domingo, 12 de setembro de 1999

Um exemplo a não ser seguido



"Nós não estamos mais em Kansas, Totó!" Assim anunciou a heroína do clássico filme "O Mágico de Oz" a chegada ao mundo dos sonhos ao seu cachorrinho. Mês passado, o Estado de Kansas, nos EUA, tornou-se notícia por motivos que certamente chocariam até a Dorothy e seus companheiros. O Comitê de Educação do Estado decidiu eliminar de seus exames questões sobre a teoria da evolução de Darwin e o modelo do Big Bang, para desencorajar o ensino dessas teorias nas aulas. A decisão escandalizou a comunidade científica e muitas outras comunidades, que se perguntaram, assombradas, como, no final do século 20, ainda é possível uma cegueira tão absurda com relação aos avanços científicos.

O argumento em que se baseou o Comitê de Educação é uma declaração escandalosa da ignorância dos próprios educadores: como ninguém pode voltar no tempo para observar diretamente como a vida ou o Universo se originaram, qualquer teoria sobre essas origens é, na melhor das hipóteses, especulação. Assim, apenas descobertas científicas baseadas na observação direta de fenômenos podem ser ensinadas nas escolas, com exceção, é claro, da religião, pois ela é baseada na fé, e não em descobertas experimentais. Levada ao extremo, a decisão em Kansas eliminaria do currículo a teoria atômica da matéria (nós não vemos os átomos!) ou mesmo o modelo heliocêntrico do Sistema Solar. Se não podemos voltar até os primórdios que escondem o segredo da vida, os educadores de Kansas nos garantem a volta à Idade Média.

Por trás desse movimento estão os criacionistas, que tentam justificar a Bíblia como um texto descritivo em ciências naturais, ou seja, que aceitam ao pé da letra as descrições bíblicas da origem do Universo e da vida no Gênese. Após tentarem durante anos influenciar o currículo das escolas americanas (especialmente no sul dos EUA, mas não só lá), os criacionistas transformaram sua luta em uma luta política, penetrando aos poucos nas organizações deliberativas do sistema educacional. Para eles, a "vitória" em Kansas é apenas o começo, pois o comitê estadual apenas sugere diretrizes para as comunidades locais e suas escolas, que devem tomar a decisão final sobre seu currículo. O próprio governador de Kansas, chocado e visivelmente envergonhado, quer abrir processo para eliminar o Comitê Educacional do Estado. "Essa é uma solução trágica, terrível e embaraçosa para um problema que jamais existiu", disse ele.

Sem dúvida, o evento em Kansas é mais um capítulo no longo e absurdo conflito entre ciência e religião. Quando a ciência trata de questões que são tradicionalmente da religião, como a origem do Universo e da vida, as pessoas que baseiam sua vida exclusivamente na fé sentem-se ameaçadas, achando que, caso os cientistas obtenham as respostas para esses mistérios sem invocar a existência de Deus, a devoção deixará de fazer sentido. Segundo esse ponto de vista, a ciência é inimiga da religião e, a cada descoberta nova, Deus e seus milagres se tornam um pouco mais implausíveis. A cegueira do que é ciência, de como ela funciona, influencia nossas vidas e interage com a religião tem de acabar. Porque quem recebe os frutos de nossa ignorância são nossas crianças, na sala de aula, em casa ou na Igreja.

A ciência não tem todas as respostas, nem procura tê-las. A ciência é um processo em permanente evolução, em que nenhuma teoria é definitiva. As respostas que propomos só são aceitas pela comunidade científica após longa avaliação. A ciência explica o como, não o por quê. Não sabemos o que é gravidade, mas temos teorias que descrevem como essa força atua. É importante para os educadores apresentar a ciência como um processo, e não como uma verdade absoluta. Por outro lado, é fundamental conhecermos o papel da fé em nossas vidas e qual o ponto além do qual a fé não guia, mas cega.

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