domingo, 27 de fevereiro de 2000

Buscando a liberdade no interior do núcleo

O núcleo atômico, essa concentração de massa com diâmetro da ordem de um milésimo de bilionésimo de centímetro, tem uma personalidade bastante ambivalente na sociedade moderna. Por um lado, a energia liberada nos processos de fissão nuclear vem contribuindo cada vez mais na produção mundial de energia; avanços na medicina nuclear são extremamente importantes na luta contra várias formas de câncer. Por outro lado, o lixo nuclear, materiais radioativos altamente tóxicos produzidos tanto durante a geração de energia quanto no uso em medicina, apresenta um sério problema ambiental. Isso sem falar no lado realmente pesado do uso do núcleo atômico, nas bombas de fissão e de fusão (bomba "H") nuclear. Com toda essa carga emocional, minha escolha de título para essa Micro/Macro deve parecer paradoxal. Afinal, como que liberdade pode coabitar com física nuclear? Em contrapartida, há quem defenda a posição de que a paz mundial se deve a existência de bombas nucleares.

Para responder a essa pergunta, devemos nos esquecer, por algumas linhas, das repercussões mais nefastas da energia nuclear e nos concentrarmos na belíssima física nuclear moderna. Antes de mais nada, uma breve revisão: o núcleo atômico é composto de prótons e nêutrons, os prótons com carga elétrica positiva e os nêutrons...adivinhe! Imediatamente, surge uma questão óbvia. Se os prótons tem carga positiva e cargas iguais se repelem, o que mantém o núcleo colado? Existe uma outra força no núcleo, a força nuclear forte, que é em torno de 100 vezes mais forte do que a repulsão elétrica. Essa força "gruda" os prótons e nêutrons juntos e só age dentro de distâncias nucleares. Isso já sabíamos desde a década de 30. Já nos anos 60, descobriu-se que os prótons e nêutrons, e centenas de outras partículas observadas em experimentos de altas energias, são feitos de uma outra partícula, o quark. Na verdade, existem seis quarks, conforme descobrimos nos anos 90.

Os quarks são partículas muito tímidas. Sua propriedade mais misteriosa é chamada de confinamento: não podemos observar um quark livre, como observamos um elétron ou um próton. Quarks sempre aparecem em pares ou triplas. Se tentarmos separar um par de quarks de forma a isolar um deles, acabamos criando dois pares! O mesmo acontece com ímãs; se você tentar "isolar" um polo magnético quebrando o ímã, você acaba com dois ímãs. A imagem que usamos para representar tal fenômeno é a de um par de quarks ligados por uma mola.

Se expandirmos a mola até ela quebrar, a energia usada cria um novo par de quarks, e ficamos com duas molas e dois pares de quarks na mão; como dizia Einstein, E=mc2, a energia pode criar matéria. Mas nem tudo está perdido.

A mesma teoria que descreve quarks descreve como eles interagem entre si, também por meio de uma força forte. Eles trocam partículas chamadas glúons, que mantém os quarks unidos nos prótons, nêutrons, etc. Essa teoria prevê que a timidez dos quarks desaparece a distâncias bem íntimas. Ou seja, a distâncias muito pequenas e energias muito altas, os quarks se comportam como partículas livres, num processo chamado de liberdade assintótica. Essas distâncias só podem ser atingidas de dois modos: a frações de segundo após o Big-Bang, a fase de altíssimas temperatura e densidade que marca o início da historia do universo, ou em colisões entre núcleos atômicos a altíssimas energias. Nessas condições dramáticas, as partículas que contém os quarks e os glúons sofrem uma metamorfose, transformando-se em uma sopa de quarks e glúons, ou um plasma de quark-glúons, como ovos mutantes que se quebram revelando suas duas ou três gemas (os quarks) e a clara em torno delas (os glúons).

