domingo, 26 de setembro de 1999

O Universo teimoso



Em ciência, buscar a simplicidade é fundamental. Quando deparado com um fenômeno natural ainda não explicado, o cientista tem como missão encontrar a explicação mais econômica possível para as causas do que está sendo observado. Esse princípio é conhecido como a "navalha de Ockham", em homenagem ao filósofo inglês William de Ockham, que viveu em torno de 1300. Portanto, se temos duas teorias que descrevem igualmente bem um certo fenômeno, a mais econômica é a que será aceita pelos cientistas.

Infelizmente, nem sempre a natureza coopera com a procura por teorias simples, que descrevam vários fenômenos. Essa é uma tendência relativamente nova, já que nossos antepassados foram muito bem-sucedidos em propor teorias econômicas e poderosas. Um exemplo é a teoria da gravitação universal de Isaac Newton, que explicou um número enorme de fenômenos que antes eram vistos como independentes, como a órbita dos planetas, a queda de objetos na Terra e as marés.
O sucesso da teoria de Newton foi intoxicante; outras teorias abrangentes foram propostas, como o eletromagnetismo de Michael Faraday e James Maxwell, em que fenômenos elétricos e magnéticos são vistos como manifestações do campo eletromagnético. A navalha de Ockham continuou separando o simples do complicado.

Mas e se o simples não funcionar? Até que ponto a busca pelo simples se torna inútil? Atualmente, a cosmologia está passando por um renascimento, ou mesmo uma redefinição. Tradicionalmente, a cosmologia era restrita a teorias mais ou menos ousadas que descreviam a estrutura e evolução do Universo. Mas, nas últimas duas décadas, um novo ingrediente tornou-se parte do trabalho do cosmólogo, o dado observacional. Com isso, muito do que era especulação passou a ser aceito ou descartado. O exemplo mais conhecido é o modelo do Big Bang. Graças a observações na década de 60, seu competidor maior, o modelo do estado padrão, é hoje visto como uma curiosidade pela maioria dos cosmólogos.

O problema, ou desafio, é que o modelo do Big Bang tem vários pontos ainda obscuros. Por exemplo, ainda não sabemos qual a origem das flutuações de energia responsáveis pela geração de estrutura no Universo. Eu explico: nas enormes distâncias astronômicas, os pontos de referência são as galáxias, que podem ter bilhões de estrelas cada. Como tudo o que tem massa se atrai, quais processos deram origem à atração inicial, que fez com que matéria se concentrasse em regiões relativamente pequenas, que virão a se tornar galáxias? Quais são as sementes que germinam em galáxias?

Na teoria mais aceita, essas sementes são flutuações de energia em campos que existiram nos primeiros momentos após o "Bang", que foram amplificadas durante um curto período de tempo em que o Universo expandiu muito rapidamente. Esse "universo inflacionário" prevê sementes aleatórias, sem uma estrutura básica. Essas sementes estão "inscritas" na radiação de fundo cósmico que banha o Universo. Nos últimos anos, 28 experimentos confirmaram que as sementes obedecem às previsões do universo inflacionário. Isso é muito bom, pois esse modelo é simples e econômico, como demanda Ockham e sua navalha. Infelizmente, nos últimos meses, quatro grupos analisaram esses experimentos e acharam estrutura nas flutuações; caso isso seja verdade, o universo inflacionário está em sérios apuros e com ele os últimos 20 anos de cosmologia teórica. Claro, ainda é cedo para conclusões. Essas observações são suscetíveis a erros de interpretação. É muito possível que as sementes sejam como prevê o universo inflacionário. Por outro lado, é também possível que o Universo, teimoso que é, não queira se submeter aos nossos critérios de simplicidade. Talvez, no caso do Universo, a navalha de Ockham não seja afiada o suficiente.

domingo, 19 de setembro de 1999

A estrutura dos átomos



A idéia de que a matéria é feita de pequenos tijolos fundamentais chamados átomos não é nada nova. Ela foi proposta pelos integrantes da última escola de filosofia grega do chamado período pré-socrático, a escola atomística de Leucipo e Demócrito. Apesar de sabermos pouco sobre a vida de Leucipo, sabemos que seu discípulo, Demócrito, um dos filósofos mais prolíficos da antiguidade, viveu entre 460 a.C. e 370 a.C. (Ele foi, portanto, contemporâneo de Sócrates, que nasceu em 470 a.C.)

