domingo, 26 de setembro de 2010

O caso do Frankenpeixe


A tecnologia para criar os transgênicos não vai sumir e, portanto, é preciso fazer bom uso de seu potencial


QUEM NÃO GOSTA de um bom salmão grelhado? Do jeito que as coisas vão, o salmão pode vir a se tornar mais uma espécie em perigo de extinção. A menos que cientistas criassem um salmão geneticamente modificado (GM), em reservas isoladas, que crescesse duas vezes mais rápido do que o salmão selvagem: em vez de três anos, só 18 meses até atingir a maturidade.

Esse salmão existe. Uma empresa americana dedicou dez anos ao desenvolvimento de uma espécie que combina genes do salmão chinook, que habita o Pacífico, com os de uma enguia. Nesta semana, nos EUA, vários jornais, blogs e revistas cobriram a decisão da FDA, agência que regula fármacos e alimentos no país, que parece caminhar em direção à aprovação da venda comercial do salmão GM.

Cientistas da FDA afirmam não ter encontrado qualquer problema com o novo animal. O frankenpeixe tem quantidades de ômega-3 semelhantes às de seu parente selvagem, e os teores de hormônio do crescimento não parecem ser um problema. Os críticos que temem que o peixe escape de suas piscinas de criação e cruze com o salmão selvagem podem ficar descansados: o salmão GM foi projetado para ser estéril.

O público americano está dividido. Todos querem que o salmão GM seja rotulado nos supermercados. Assim a pessoa pode escolher o que põe na boca. Alguns afirmam que se recusarão a comer um animal "feito" pelo homem. Outros não veem qualquer problema, dado que testes indicam que o conteúdo alimentício do peixe GM é o mesmo.

É difícil não pensar no romance "Frankenstein", de Mary Shelley. Mesmo que ninguém esteja criando monstros a partir de pedaços de cadáveres, chegamos a uma era na qual podemos criar novas espécies de animais. Enxertos de plantas fazem isso há tempos, mas o nível de manipulação é muito diferente.

O segredo, ao contrário do que acreditava o Doutor Frankenstein, não é a eletricidade mas a bioquímica. Mesmo assim, os medos são os mesmos dos despertados pelo romance, escrito há quase 200 anos. O monstro pede uma companheira ao seu criador. O doutor se recusa, temendo gerar uma raça de monstros capaz de aniquilar os humanos. A moral é simples: há coisas além do alcance dos homens. Será esse o caso com a engenharia genética?

De jeito algum. Já consumimos animais e plantas clonadas. As enormes pressões que os oceanos e rios sofrem com o aumento acelerado da população mundial deveriam encorajar soluções científicas para a questão da fome. Alimentos GM não são um pesadelo, embora todas as precauções devam ser tomadas antes que um produto seja lançado no mercado. O problema, claro, é que nem sempre é possível prever o que pode ocorrer a longo prazo. Existe sempre um risco.

Peixes criados em cativeiro, transgênicos ou não, também consomem outros peixes. Talvez devêssemos comer outros tipos de peixe, como a vegetariana tilápia. (Ou virar vegetarianos.) De qualquer modo, os alimentos GM não irão desaparecer. Como toda descoberta científica, uma vez que a caixa é aberta, não pode ser mais fechada. O jeito é termos cuidado com nossas criações e não deixar que a sede de lucro das corporações tomem as decisões por nós.

domingo, 19 de setembro de 2010

Quão rara é a vida?



Estamos aqui não porque o Universo seja propício à existência, mas apesar de sua hostilidade a nós


NO DOMINGO PASSADO, escrevi sobre as recentes afirmações de Stephen Hawking. Para ele, a ciência demonstrou que Deus não é necessário para explicar a criação. Outro argumento que Hawking usou é que o Universo é especialmente propício à vida, em particular à vida humana. Mais uma vez vejo a necessidade de apresentar um ponto de vista contrário. Tudo o que sabemos sobre a evolução da vida na Terra aponta para a raridade dos seres vivos complexos. Estamos aqui não porque o Universo é propício à vida, mas apesar de sua hostilidade.

Note que, ao falarmos sobre vida, temos de distinguir entre vida primitiva (seres unicelulares) e vida complexa. Vida simples, bactérias de vários tipos e formas, deve mesmo ser abundante no Cosmos.

