quinta-feira, 30 de outubro de 1997

Rumo ao planeta vermelho

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Durante os anos 60, era inevitável que uma criança quisesse ser astronauta quando crescesse. Com a missão Apolo, a humanidade, vestindo a bandeira americana, pousou na Lua. Neil Armstrong deixou suas pegadas indeléveis no solo poeirento de nosso satélite, afirmando "um pequeno passo para um homem, um gigantesco passo para a humanidade".

Mas o quadro da corrida espacial mudou bastante nos anos 70 e, principalmente, nos anos 80. Missões exploratórias passaram a ser feitas por satélites robotizados, controlados remotamente na Terra, enquanto que astronautas passaram a tomar conta das missões das "space shuttles", um misto de foguete e avião, capaz de aterrizar após orbitar a Terra.

A idéia romântica da exploração do espaço como última fronteira foi substituída por rentáveis missões dedicadas ao lançamento de satélites ou por missões científicas dedicadas tanto a observações astronômicas, livres da interferência atmosférica, ou a experimentos efetuados em órbita, aproveitando a ausência (simulada!) de gravidade.

Mas nos anos 90, e particularmente no final da década, a política de exploração espacial está novamente mudando. Dois projetos têm recebido destaque especial. Um é o laboratório espacial que a NASA está construindo, uma plataforma orbital que servirá não só como centro de pesquisas, mas também como ponte entre a Terra e futuras missões tripuladas. Outra é a "missão para Marte", que recebeu enorme impulso recentemente com a possível descoberta de restos de vida microorgânica em Marte e com o sucesso da sonda robotizada "Pathfinder", que explorou sua superfície este ano.

Muito possivelmente, as crianças da próxima década vão novamente sonhar em ser astronautas. E algumas irão ver esse sonho se tornar realidade, viajando em direção ao enigmático planeta vermelho.

domingo, 26 de outubro de 1997

Físicos buscam a "teoria do campo unificado"

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Por que os cientistas gostam tanto de uma teoria? A resposta é mais simples do que parece. Teorias organizam, de forma concisa e precisa, fatos que são observados no laboratório e fora dele. Uma boa teoria deve ser capaz de explicar uma série de fenômenos observados na natureza e também de prever a existência de novos fenômenos a serem observados no futuro.
Podemos, por exemplo, contrastar a teoria da gravitação universal de Newton e a da relatividade geral de Einstein. Apesar de ambas tratarem do fenômeno gravitacional, elas o fazem de modo distinto. Enquanto a teoria de Newton descreve a gravitação como uma "ação a distância", ou seja, como uma força que atravessa (misteriosamente) o espaço vazio, Einstein propôs que a gravitação pode ser explicada por meio de um tratamento geométrico, em que a presença de um corpo maciço deforma a geometria do espaço à sua volta.

A geometrização do fenômeno gravitacional e seu sucesso teve um profundo impacto no resto da vida de Einstein. Se a gravitação pode ser explicada elegantemente por uma descrição puramente geométrica, por que não o eletromagnetismo, a única outra força que, como a gravitação, também tem longo alcance?

Até sua morte em 1955, Einstein procurou por uma formulação geométrica que não só explicasse os fenômenos eletromagnéticos, mas também os unificasse com a gravitação. Uma teoria unificada da gravitação e do eletromagnetismo trata fenômenos gravitacionais e eletromagnéticos como manifestação de uma única força, ou mais precisamente, de um único campo, o campo unificado. A cada força está associado um campo. Se colocarmos um prego perto de um ímã, sentimos a presença do campo magnético criado. Campo é uma manifestação espacial da presença de uma certa fonte.

A idéia de unificação é fundamental em física. O poder ou eficácia de uma teoria pode ser medido pela quantidade de fenômenos diversos que ela pode explicar. Newton unificou a física dos fenômenos gravitacionais celestes com a dos fenômenos gravitacionais terrestres. No século 19, Faraday, Maxwell e outros mostraram que fenômenos elétricos e magnéticos podem ser descritos conjuntamente pelo campo eletromagnético.