No início de fevereiro, um time com mais de 600 físicos no Cern, laboratório europeu de física de altas energias, declarou ter identificado a presença do plasma de quark-glúons em colisões de núcleos de chumbo e ouro. Para tal, as colisões criaram temperaturas 100 mil vezes maiores que no centro do Sol, que ocorreram quando o Universo tinha menos de um milésimo de segundo de existência. Certos tipos de timidez são extremamente persistentes.

domingo, 20 de fevereiro de 2000

Mapeando a Terra do céu

Os proprietários de terra egípcios anualmente enfrentavam um sério problema: as cheias do Nilo submergiam as demarcações das terras, causando muita briga e confusão: os coletores de impostos do faraó não sabiam o que cobrar de quem. Como a necessidade é a melhor escola, o uso de mapas passou a ser extremamente importante para o governo. Mas o desenvolvimento de mapas não foi apenas causado por interesses econômicos. Mapas antigos revelavam toda a visão de mundo da cultura que os produziu, toda a cosmologia da época. Mapas tentavam encapsular não só o reconhecimento geográfico da Terra, mas seu lugar nos céus.

No século 3 a.C., Eratóstenes de Cirena mediu pela primeira vez a circunferência da Terra. Juntamente com o grande astrônomo grego Hiparco, Eratóstenes desenvolveu a linguagem da cartografia em termos do globo terrestre e do sistema de latitude e longitude, usada até hoje.
Depois de um intervalo de 15 séculos durante a Idade Média, a cartografia passou por um período de grande renovação com a expansão das viagens exploratórias dos portugueses e espanhóis. O desenvolvimento da cartografia aliava interesses econômicos aos de sobrevivência das tripulações dos navios, assim como estratégias bélicas: para conquistar o território do inimigo ou para explorar as riquezas de uma colônia, nada mais básico do que conhecer seus detalhes geográficos.

Passados 500 anos, nós entramos em uma nova fase de cartografia terrestre. Com a ajuda do ônibus espacial Endeavour, cientistas da Nasa, a agência espacial dos EUA, deverão criar um mapa praticamente completo da superfície terrestre, não só em latitude e longitude, mas também em altitude, isto é, um mapa tridimensional de nosso planeta.

A resolução do mapa será de 30 metros, contra a resolução dos mapas atuais, que é de 90 metros, e a precisão das medidas de altitude será entre 6 metros e 18 metros.

A quantidade absurda de dados gerada pelos radares da Endeavour encherá o equivalente a 13.500 CDs. A missão reflete uma tendência cada vez maior na pesquisa de ponta, que é a criação de colaborações internacionais, no caso com as agências espaciais italiana e alemã.
Claro, esse tipo de empreendimento não foge à regra geral dos mapas do século 16: existem interesses econômicos e militares em jogo, se bem que a propaganda vai para o lado dos benefícios que o novo mapa trará para a sociedade. Por exemplo, os dados sobre as variações em altitude ajudarão os estudos sobre erosão em diversos terrenos, terremotos, enchentes, vulcões e mudanças climáticas. Os mapas ajudarão também na manutenção das florestas e na identificação de áreas propícias à implantação de antenas e outros dispositivos usados em telecomunicação. É curioso: hoje nós temos mapas topográficos mais precisos das superfícies de Vênus e de Marte do que da Terra.

Um dos maiores interessados no projeto é o Departamento de Defesa Norte-Americano, que entrou com US$ 200 milhões no financiamento. Detalhes da ordem de 30 metros são suficientes para localizar fábricas e depósitos clandestinos de armamentos, sejam eles nucleares ou bioquímicos.

Com isso, apenas dados com resolução de 90 metros serão liberados ao público em geral. Acesso a dados com maior precisão tem de ser autorizado individualmente. Imagino que o Departamento de Defesa também esteja planejando usar os dados não só para defender, mas para atacar; caso uma fábrica clandestina de enriquecimento de materiais nucleares seja encontrada, seria fácil destruí-la remotamente, usando mísseis balísticos. Com o final da Guerra Fria, o inimigo tornou-se invisível, um grupo terrorista isolado, em vez de uma nação.