Na história da Terra -o único exemplo de vida que conhecemos-, os primeiros seres vivos surgiram tão logo foi possível. A Terra nasceu há 4,5 bilhões de anos e sua superfície se solidificou em torno de 3,9 bilhões de anos atrás. Os primeiros sinais de vida datam de pelo menos 3,5 bilhões de anos, e alguns cientistas acham que talvez possam ter 3,8 bilhões de anos. De qualquer modo, bastaram algumas centenas de milhões de anos de calma para a vida surgir. Não é muito em escalas de tempo planetárias.

Esses primeiros seres vivos, os procariontes, reinaram durante 2 bilhões de anos. Só então surgiram os eucariontes, também unicelulares, mas mais sofisticados. Os primeiros seres multicelulares (esponjas) só foram surgir em torno de 700 milhões de anos atrás.

Ou seja, por cerca de 3,5 bilhões de anos, só existiam seres unicelulares no nosso planeta. O que aprendemos com esses estudos é que a vida coevoluiu com a Terra. O oxigênio que existe hoje na atmosfera foi formado quando os procariontes descobriram a fotossíntese em torno de 2 bilhões de anos atrás. Estamos aqui porque oxigenaram o ar.

Devemos lembrar que seres multicelulares são mais frágeis, precisando de condições estáveis por longos períodos. Não é só ter água e a química correta. O planeta precisa ter uma órbita estável e temperaturas que não variem muito. Só temos as quatro estações e temperaturas estáveis porque nossa Lua é pesada.

Sua massa estabiliza a inclinação do eixo terrestre (a Terra é um pião inclinado de 23,5), permitindo a existência de água líquida durante longos períodos. Sem a Lua, a vida complexa seria muito difícil.

A Terra tem também dois "cobertores" que a protegem contra a radiação letal que vem do espaço: o seu campo magnético e a camada de ozônio. Viver perto de uma estrela não é moleza. Precisamos de seu calor, mas ele vem com muitas outras coisas nada favoráveis à vida.

Quem afirma que o Universo é propício à vida complexa deve dar uma passeada pelos outros planetas e luas do nosso Sistema Solar.

Ademais, o pulo para a vida multicelular inteligente também foi um acidente dos grandes. A vida não tem um plano que a leva à inteligência. A vida quer apenas estar bem adaptada ao seu ambiente. Os dinossauros existiram por 150 milhões de anos sem construir rádios ou aviões. Portanto, mesmo que exista vida fora da Terra, a vida inteligente será muito rara. Devemos celebrar nossa existência por sua raridade, e não por ser ordinária.

domingo, 12 de setembro de 2010

Hawking e Deus: relação íntima



É lamentável que físicos como Hawking divulguem teorias especulativas; ele está querendo ser Deus


Stephen Hawking, o famoso físico da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, está mais uma vez ocupando manchetes e blogs pelo mundo afora. A razão é a publicação de seu livro "O Grandioso Design" ("The Grand Design"), com Leonard Mlodinow, do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia).

A atenção é consequência da afirmação feita por Hawking de que a física resolveu a questão da origem do Universo e que, portanto, Deus não é necessário. Na verdade, isso não passa de mais uma batalha numa guerra um tanto longa e inútil.

Em seu bestseller "Uma Breve História do Tempo", publicado em 1988, Hawking escreveu: "Se o Universo é contido em si mesmo, sem borda ou fronteira, não teria começo ou fim: simplesmente seria. Neste caso, qual o lugar de um criador?"

Mais adiante: "Se descobrirmos uma teoria completa, filósofos, cientistas e o público leigo tomariam parte na discussão de por que o Universo e nós existimos. Se encontrarmos a resposta, seria o grande triunfo da razão humana, pois, então, conheceríamos a mente de Deus".

Hawking afirma que tem novos argumentos que colocam Deus para escanteio de vez. Será?

A ideia dele, que já circula de formas diferentes desde os anos 70, vem do casamento da relatividade e da mecânica quântica para explicar a origem do Universo, isto é, como tudo veio do nada.

Primeiro, usamos as propriedades atrativas da gravidade para mostrar que o cosmo é uma solução com energia zero (o "nada" de onde tudo vem) das equações que descrevem sua evolução.

Segundo, como na mecânica quântica (que descreve elétrons, átomos etc.) tudo flutua, o Universo pode ser resultado de uma flutuação de energia nula a partir de uma entidade que "contêm" todos os Universos possíveis, o multiverso.

Nosso Universo é o que tem as propriedades certas para existir por tempo suficiente -quase 14 bilhões de anos- para formar estrelas, planetas e também vida.