Apesar de Einstein ter falhado em sua missão, sua influência permanece viva até hoje. A idéia de unificação de forças é uma das mais populares entre físicos teóricos do mundo inteiro. Ao eletromagnetismo e à gravitação são adicionadas duas outras forças, que se manifestam apenas a distâncias subatômicas, que são as forças nucleares forte e fraca.

As quatro forças descrevem, em princípio, todos os fenômenos observados, desde escalas microscópicas às macroscópicas. Portanto, a "Teoria de Tudo" unificaria as quatro forças fundamentais em apenas uma, a força unificada. Essa unificação se manifesta apenas a energias extremamente altas, muito mais altas do que nós podemos testar nos laboratórios atuais. Por trás da realidade física, apenas visível a energias altíssimas, existe uma outra realidade, em que tudo é manifestação de um campo unificado. Em sua intimidade, a natureza é extremamente simples.

A idéia de unificação das quatro forças fundamentais não é absurda nem influenciada por tendências monoteístas, como pode parecer. Já conseguimos unificar as forças eletromagnética e fraca, conforme comprovado experimentalmente em 1983 por Carlo Rubia e seu time em Genebra, baseados em previsões teóricas de S. Glashow, A. Salam e S. Weinberg. A energias cerca de mil vezes maiores que as nucleares, as forças eletromagnética e fraca se manifestam como uma única força, a eletrofraca. O próximo passo é incluir a força nuclear forte e, eventualmente, a gravitação nessa unificação. Talvez a visão de Einstein não tenha sido apenas uma fantasia.

domingo, 19 de outubro de 1997

A natureza sempre terá surpresas para a ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1996, o jornalista John Horgan, que escreve para a revista "Scientific American", publicou o livro "O Fim da Ciência". Nele, Horgan argumenta que a ciência, especialmente a ciência pura ou fundamental, chegou ao seu fim; que as descobertas principais já foram feitas, e o que restou para as futuras gerações de cientistas são meros detalhes.

Como não poderia deixar de ser, o livro causou enorme sensação, instigando inúmeros debates entre Horgan e seus oponentes. Segundo Horgan, o grande problema da ciência moderna é seu próprio sucesso; cientistas conseguiram criar um "mapa da realidade física" que se estende desde o microcosmo de quarks e elétrons ao macrocosmo de planetas, estrelas e galáxias.

Horgan argumenta que devido ao sucesso desse mapa da realidade física, baseado na mecânica quântica e na relatividade, nada de realmente fundamental vai ser adicionado ao corpo de conhecimento científico. Apenas buracos nesse mapa serão tapados por cientistas pouco ambiciosos. O problema, para Horgan, são os cientistas "ambiciosos", que não se contentam em tapar buracos deixados por seus antecessores. Eles criam o que Horgan chama de "ciência irônica", baseada em mera especulação, que gera mais especulação e só isso, desvinculada da realidade física. Ou seja, que a ciência fundamental está se aproximando da filosofia ou mesmo da teologia em seu desespero de gerar idéias revolucionárias.

Como exemplos de "ciência irônica", Horgan cita a teoria de supercordas da física de altas energias, idéias sobre universos paralelos, a hipótese de Gaia, dos biólogos Lynn Margulis e James Lovelock, e teorias de complexidade, que tentam demonstrar como comportamento complexo, inclusive a própria vida, pode ser gerado por processos de auto-organização espontânea.

Os argumentos de Horgan possuem vários pontos fracos. Um deles é que vários cientistas de calibre, incluindo Lord Kelvin, argumentaram, no final do século passado, que a física havia chegado ao fim; com os triunfos da mecânica, do eletromagnetismo, e da termodinâmica (à qual Kelvin deu contribuições cruciais), nada de mais fundamental poderia ser descoberto. Ironicamente, quando Kelvin morreu em 1907, a física passava por profunda revolução, com a hipótese dos quanta de Max Planck e a relatividade especial de Einstein.

