domingo, 30 de janeiro de 2005

Espécies guerreiras

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Quando pensamos em guerra, imaginamos logo seres humanos, em geral homens, se matando do modo mais eficaz possível. Não percebemos que animais também guerreiam, principalmente em conflitos entre grupos organizados. É verdade que formigas muitas vezes entram em combate. Mas são os chimpanzés, nossos primos mais próximos, e os lobos, que têm a tendência de se organizar em grupos de machos, em geral aparentados, para defender seu território e matar inimigos.


A violência é produto de sociedades com desequilíbrio de poder. Quando dois grupos se respeitam, raramente entram em conflito


Segundo Richard Wrangham, professor de antropologia biológica da Universidade Harvard, o estudo das atividades guerreiras de chimpanzés e lobos tem muito a dizer sobre as nossas. Grupos vizinhos de chimpanzés defendem seus territórios ativamente, patrulhando fronteiras e, às vezes, invadindo território alheio à procura de comida. Assim que avistam seus inimigos, a gritaria começa. Se um deles cair nas mãos de adversários, será morto ou ferido gravemente. O mesmo ocorre com certas sociedades primitivas, como os danis da Nova Guiné: 28% dos homens são mortos em combate. O resultado é a criação de "zonas de guerra", áreas que delimitam as fronteiras. Essas áreas, por serem perigosas, são também as menos exploradas e, portanto, com maior abundância de comida. No caso de lobos, as zonas de guerra são onde veados e outras presas são encontradas em maior número. Para os chimpanzés, são onde há frutas. A região de desmilitarização entre a Coréia do Norte e a do Sul é onde se encontra o maior número de espécies raras ou em extinção no resto da península.

A teoria da evolução explica as vantagens desse impulso combativo: o grupo que mata com mais eficiência em breve obtém uma vantagem no número de guerreiros. Os inimigos, com sua linha de defesa diminuída, não poderão oferecer resistência a futuros ataques. Acabarão por perder o controle sobre terras e recursos. O grupo vencedor aumenta de tamanho, tornando-se cada vez mais forte. A conclusão sombria desse argumento é que, em situações onde existe uma competição por recursos, é vantajoso matar o maior número possível de inimigos, contanto que a atividade seja feita sem grande risco para os agressores. Como escreveu Wrangham, "quando matar for barato, mate".

Segundo essa pesquisa, devido à distribuição de territórios com recursos desiguais e nem sempre rapidamente renováveis, o processo de seleção natural favoreceu nos cérebros de humanos, chimpanzés e lobos a tendência de usar toda oportunidade disponível para matar seus rivais. Os últimos 5.000 anos de história parecem confirmar essa tendência, mesmo que os humanos, com funções cognitivas mais avançadas, justifiquem suas guerras com argumentos diferentes, como vingança, ritos de iniciação de jovens guerreiros, ou como forma de satisfazer a vontade dos deuses.

Esses resultados não implicam que nossa agressividade seja inevitável, que estamos condenados a nos matar. Eles mostram que a violência é produto de sociedades com um desequilíbrio de poder entre grupos vizinhos. Quando dois grupos se respeitam, raramente entram em conflito mortal. Basta ver o exemplo da Guerra Fria. Infelizmente, temos a tendência de identificar inimigos, criar fronteiras entre grupos e explorar a fraqueza dos vizinhos. Reconhecer nossa natureza é o primeiro passo para mudá-la.

domingo, 16 de janeiro de 2005

Buracos negros em miniatura

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Nenhum objeto na natureza, ao menos no mundo abiótico, é tão misterioso quanto um buraco negro. (Faço a distinção porque, sem dúvida, entre os seres vivos existem várias coisas um tanto estranhas.) Buracos negros são objetos cuja atração gravitacional é tão violenta que nada, nem a luz, pode escapar deles. Daí o nome.

A nossa galáxia, a Via Láctea, tem um em seu centro com massa comparável a 300 milhões de sóis. Mas nem todo buraco negro tem de ser gigante. Eles podem aparecer também em miniatura, menores do que átomos.

Alguns físicos acreditam que eles possam até ser criados no laboratório, em colisões envolvendo partículas subatômicas viajando a velocidades próximas da da luz. Isso teria uma série de vantagens, já que poderíamos estudar suas misteriosas propriedades sem ter de recorrer ao auxílio de telescópios ou a viagens espaciais.

Todo objeto com massa exerce uma atração gravitacional sobre outro. A intensidade dessa atração é proporcional à massa do objeto: mais massa, mais atração. Mas ela também é inversamente proporcional ao quadrado do raio do objeto. Imagine, portanto, uma bola de aço com um metro de raio.

