domingo, 9 de janeiro de 2005

O ano da física e a ascensão do obscurantismo MARCELO

GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O ano de 2005 foi decretado Ano Internacional da Física. Pelos físicos, claro. Organizações profissionais do mundo inteiro estarão promovendo conferências, palestras, eventos comemorativos, celebrando a ciência que, juntamente com a química e a biologia, forma o arcabouço da descrição racional do mundo natural.


É preciso combater o obscurantismo com a luz da ciência e da razão


A ocasião marca o centenário do ano em que Einstein, com 26 anos, publicou três artigos que revolucionaram a física: um contendo a teoria da relatividade especial, que reformulou a concepção clássica de espaço e tempo; outro descrevendo o movimento browniano, em que partículas em uma suspensão líquida como grãos de pólen em água ziguezagueiam aleatoriamente; o terceiro explicando o efeito fotoelétrico, postulando que a luz, até então considerada como uma onda, pode, também, ser descrita como partícula.

Cada um desses artigos traria fama ao autor. O fato de Einstein ter escrito os três em um ano é único na história da ciência. Apenas Isaac Newton teve ano semelhante, quando plantou as sementes de suas três leis do movimento e da gravitação.

A celebração é necessária. Apesar da influência crescente da física e da ciência em geral na vida do cidadão, o nível de conhecimento científico está diminuindo a cada ano. Existe um fascínio com as aplicações tecnológicas da ciência, especialmente com objetos de consumo, DVDs, telefones celulares, TVs digitais de alta definição, jogos eletrônicos cada vez mais realistas. Mas a base científica desses objetos fica esquecida em meio à euforia do "quero ter". Não seria realista esperar que cada usuário de DVD soubesse como opera um laser ou o que é um processador.

Mas tratar o objeto como uma caixa preta, um dispositivo cujo funcionamento é um mistério intransponível, tem conseqüências sociais mais sérias do que possa parecer.
A separação entre a tecnologia e o consumidor leva a uma negação da ciência, a um esquecimento do conhecimento. Essa distância entre o uso da tecnologia e a compreensão de seu funcionamento é um fenômeno relativamente moderno.

Quanto mais complexas as máquinas, maior o conhecimento necessário para construí-las e consertá-las. Se voltarmos ao século 18, onde a principal fonte de energia era hidráulica (moinhos d'água) e gravitacional (silos e plataformas), as coisas eram mais simples. Mas qualquer um que já abriu um computador sabe que o labirinto de milhões de capacitores, resistores, transistores, parece algo vindo de outro mundo.

Será coincidência que o abismo crescente entre a complexidade da ciência e sua compreensão pelo público ocorre lado a lado com o aumento óbvio de uma religiosidade rígida e intolerante tanto no Brasil como nos EUA? A reeleição de George Bush e seu controle do Senado pôs a direita cristã no poder pela primeira vez na história dos EUA.
É comum ouvir dizer por aqui que estamos vivendo em uma teocracia. O mesmo que se fala do Irã, por exemplo.

Igrejas evangélicas surgem por todo lado, o criacionismo, que nega a evolução pela seleção natural, ganha força nos dois países. A imposição de valores religiosos vira agenda política, comprometendo a separação Igreja-Estado e a liberdade de escolha do cidadão. Obscurantismo gera obscurantismo. Enquanto isso, a Europa, muito mais secular e educada cientificamente, olha incrédula para as Américas. Einstein ficaria horrorizado com o que está ocorrendo.
O Ano Internacional da Física vem na hora certa. É preciso, com urgência, combater o obscurantismo na sociedade com a única luz que pode brilhar universalmente em todas as casas, a luz da ciência e da razão.

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