A ciência não tem uma evolução monotônica, a partir da qual possamos construir extrapolações sobre seu progresso conceitual. Me parece que o sr. Horgan está com muita pressa, impaciente com a demora de novas revoluções conceituais na ciência. Será que ele teme ficar sem idéias sobre o que escrever? Argumentos dessa natureza parecem ignorar como o progresso conceitual da ciência se dá a partir de suas limitações. Por exemplo, a mecânica newtoniana não pode ser aplicada na descrição do comportamento dos átomos ou de corpos com velocidades próximas à da luz. Dessas limitações surgiram a mecânica quântica e a teoria da relatividade.
O "mapa da realidade física", que Horgan considera ser _e sem dúvida é_, um grande sucesso, está repleto de seriíssimos problemas conceituais, como por exemplo a incompatibilidade da mecânica quântica e da teoria da relatividade geral na descrição da infância do Universo ou na física de buracos negros. Isso sem falar de novas fronteiras na ciência, como por exemplo o funcionamento do cérebro ou a engenharia genética.

Achar que chegamos ao fim de nossas explicações de fenômenos naturais, quando temos tantas questões em aberto, é extremamente pretensioso; a Natureza sempre nos surpreenderá, forçando-nos a expandir as fronteiras do conhecimento. Infelizmente para alguns, essa expansão requer muita paciência, tenacidade e humildade intelectual.

domingo, 12 de outubro de 1997

Matéria escura do Universo ainda é um mistério

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

De que é feito o Universo?
No século 6º a.C., Tales de Mileto, que segundo Aristóteles foi o primeiro filósofo da Grécia antiga, argumentou que a substância fundamental do cosmos é a água. Essa resposta, à primeira vista absurda, deve ser interpretada metaforicamente; água tem a capacidade de se transformar, representando para Tales o caráter dinâmico da natureza.

Passados 2.500 anos, continuamos a nos debater com a mesma pergunta. Claro, progredimos muito desde os dias de Tales. Sabemos que há 92 elementos químicos estáveis na natureza, feitos de átomos, e que esses átomos se combinam para formar as moléculas. Sabemos também que os mesmos elementos químicos encontrados na Terra são encontrados em outras partes do Universo, seja em planetas, estrelas, ou nuvens de gás interestelar. Mas será que é só isso?

Não! Assim como um sistema solar consiste de (pelo menos) uma estrela e planetas atraídos pela gravidade, um "aglomerado de galáxias" é um grupo de galáxias atraídas dessa forma também.

Na década de 30, Fritz Zwicky, um astrônomo suíço trabalhando nos Estados Unidos, observou que as velocidades das galáxias em aglomerados de galáxias eram muito maiores do que elas deveriam ser.

Para explicar esse efeito, Zwicky calculou que a massa do aglomerado deveria ser pelo menos dez vezes maior do que a massa da matéria visível no aglomerado, ou seja, as estrelas e o gás pertencentes às galáxias.

Que tipo de matéria "extra", invisível, compõe a massa do aglomerado? Zwicky iniciou um debate que está aberto até hoje. Essa matéria que nós não podemos ver, mas que atua por meio da gravidade na dinâmica do aglomerado, é chamada de "matéria escura".
Mais recentemente, se mostrou que a matéria escura também está presente em galáxias individuais. A quantidade estimada varia segundo o tipo de galáxia (espiral, elíptica etc.), mas os números também são em torno de dez vezes mais matéria escura do que matéria capaz de gerar luz.

Tanto planetas _que não geram sua própria luz_ quanto anãs marrons _estrelas tão leves que não podem iniciar os processos de fusão nuclear que geram luz_ contribuem para a quantidade total de matéria escura em uma galáxia ou em um aglomerado de galáxias.

Mas o mistério da matéria escura está longe de ser resolvido. Por mais planetas e anãs marrons que possamos encontrar, não encontraremos dez vezes mais massa dessa forma do que em estrelas luminosas.

Vários outros candidatos foram propostos, certamente muito mais exóticos do que planetas. Por exemplo, é possível que grande parte da matéria escura seja na forma de buracos negros, os restos deixados por estrelas maciças ao se extinguirem, ou por neutrinos com massa, partículas que participam de processos radiativos, mas que tradicionalmente (e, até o momento, experimentalmente) não têm massa.

Mas segundo estimativas teóricas, nem mesmo buracos negros ou neutrinos maciços podem resolver o mistério da massa escura. Novas partículas _diferentes dos elétrons, prótons e nêutrons, que compõem os átomos_ foram propostas como possíveis candidatas. Caso elas existam, 90% a 99% da massa do Universo pode ser composta de matéria que não tem nada a ver com a que compõe as estrelas, planetas ou seres humanos.