Os átomos gregos, infinitos em número e indivisíveis, são muito diferentes dos átomos da física e química moderna. Daí seu nome, á-tomo, que em grego significa "o que não pode ser cortado", como a palavra "tomo" usada para indicar volumes de uma coleção de livros. Hoje sabemos que átomos são compostos de partículas ainda menores, os prótons e nêutrons no núcleo e os elétrons em torno. A coisa continua, pois prótons e nêutrons também não são "fundamentais", isto é, indivisíveis, mas sim formados por partículas ainda menores, os quarks. De qualquer forma, a idéia grega de que a matéria pode ser dividida em entidades fundamentais, é incrivelmente moderna.

Uma vez perguntaram ao físico norte-americano Richard Feynman qual seria a frase que deveria ser passada para as gerações futuras, resumindo nosso conhecimento científico mais importante. "Tudo é feito de átomos", respondeu. É irônico que Demócrito, há 2.400 anos, poderia ter dito a mesma coisa...

Claro, a situação não é assim tão simples. A nossa compreensão da estrutura atômica é profundamente diferente da dos gregos. Basta dizer que os gregos não tinham um método empírico de validação das suas idéias; ou seja, a coisa era baseada em especulação e intuição e, mesmo que fosse muito boa, nem sempre correspondia à realidade.

A profunda revolução no conhecimento sobre os átomos ocorreu aproximadamente durante as três primeiras décadas do século 20. Vários modelos foram propostos visando descrever a distribuição de massa e carga dos átomos. Em 1897, J.J. Thomson identificou o elétron e sua carga elétrica negativa. (Na verdade, Thomson mediu a razão entre a carga e a massa do elétron, e/m.) Em 1911, Ernest Rutherford demonstrou que o núcleo atômico era muito menor que o átomo, mais maciço que o elétron e que a carga positiva estava toda concentrada ali. A conclusão era surpreendente: se o núcleo é mais maciço e menor do que o átomo, o átomo, na verdade, é praticamente vazio. Se ampliarmos o núcleo atômico até o tamanho de uma bola de tênis, os elétrons seriam encontrados a 500 metros de distância!

Esse modelo do átomo, uma espécie de minissistema solar com o núcleo no centro e o elétron em órbita, também não descreve corretamente a estrutura atômica. Conforme propôs o físico dinamarquês Niels Bohr em 1913, as órbitas do elétron são muito mais peculiares do que as dos planetas. Elétrons só podem popular certas órbitas, como se o átomo tivesse a estrutura de uma cebola, com o elétron tendo de "pular" de órbita em órbita. Os átomos têm estrutura discreta ou "quantizada". Há uma órbita mais "baixa", o estado fundamental, de onde o elétron não passa; mesmo que os prótons estejam atraindo o elétron (cargas opostas se atraem), ele jamais "cairá" no núcleo.

O modelo de Bohr ainda não foi a palavra final. Na verdade, não podemos visualizar o elétron como uma bolinha saltitando de órbita em órbita, dependendo de sua energia. O elétron é uma distribuição de carga, como se tivéssemos posto a partícula em um liquidificador, distribuindo a sopa resultante em torno do núcleo. Mais ainda, mesmo que o estado fundamental seja esférico (uma bola de carga), os estados excitados têm geometrias mais complicadas, com as "nuvens eletrônicas" interagindo entre si, mudando de órbita (e geometria) e revelando um mundo muito dinâmico.