Para produzir esse mapa, o ônibus espacial usará duas antenas, uma na nave e outra na extremidade de um mastro de 60 metros, o maior já usado no espaço. As duas antenas captarão as ondas emitidas pela nave, após elas serem refletidas pela superfície da Terra. A pequena diferença de distância entre as antenas gerará dois mapas que, quando comparados, produzirão informação sobre a altitude. Do céu, nada se esconde.

domingo, 13 de fevereiro de 2000

O preço da imortalidade

Começo hoje fazendo uma pergunta ao leitor: se fosse possível, você viveria para sempre? Certamente, as respostas seriam variadíssimas: de "claro!" até "Deus me livre! E as pessoas à minha volta, como eu poderia suportar a morte delas?", ou, de alguém mais religioso, "serei imortal após minha morte e pretendo esperar até lá". O sonho de prolongar a vida, indefinidamente ou por um longo período, é tão antigo quanto a história da humanidade.

Até recentemente, a solução era província das religiões, que prometem uma vida eterna no paraíso (ou no inferno!) ou um retorno ao mundo como outra pessoa ou animal, dependendo de suas atividades durante a vida anterior. Além disso, temos mitos de existências sobrenaturais derivados da religião, como no caso dos vampiros, que, para viver eternamente, precisam sugar o sangue dos vivos, tornando-se tanto predadores como presas de seu destino inglório. Mas confesso que o vampirismo tem seu toque de romantismo, pelo menos na versão hollywoodiana do mito.

E se as pesquisas em biogenética desenvolvessem técnicas que, em princípio, fossem capazes de prolongar a vida, não só curando vários tipos de doenças, mas efetivamente congelando o envelhecimento do corpo humano? Parece ficção científica, mas não é. Laboratórios nos EUA e em outros países tentam isolar uma célula que tem um papel crucial no desenvolvimento dos embriões humanos, a célula-tronco. Essa célula fantástica tem o potencial de se transformar em qualquer célula do corpo humano, formando tecidos ou órgãos. Ou seja, ela carrega a informação genética que pode gerar um determinado tipo de músculo ou a pele, um rim ou um fígado, uma verdadeira fábrica de materiais de construção de seres humanos.

Claro, existem várias dificuldades técnicas, sem falar nas dificuldades éticas. Primeiro, para isolar a célula-tronco, um embrião humano tem de ser destruído, de acordo com as tecnologias atuais. A questão é, então, se a destruição de uma massa de células humanas, alguns dias após a fertilização, corresponde a um assassinato. O Congresso norte-americano, preocupado com as repercussões dessas pesquisas, proibiu entidades governamentais de financiar experiências com embriões humanos. Como resultado, o setor privado, isto é, indústrias biogenéticas com fins lucrativos, está controlando a pesquisa na área. E essas indústrias não vão revelar suas descobertas (e fracassos) ao público enquanto não obtiverem o resultado que procuram.
Após isolar a célula-tronco, a idéia é descobrir qual o mecanismo bioquímico que a induz em uma determinada direção, transformando-a em um coração, cérebro ou músculo. Se esse mesmo mecanismo for descoberto, será possível que uma pessoa doe uma amostra de seu material genético a uma empresa, que poderá então clonar qualquer órgão que essa pessoa venha a precisar no futuro. O problema com a incompatibilidade em transplantes desaparece, pois esses órgãos são essencialmente você. As pesquisas no momento usam óvulos extraídos de vacas como invólucro do DNA humano; os técnicos retiram o DNA do óvulo (ninguém quer um feto que "diz" muuu...) e injetam células humanas que são então fundidas com as da vaca por meio de correntes elétricas. A esperança é que esse processo irá induzir a divisão das células, formando um embrião que trará consigo as células-tronco.