Seria o triunfo final da revolução copernicana, que nos séculos 16 e 17 determinou que o Sol, e não a Terra, é o centro do Universo. Se a matéria escura for mesmo composta de matéria exótica, não só não somos o centro do Universo, como também não somos nem feitos da matéria que domina sua composição e dinâmica.

domingo, 5 de outubro de 1997

Cientistas também podem cair no "conto do vigário"

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

A Astrologia é muito mais popular do que a Astronomia. Sem dúvida, um número muito maior de pessoas abre um jornal ou uma revista para consultar uma coluna astrológica do que para ler uma coluna sobre astronomia. E a Astrologia não está sozinha: numerologia, quiromancia, tarô, e búzios também são muito populares.

Como físico, não cabe a mim tentar explicar o porquê dessa irresistível atração pelo que vai obviamente além do que chamamos de fenômenos naturais. Mas posso ao menos oferecer uma conjectura. O fascínio pelo esotérico vem justamente de seu aspecto pessoal, privado: você paga a um profissional com conhecimentos ou "poderes" esotéricos para que ele fale sobre você, sua vida, seus problemas, seu futuro.

Por trás desse fascínio pelo "saber" esotérico encontramos nosso próprio desejo de nos situarmos melhor emocional ou profissionalmente em nossas vidas. Nesse sentido, a atração pelo esoterismo força as pessoas a uma auto-reflexão que pode até ser muito importante como veículo de autoconhecimento.

Mas, como físico, cabe a mim fazer o papel do chato e argumentar contra a crença nesses fenômenos como tendo existência no mundo natural. E isso não é porque eu seja bitolado ou inflexível. Ao contrário, qualquer cientista ficaria imediatamente fascinado pela descoberta de um fenômeno novo, por mais estranho que ele seja. Faz parte de nossa profissão justamente manter a cabeça aberta para o inesperado.

O problema com o esoterismo é que não temos nenhuma prova concreta, científica, de que esses fenômenos realmente ocorram.

Uma das grandes armas da ciência contra o charlatanismo está justamente na possibilidade de repetirmos um dado experimento quantas vezes desejarmos. Os cientistas não precisam "acreditar" nos resultados de outro cientista. Basta repetir o experimento no seu próprio laboratório sob condições idênticas, e os mesmos resultados devem ser encontrados.

Eis aqui um exemplo: a "descoberta" da fusão fria, a produção de energia a partir da fusão de núcleos atômicos a temperaturas baixas. O processo de fusão nuclear ocorre em temperaturas e pressões altíssimas, por exemplo no interior do Sol ou na infância do Universo. Mas em 1989, Stanley Pons e Martin Fleischmann, dois cientistas de renome, anunciaram ter obtido fusão a temperatura ambiente.

Tal resultado poderia revolucionar a produção mundial de energia. Por isso, vários grupos imediatamente tentaram reproduzir os achados de Pons e Fleischmann. Após alguns alarmes falsos, ficou claro que fusão a baixas temperaturas é impossível. Como não foram reprodutíveis os resultados anunciados, eles foram abandonados.

Essa história tem várias morais. Uma delas é que cientistas também podem cair no conto do vigário. Mas só por algum tempo! Outra moral é que os cientistas devem ter mais cuidado em ir até a mídia quando julgam ter uma grande descoberta em suas mãos. Mais relevante para nossa discussão, os cientistas não têm a priori a cabeça fechada para fenômenos "estranhos"; apenas para fenômenos que se recusam a ser reconfirmados no laboratório.

Seria fascinante se houvesse uma força desconhecida que pudesse influenciar nosso comportamento _ou pelo menos indicar tendências_ a partir de um arranjo cósmico em que nós, como indivíduos, participássemos ativamente, um tipo de astronomia personalizada.
Para mim, mais fascinante ainda é seguir os passos de outros cientistas e me dedicar ao estudo dos fenômenos naturais, armado apenas com inspiração e razão. Ao compreendermos um pouco mais sobre o mundo à nossa volta, podemos também compreender um pouco mais sobre nós mesmos.