domingo, 12 de setembro de 1999

Um exemplo a não ser seguido



"Nós não estamos mais em Kansas, Totó!" Assim anunciou a heroína do clássico filme "O Mágico de Oz" a chegada ao mundo dos sonhos ao seu cachorrinho. Mês passado, o Estado de Kansas, nos EUA, tornou-se notícia por motivos que certamente chocariam até a Dorothy e seus companheiros. O Comitê de Educação do Estado decidiu eliminar de seus exames questões sobre a teoria da evolução de Darwin e o modelo do Big Bang, para desencorajar o ensino dessas teorias nas aulas. A decisão escandalizou a comunidade científica e muitas outras comunidades, que se perguntaram, assombradas, como, no final do século 20, ainda é possível uma cegueira tão absurda com relação aos avanços científicos.

O argumento em que se baseou o Comitê de Educação é uma declaração escandalosa da ignorância dos próprios educadores: como ninguém pode voltar no tempo para observar diretamente como a vida ou o Universo se originaram, qualquer teoria sobre essas origens é, na melhor das hipóteses, especulação. Assim, apenas descobertas científicas baseadas na observação direta de fenômenos podem ser ensinadas nas escolas, com exceção, é claro, da religião, pois ela é baseada na fé, e não em descobertas experimentais. Levada ao extremo, a decisão em Kansas eliminaria do currículo a teoria atômica da matéria (nós não vemos os átomos!) ou mesmo o modelo heliocêntrico do Sistema Solar. Se não podemos voltar até os primórdios que escondem o segredo da vida, os educadores de Kansas nos garantem a volta à Idade Média.

Por trás desse movimento estão os criacionistas, que tentam justificar a Bíblia como um texto descritivo em ciências naturais, ou seja, que aceitam ao pé da letra as descrições bíblicas da origem do Universo e da vida no Gênese. Após tentarem durante anos influenciar o currículo das escolas americanas (especialmente no sul dos EUA, mas não só lá), os criacionistas transformaram sua luta em uma luta política, penetrando aos poucos nas organizações deliberativas do sistema educacional. Para eles, a "vitória" em Kansas é apenas o começo, pois o comitê estadual apenas sugere diretrizes para as comunidades locais e suas escolas, que devem tomar a decisão final sobre seu currículo. O próprio governador de Kansas, chocado e visivelmente envergonhado, quer abrir processo para eliminar o Comitê Educacional do Estado. "Essa é uma solução trágica, terrível e embaraçosa para um problema que jamais existiu", disse ele.

Sem dúvida, o evento em Kansas é mais um capítulo no longo e absurdo conflito entre ciência e religião. Quando a ciência trata de questões que são tradicionalmente da religião, como a origem do Universo e da vida, as pessoas que baseiam sua vida exclusivamente na fé sentem-se ameaçadas, achando que, caso os cientistas obtenham as respostas para esses mistérios sem invocar a existência de Deus, a devoção deixará de fazer sentido. Segundo esse ponto de vista, a ciência é inimiga da religião e, a cada descoberta nova, Deus e seus milagres se tornam um pouco mais implausíveis. A cegueira do que é ciência, de como ela funciona, influencia nossas vidas e interage com a religião tem de acabar. Porque quem recebe os frutos de nossa ignorância são nossas crianças, na sala de aula, em casa ou na Igreja.

A ciência não tem todas as respostas, nem procura tê-las. A ciência é um processo em permanente evolução, em que nenhuma teoria é definitiva. As respostas que propomos só são aceitas pela comunidade científica após longa avaliação. A ciência explica o como, não o por quê. Não sabemos o que é gravidade, mas temos teorias que descrevem como essa força atua. É importante para os educadores apresentar a ciência como um processo, e não como uma verdade absoluta. Por outro lado, é fundamental conhecermos o papel da fé em nossas vidas e qual o ponto além do qual a fé não guia, mas cega.

domingo, 5 de setembro de 1999

Energia nuclear no espaço



O uso de energia nuclear para geração de eletricidade me lembra o desgosto do sujeito que comprou uma caríssima garrafa de vinho francês, um Chateau Margaux 1959, que infelizmente passou do ponto. O investimento de emoção e dinheiro, a antecipação dos vários prazeres fornecidos pelo vinho, tudo vai por água abaixo quando é tomado o primeiro gole. Apesar das garantias do vendedor, algo de errado ocorreu durante os 40 anos de manutenção da preciosa garrafa, transformando um rubi líquido no vinagre mais caro do mundo.

