíssima ordem que observamos no mundo, como cada coisa se origina de outra, sinto-me como se estivesse lendo um texto divino, escrito não com letras mas com objetos, que dissesse: Homem, amplia tua razão, para que possas compreender." Assim escreveu Johannes Kepler, o grande astrônomo alemão que, no início do século 17, revolucionou a astronomia propondo que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares, como se acreditava por mais de 2.500 anos.
Em toda a história da ciência, poucos, talvez ninguém, expressaram de modo mais lírico a motivação pela pesquisa, a devoção ao "mistério" que rege a vida de um cientista. Esse texto foi escrito em 1604, 51 anos após Copérnico ter publicado "Sobre as Revoluções das Esferas Celestes", onde propôs que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo. Poucos deram atenção às idéias de Copérnico; a "revolução" copernicana se deu lentamente, e principalmente graças aos esforços de Kepler e Galileu, que viveu na mesma época na Itália. Kepler era bem mais copernicano do que o próprio Copérnico: não só insistiu em manter o Sol no centro como obteve, pela primeira vez, as leis matemáticas que justificavam o arranjo dos planetas em torno do Sol: o Sol não era apenas o centro do cosmo por motivos estéticos, como sustentava Copérnico, mas, também, por razões físicas e teológicas. Físicas porque Kepler propôs que uma força vinda do Sol era a responsável por manter os planetas em órbita à sua volta. Aqui encontramos o germe da teoria da gravidade, que será desenvolvida por Newton ainda no mesmo século; teológicas porque Kepler acreditava num Deus geômetra, todo-poderoso em Sua criatividade, um Deus que construiu o cosmo segundo leis matemáticas precisas e que gerava a luz que iluminava aquele cosmo e tornava a vida possível. Para este cientista alemão, o Sol era a morada divina, ao menos metaforicamente.
Mas é o aspecto lírico de Kepler que gostaria de explorar hoje. Sua relação com a ciência ia muito além de um mero trabalho, uma simples ocupação. Era a vocação à qual se entregou com a devoção de um místico, com um fervor que jamais se abateu, mesmo durante momentos extremamente difíceis de sua vida: a morte da esposa e vários filhos, as perseguições religiosas, o exílio forçado, a crítica dura de outros astrônomos e filósofos naturais, as privações da pobreza. Kepler conviveu com tudo isso e mais a solidão do visionário que sabia que suas idéias estavam certas, mesmo se ninguém, ou quase ninguém, compartilhasse de suas idéias e opiniões.
Era a "belíssima ordem" do mundo que o motivava, a harmonia que acreditava existir em todas as coisas, o texto sagrado do livro da Natureza, escrito pelas mãos invisíveis de um Deus matemático. Para Kepler, a ciência aproximava os homens de Deus, de Sua mente perfeita. A missão daqueles que pensavam a ciência era então usar a matemática para aproximar, mesmo que imperfeitamente, a perfeição da mente divina. Existe aqui uma tradição encontrada ainda hoje (e muito!) em ciência que mistura razão e espiritualidade, herdeira dos pitagóricos, os primeiros a propor que a matemática pode descrever o mundo, que é a língua comum entre Deus e os homens. O próprio Albert Einstein se declarou discípulo dessa tradição, quando afirmou que "a mais profunda emoção que podemos experimentar é inspirada pelo senso do mistério. Essa é a emoção fundamental que inspira a verdadeira arte e a verdadeira ciência". Não há dúvida que Kepler concordaria com Einstein. Tanto um quanto o outro criaram inspirados por suas visões harmônicas.