As indústrias biogenéticas argumentam que as vantagens desse processo são muito maiores que as repercussões éticas. "O que é mais importante? A "vida" de uma massa embrionária ou de uma criança morrendo de câncer?" ou "imagine quantas espécies em extinção poderemos salvar?". Críticos afirmam que os perigos são enormes. Por exemplo, "o que acontece com uma pessoa que tem parte do cérebro regenerada? Será que ela manterá sua identidade? E como iremos sustentar tanta gente no mundo?". Isso tudo ainda está longe; mas o debate público tem de ser iniciado agora, para que a sociedade não seja a última a saber o que acontecerá com seu destino.

domingo, 6 de fevereiro de 2000

A escura e estranha matéria do Universo

Do nosso ponto de vista terrestre, humilde e limitado, o Universo é simples, alguns milhares de estrelas que vemos em noites bem claras, um planeta ou outro, às vezes um cometa ou estrela cadente. Mas claro, o que nós vemos a olho nu é pouco, muito pouco do que realmente está lá fora. Daí que inventamos novos "olhos", instrumentos capazes de ver além do curto alcance da nossa visão ou mesmo capazes de medir radiações invisíveis aos olhos, como os raios X, ultravioleta, infravermelho e ondas de rádio.

A imagem que emerge da combinação de todas essas observações é a de um Universo de dimensões absolutamente inconcebíveis, de um Universo dinâmico, em expansão, povoado por inúmeros objetos também sempre em transformação. O astrônomo extragalático, ou seja, que faz observações além da nossa galáxia, tem, hoje, dois grandes desafios: estudar como as galáxias estão distribuídas no cosmos e qual a sua composição material. Aparentemente, as respostas mais óbvias a essas duas perguntas estão longe de corresponder à realidade: a composição material das galáxias não se limita a estrelas e nuvens de gás interestelar, mas é dominada por um outro tipo de matéria, a chamada matéria escura, que não emite luz por si própria. Observações indicam que mais de 90% da massa total de uma galáxia não está em estrelas ou gases, mas nessa matéria escura, cuja composição permanece até hoje misteriosa. Assim, surge uma questão: qual é a distribuição dessa matéria escura nas galáxias? Ela está concentrada no centro, espalhada junto com a matéria visível (estrelas etc.), ou se alastrando além das estrelas?

E a distribuição das galáxias no Universo? A expectativa seria que as galáxias fossem como grãos de areia espalhados aleatoriamente sobre uma mesa, sem uma geometria especial. Mas o que vemos é o oposto, um Universo filamentoso, onde vastas estruturas materiais, contendo milhares de galáxias, criam uma espécie de rede luminosa, cercando volumes onde praticamente não encontramos nada; um Universo com uma geometria semelhante ao que vemos em espumas de sabão em banhos de banheira.
A grande força escultora dessa obra cósmica é a gravidade. E, segundo as observações mais recentes, esses dois aspectos do Universo, sua composição material e sua estrutura geométrica, estão profundamente interligados. Vários astrônomos acreditavam que havia dois "tipos" de matéria escura: uma que atuava em cada galáxia e outra que se espalhava pelo Universo afora. Mas até que ponto a matéria escura se alastra além do que observamos no visível? A imagem é um pouco como uma ilha no oceano: nós vemos a ilha, mas sabemos que ela se estende além de sua parte visível, até "desaparecer" no fundo do oceano. A questão é até onde a ilha se estende.

Como medir algo invisível? O único jeito é explorar o efeito gravitacional da matéria escura. Isso está sendo feito agora por dois grupos que exploram métodos diferentes. Ambos usam o fato de que galáxias podem funcionar como lentes, distorcendo a luz que vem de galáxias mais distantes. Sabemos que, ao colocar uma lente de aumento entre nosso olho e um objeto, alteramos a imagem do objeto. Essa alteração ocorre de dois modos, deformando a imagem e amplificando (ou suprimindo) sua luminosidade. Essas são as técnicas de cada grupo: um estuda a alteração na imagem de galáxias distantes devido a galáxias mais próximas, enquanto o outro estuda as mudanças no seu brilho.

Ambos os grupos argumentam que o véu escuro das galáxias se estende muito além de sua parte visível. Um afirma que ele se estende no mínimo por 1,5 milhões de anos-luz, enquanto o outro diz que essa distância pode chegar a 15 milhões de anos-luz. A Via Láctea tem diâmetro de 100 mil anos-luz e Andrômeda, nossa galáxia vizinha, está a 2 milhões de anos-luz. Ou seja, se essas observações forem confirmadas, podemos visualizar o Universo como um vasto oceano de matéria escura, com as galáxias sendo pequenos recifes feitos de estrelas.