Passados 43 anos desde a construção do primeiro reator nuclear na Inglaterra, usinas nucleares pontilham o globo, ao ponto de, em certos países, ela ser o provedor principal de eletricidade. Na França, 80% da energia vem de usinas nucleares. Infelizmente, o uso da energia nuclear tem seu lado negro. Mesmo que o risco de acidentes seja pequeno, basta que um ocorra para gerar efeitos que se espalham rapidamente. O desastre em Chernobil, na Ucrânia, em 1986, provocou pânico em grande parte da Europa. Outro problema é o "lixo nuclear", material altamente radioativo gerado nas usinas. Esse lixo tem de ser tratado e isolado de modo a não oferecer riscos de contaminação do solo ou água.

Devido a protestos de vários grupos preocupados com os riscos da energia nuclear, a tendência mundial do uso de reatores de fissão está gradualmente diminuindo. Uma das exceções é o Brasil, com a nova usina em Angra prestes a funcionar.

As soluções alternativas, com o uso de energia eólica (ventos) e solar, deveriam ser prioridade absoluta dos projetos de pesquisa financiados pelos governos e pela iniciativa privada, inclusive as grandes empresas petroquímicas. Infelizmente, a realidade é muito diferente.

Recentemente, o uso de energia nuclear tem criado outro foco de polêmica: a energia nuclear no espaço. Sem dúvida, viagens interplanetárias, ou aos confins do Sistema Solar (ou mesmo além), necessitam de fontes extremamente eficientes de energia. As tecnologias atuais que usam painéis solares para geração de energia em satélites não são muito eficientes para viagens aos planetas mais distantes, como Saturno e Urano. Missões como a Cassini, que tem o objetivo de chegar a Saturno em 2004, usam geradores termoelétricos radioisotópicos, que produzem eletricidade a partir do decaimento radiativo. Mesmo que esses geradores tenham já sido usados em mais de 20 missões, incluindo a Voyager e a Galileo, os protestos focaram mais na missão Cassini devido as suas maiores dimensões. A espaçonave tem o tamanho de um prédio de dois andares, levando uma quantidade recorde de plutônio, 33 kg. Mais de 1.000 pessoas protestaram em frente aos portões do Cabo Canaveral, na Flórida, quando a missão foi lançada em outubro de 1997. A espaçonave passou perto da Terra em agosto, lançando novos protestos.
Para chegar até Saturno com o mínimo de combustível, Cassini usa os campos gravitacionais da Terra e de Júpiter, que funcionam como uma espécie de catapulta, uma técnica muito comum em vôos interplanetários. O risco aqui é de um acidente ocorrer durante o lançamento da nave ou durante uma passagem perto da Terra, causando a difusão de material altamente radiativo na atmosfera, e aumentando o número de mortes por câncer. Os cálculos de danos prováveis de um acidente são muito imprecisos, pois dependem de detalhes como o local, a altitude, os ventos, a densidade populacional da área do acidente etc. Engenheiros afirmam que o combustível é envolto em cápsulas capazes de resistir a impactos e explosões extremamente violentas. A queda de um satélite na Califórnia em 1968, confirma a confiança dos engenheiros.
Críticos afirmam que não há garantias absolutas e que os riscos não justificam o uso de tecnologia nuclear no espaço; que mais recursos devem ser gastos na criação de tecnologias alternativas. Ignorando o impasse, Cassini segue sua rota em direção aos anéis de Saturno.