Em meu livro "Criação Imperfeita", publicado em março, argumento exatamente o oposto. Descrevo como afirmações que defendem a existência de uma "teoria de tudo" são incompatíveis com a física.

As teorias que Hawking e Mlodinow usam para basear seus argumentos -teorias-M, vindas das supercordas- têm tanta evidência empírica quanto Deus.

É lamentável que físicos como Hawking estejam divulgando teorias especulativas como quase concluídas. A euforia na mídia é compreensível: o homem quer ser Deus.

O desafio das teorias a que Hawking se refere é justamente estabelecer qualquer traço de evidência observacional, até agora inexistente. Não sabemos nem mesmo se essas teorias fazem sentido. Certas noções, como a existência de um multiverso, não parecem ser testáveis.

Ademais, a existência de uma teoria final é incompatível com o caráter empírico da física, baseado na coleta gradual de dados. Não vejo como poderemos ter certeza de que uma teoria final é mesmo final.
Como nos mostra a história da ciência, surpresas ocorrem a toda hora. Talvez esteja na hora de Hawking deixar Deus em paz.

Leitores interessados podem ver uma comparação entre meu livro e o de Hawking no blog do jornal "New York Times": http://ideas.blogs.nytimes.com/2010/09/07/not-so-grand-design/

domingo, 5 de setembro de 2010

Esponjas, homens e criacionismo





Cientistas às vezes têm de aceitar que não veem o filme inteiro. O desafio é destrinchar a história com o que temos


RECENTEMENTE, GENETICISTAS obtiveram um resultado notável: as esponjas (forma de vida multicelular mais antiga que conhecemos) podem ter entre 18 mil e 30 mil genes, números comparáveis aos dos humanos, das moscas e de incontáveis outras espécies.

Como as esponjas existem há pelo menos 500 milhões de anos, muitos pensam que elas formam o tronco da árvore da vida que leva aos animais. Não somos, portanto, apenas descendentes dos macacos. Nós e todas as outras espécies viemos das esponjas, primas dos objetos porosos que usamos no banho.

Estranho imaginar que seres tão simples sejam nossos ancestrais.

Afinal, esponjas não têm pele ou neurônios. No entanto, sabe-se que as esponjas têm genes responsáveis tanto pelas proteínas usadas na comunicação entre as células nervosas, por exemplo. Está tudo lá, numa espécie de hibernação genética.

A descoberta incita uma questão importante. De onde veio todo esse aparato genético das esponjas?

Se adotarmos uma postura reducionista para a evolução da vida, é natural supor que as primeiras formas de vida eram simples. Isto é, com um número reduzido de genes.

O pulo em complexidade de alguns genes para milhares não é trivial.
Criacionistas vão adorar. "Como essa complexidade foi atingida sem a intervenção de um engenheiro?"

Prevejo que argumentos criacionistas, como o baseado na existência implausível do olho, serão revisados para incluir a complexidade genética das esponjas, degraus abaixo na escada evolutiva.

Biólogos não terão dificuldade para rechaçar esse argumentação.

Não se pode usar dados necessariamente incompletos para se construir um argumento de caráter definitivo.

O processo de investigação científica é cumulativo. Darwin foi atacado pelos "elos perdidos" no registro de fósseis. Seus críticos queriam uma progressão continua das formas de vida, feito num filme, sem os pulos que necessariamente existem.
Esse tipo de continuidade é impossível por ao menos duas razões.

Primeiro, é inocente querer que os fósseis de todas as espécies que existiram no passado tenham sido preservados até o presente. Alguns são destruídos e outros não se fossilizaram. Mesmo que todos tivessem sido fossilizados, achá-los seria impossível, já que jazem espalhados pelas entranhas da Terra.

Segundo, devemos considerar a hipótese do equilíbrio pontuado de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould, segundo a qual a evolução da vida não pode ser separada da dramática história da Terra.

Cataclismos globais, como a queda de um asteroide ou grandes erupções vulcânicas, redefiniram a evolução da vida. É de se esperar que existam descontinuidades. Achar que a complexidade das esponjas é evidência de algum criador é como pegar um filme na metade e não admitir que metade já passou.

Como não têm esqueleto, as esponjas não se fossilizam. É plausível que tenhamos perdido muito do filme. Outras formas de vida, com genética mais simples, talvez protoesponjas, devem ter existido. Como em arqueologia ou em cosmologia, temos de aceitar que nunca veremos o filme inteiro. O desafio é destrinchar a história com as partes que conseguimos ver. A beleza da ciência é que podemos fazer isso.