Se encolhermos a bola mantendo sua massa constante (como quando amassamos uma bola de papel) de forma que seu raio chegue a um centímetro, a sua atração gravitacional aumentará 10 mil vezes. Se o raio continuar encolhendo até atingir o chamado raio de Schwarzschild (em homenagem ao físico Karl Schwarzschild, um dos primeiros a trabalhar com a teoria da relatividade enquanto servia na 1ª Guerra), a bola de aço se tornará um buraco negro. Esse raio, para uma massa de uma tonelada, terá um bilionésimo do raio de um núcleo atômico! Você também, leitor, pode ser encolhido até se tornar um buraco negro de dimensões subatômicas.
O problema com o processo acima é que a compressão de objetos macroscópicos a dimensões subnucleares utiliza quantidades absurdas de energia. Portanto, caso queiramos estudar buracos negros em miniatura, teremos de criar novas possibilidades.

Recentemente, físicos de partículas propuseram uma idéia audaciosa, que poderá abrir as portas para a criação de mini-buracos negros. Pouco sabemos sobre a força da gravidade em dimensões subatômicas. Medidas de sua intensidade são limitadas pela sua fraqueza: quanto menor a massa do objeto, mais fraca a força. Atualmente, podemos afirmar apenas que a força obedece à fórmula normal até distâncias que atingem a ordem de um centésimo de milímetro.
O que foi proposto é que vivemos em um espaço com mais de três dimensões, muito pequenas para serem vistas a olho nu. Elas modificam a força da gravidade. Uma das conseqüências é que, dependendo da extensão dessas dimensões, mini-buracos negros podem ser produzidos durante colisões entre partículas subatômicas. Isso porque as dimensões extra não só diminuem a massa do buraco negro como aumentam o seu raio

Portanto, se duas ou mais partículas tiverem energia suficiente e colidirem em uma região menor do que o raio de Schwarzschild, um mini-buraco negro poderá ser produzido. Não só se criará um objeto que testa os limites da força gravitacional mas também ganhar-se-á informação sobre a existência (ou não) de dimensões extra. Especulação? Pode ser. Mas sem ela a criatividade não vai avante.

domingo, 9 de janeiro de 2005

O ano da física e a ascensão do obscurantismo MARCELO

GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O ano de 2005 foi decretado Ano Internacional da Física. Pelos físicos, claro. Organizações profissionais do mundo inteiro estarão promovendo conferências, palestras, eventos comemorativos, celebrando a ciência que, juntamente com a química e a biologia, forma o arcabouço da descrição racional do mundo natural.


É preciso combater o obscurantismo com a luz da ciência e da razão


A ocasião marca o centenário do ano em que Einstein, com 26 anos, publicou três artigos que revolucionaram a física: um contendo a teoria da relatividade especial, que reformulou a concepção clássica de espaço e tempo; outro descrevendo o movimento browniano, em que partículas em uma suspensão líquida como grãos de pólen em água ziguezagueiam aleatoriamente; o terceiro explicando o efeito fotoelétrico, postulando que a luz, até então considerada como uma onda, pode, também, ser descrita como partícula.

Cada um desses artigos traria fama ao autor. O fato de Einstein ter escrito os três em um ano é único na história da ciência. Apenas Isaac Newton teve ano semelhante, quando plantou as sementes de suas três leis do movimento e da gravitação.

A celebração é necessária. Apesar da influência crescente da física e da ciência em geral na vida do cidadão, o nível de conhecimento científico está diminuindo a cada ano. Existe um fascínio com as aplicações tecnológicas da ciência, especialmente com objetos de consumo, DVDs, telefones celulares, TVs digitais de alta definição, jogos eletrônicos cada vez mais realistas. Mas a base científica desses objetos fica esquecida em meio à euforia do "quero ter". Não seria realista esperar que cada usuário de DVD soubesse como opera um laser ou o que é um processador.

Mas tratar o objeto como uma caixa preta, um dispositivo cujo funcionamento é um mistério intransponível, tem conseqüências sociais mais sérias do que possa parecer.
A separação entre a tecnologia e o consumidor leva a uma negação da ciência, a um esquecimento do conhecimento. Essa distância entre o uso da tecnologia e a compreensão de seu funcionamento é um fenômeno relativamente moderno.

Quanto mais complexas as máquinas, maior o conhecimento necessário para construí-las e consertá-las. Se voltarmos ao século 18, onde a principal fonte de energia era hidráulica (moinhos d'água) e gravitacional (silos e plataformas), as coisas eram mais simples. Mas qualquer um que já abriu um computador sabe que o labirinto de milhões de capacitores, resistores, transistores, parece algo vindo de outro mundo.

