domingo, 20 de fevereiro de 2000

Mapeando a Terra do céu

Os proprietários de terra egípcios anualmente enfrentavam um sério problema: as cheias do Nilo submergiam as demarcações das terras, causando muita briga e confusão: os coletores de impostos do faraó não sabiam o que cobrar de quem. Como a necessidade é a melhor escola, o uso de mapas passou a ser extremamente importante para o governo. Mas o desenvolvimento de mapas não foi apenas causado por interesses econômicos. Mapas antigos revelavam toda a visão de mundo da cultura que os produziu, toda a cosmologia da época. Mapas tentavam encapsular não só o reconhecimento geográfico da Terra, mas seu lugar nos céus.

No século 3 a.C., Eratóstenes de Cirena mediu pela primeira vez a circunferência da Terra. Juntamente com o grande astrônomo grego Hiparco, Eratóstenes desenvolveu a linguagem da cartografia em termos do globo terrestre e do sistema de latitude e longitude, usada até hoje.
Depois de um intervalo de 15 séculos durante a Idade Média, a cartografia passou por um período de grande renovação com a expansão das viagens exploratórias dos portugueses e espanhóis. O desenvolvimento da cartografia aliava interesses econômicos aos de sobrevivência das tripulações dos navios, assim como estratégias bélicas: para conquistar o território do inimigo ou para explorar as riquezas de uma colônia, nada mais básico do que conhecer seus detalhes geográficos.

Passados 500 anos, nós entramos em uma nova fase de cartografia terrestre. Com a ajuda do ônibus espacial Endeavour, cientistas da Nasa, a agência espacial dos EUA, deverão criar um mapa praticamente completo da superfície terrestre, não só em latitude e longitude, mas também em altitude, isto é, um mapa tridimensional de nosso planeta.

A resolução do mapa será de 30 metros, contra a resolução dos mapas atuais, que é de 90 metros, e a precisão das medidas de altitude será entre 6 metros e 18 metros.

A quantidade absurda de dados gerada pelos radares da Endeavour encherá o equivalente a 13.500 CDs. A missão reflete uma tendência cada vez maior na pesquisa de ponta, que é a criação de colaborações internacionais, no caso com as agências espaciais italiana e alemã.
Claro, esse tipo de empreendimento não foge à regra geral dos mapas do século 16: existem interesses econômicos e militares em jogo, se bem que a propaganda vai para o lado dos benefícios que o novo mapa trará para a sociedade. Por exemplo, os dados sobre as variações em altitude ajudarão os estudos sobre erosão em diversos terrenos, terremotos, enchentes, vulcões e mudanças climáticas. Os mapas ajudarão também na manutenção das florestas e na identificação de áreas propícias à implantação de antenas e outros dispositivos usados em telecomunicação. É curioso: hoje nós temos mapas topográficos mais precisos das superfícies de Vênus e de Marte do que da Terra.

Um dos maiores interessados no projeto é o Departamento de Defesa Norte-Americano, que entrou com US$ 200 milhões no financiamento. Detalhes da ordem de 30 metros são suficientes para localizar fábricas e depósitos clandestinos de armamentos, sejam eles nucleares ou bioquímicos.

Com isso, apenas dados com resolução de 90 metros serão liberados ao público em geral. Acesso a dados com maior precisão tem de ser autorizado individualmente. Imagino que o Departamento de Defesa também esteja planejando usar os dados não só para defender, mas para atacar; caso uma fábrica clandestina de enriquecimento de materiais nucleares seja encontrada, seria fácil destruí-la remotamente, usando mísseis balísticos. Com o final da Guerra Fria, o inimigo tornou-se invisível, um grupo terrorista isolado, em vez de uma nação.

Para produzir esse mapa, o ônibus espacial usará duas antenas, uma na nave e outra na extremidade de um mastro de 60 metros, o maior já usado no espaço. As duas antenas captarão as ondas emitidas pela nave, após elas serem refletidas pela superfície da Terra. A pequena diferença de distância entre as antenas gerará dois mapas que, quando comparados, produzirão informação sobre a altitude. Do céu, nada se esconde.

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