Será coincidência que o abismo crescente entre a complexidade da ciência e sua compreensão pelo público ocorre lado a lado com o aumento óbvio de uma religiosidade rígida e intolerante tanto no Brasil como nos EUA? A reeleição de George Bush e seu controle do Senado pôs a direita cristã no poder pela primeira vez na história dos EUA.
É comum ouvir dizer por aqui que estamos vivendo em uma teocracia. O mesmo que se fala do Irã, por exemplo.

Igrejas evangélicas surgem por todo lado, o criacionismo, que nega a evolução pela seleção natural, ganha força nos dois países. A imposição de valores religiosos vira agenda política, comprometendo a separação Igreja-Estado e a liberdade de escolha do cidadão. Obscurantismo gera obscurantismo. Enquanto isso, a Europa, muito mais secular e educada cientificamente, olha incrédula para as Américas. Einstein ficaria horrorizado com o que está ocorrendo.
O Ano Internacional da Física vem na hora certa. É preciso, com urgência, combater o obscurantismo na sociedade com a única luz que pode brilhar universalmente em todas as casas, a luz da ciência e da razão.

domingo, 2 de janeiro de 2005

O desafio criacionista

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

No ano passado, um físico colega meu, Lawrence Krauss, visitou minha universidade. Krauss é um conhecido popularizador de ciência, autor de livros como "A Física de Jornada nas Estrelas". Saímos para almoçar e a conversa caiu no tema do criacionismo. Krauss foi categórico: "Só o ato de debater com criacionistas lhes dá uma credibilidade que não merecem". Eu discordei. "Larry, acho que essa atitude radical só piora as coisas. Se cientistas, sempre prontos a debater entre si, não se dignarem a ir a público para expor as limitações do criacionismo, como iremos vencer?" "Perda de tempo", replicou. "Eles não estão dispostos a ouvir. É pregar para surdos."

"É verdade que existe uma minoria radical que não vai mesmo mudar de idéia", respondi. "Mas a maioria das pessoas é razoável. Se argumentos claros forem apresentados, acho que irão ouvir sim. Ninguém quer ser chamado de burro ou se sentir roubado de sua fé.

Invocar Deus para preencher lacunas em nosso conhecimento não avança o saber

Porque é isso, percebe? As pessoas acham que, quanto mais a ciência avança, menos justificativa têm para acreditar em Deus. E isso é algo que poucos podem suportar."

Em 2004, o criacionismo explodiu no Brasil. Vertentes já existiam. Mas a decisão de Rosinha Garotinho, governadora do Rio de Janeiro, de impor o ensino do criacionismo na rede pública, teve uma ressonância enorme na mídia. Uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da revista "Época", publicada no último dia 3, soou o alarme: 31% dos brasileiros acreditam que Deus criou o ser humano como somos hoje nos últimos 10 mil anos (nos EUA o número é assombroso: 55%); 54% acreditam que o ser humano vem se desenvolvendo ao longo de milhões de anos, mas sob a direção e intervenção de Deus; e 75% crêem que o criacionismo deve substituir a evolução no currículo escolar!

Os números refletem, de forma trágica, o estado da educação científica no Brasil. Mas o que é mais relevante é que pessoas educadas também simpatizam com as idéias criacionistas. A governadora é um exemplo, mas existem muitas outras. (Espero que a decisão dela não tenha sido apenas política, querendo se aproveitar de um eleitorado evangélico crescente.)

Neste curto espaço não posso entrar em muitos detalhes. Talvez o faça aos poucos, retornando ao tema. O argumento-chave do criacionismo e do design inteligente é que a evolução não pode ser definitivamente provada com os dados que existem, os fósseis de espécies extintas. Segundo a teoria, os indivíduos de uma população têm variações genéticas. Essas raras mutações ocorrem por acaso. A complexidade observada nas espécies é produto da seleção natural, que favorece as variações mais bem adaptadas ao ambiente. Os criacionistas dizem que existem buracos demais, que a complexidade do ser humano não pode ser explicada apenas por mutações e seleção natural. Somos, segundo eles, produto de um criador, que tinha planos bem claros.

O design inteligente vai contra a premissa fundamental da ciência, a sua objetividade através da validação empírica. Cientistas propõem teorias. Essas teorias são passíveis de verificação. A genética provou a origem comum do gene. Jamais teremos todas as respostas, mas temos muitas. E cada vez mais. Invocar Deus para preencher lacunas em nosso conhecimento não avança o saber. É preciso ter coragem para aceitar nossas limitações.