domingo, 19 de outubro de 1997

A natureza sempre terá surpresas para a ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1996, o jornalista John Horgan, que escreve para a revista "Scientific American", publicou o livro "O Fim da Ciência". Nele, Horgan argumenta que a ciência, especialmente a ciência pura ou fundamental, chegou ao seu fim; que as descobertas principais já foram feitas, e o que restou para as futuras gerações de cientistas são meros detalhes.

Como não poderia deixar de ser, o livro causou enorme sensação, instigando inúmeros debates entre Horgan e seus oponentes. Segundo Horgan, o grande problema da ciência moderna é seu próprio sucesso; cientistas conseguiram criar um "mapa da realidade física" que se estende desde o microcosmo de quarks e elétrons ao macrocosmo de planetas, estrelas e galáxias.

Horgan argumenta que devido ao sucesso desse mapa da realidade física, baseado na mecânica quântica e na relatividade, nada de realmente fundamental vai ser adicionado ao corpo de conhecimento científico. Apenas buracos nesse mapa serão tapados por cientistas pouco ambiciosos. O problema, para Horgan, são os cientistas "ambiciosos", que não se contentam em tapar buracos deixados por seus antecessores. Eles criam o que Horgan chama de "ciência irônica", baseada em mera especulação, que gera mais especulação e só isso, desvinculada da realidade física. Ou seja, que a ciência fundamental está se aproximando da filosofia ou mesmo da teologia em seu desespero de gerar idéias revolucionárias.

Como exemplos de "ciência irônica", Horgan cita a teoria de supercordas da física de altas energias, idéias sobre universos paralelos, a hipótese de Gaia, dos biólogos Lynn Margulis e James Lovelock, e teorias de complexidade, que tentam demonstrar como comportamento complexo, inclusive a própria vida, pode ser gerado por processos de auto-organização espontânea.

Os argumentos de Horgan possuem vários pontos fracos. Um deles é que vários cientistas de calibre, incluindo Lord Kelvin, argumentaram, no final do século passado, que a física havia chegado ao fim; com os triunfos da mecânica, do eletromagnetismo, e da termodinâmica (à qual Kelvin deu contribuições cruciais), nada de mais fundamental poderia ser descoberto. Ironicamente, quando Kelvin morreu em 1907, a física passava por profunda revolução, com a hipótese dos quanta de Max Planck e a relatividade especial de Einstein.

A ciência não tem uma evolução monotônica, a partir da qual possamos construir extrapolações sobre seu progresso conceitual. Me parece que o sr. Horgan está com muita pressa, impaciente com a demora de novas revoluções conceituais na ciência. Será que ele teme ficar sem idéias sobre o que escrever? Argumentos dessa natureza parecem ignorar como o progresso conceitual da ciência se dá a partir de suas limitações. Por exemplo, a mecânica newtoniana não pode ser aplicada na descrição do comportamento dos átomos ou de corpos com velocidades próximas à da luz. Dessas limitações surgiram a mecânica quântica e a teoria da relatividade.
O "mapa da realidade física", que Horgan considera ser _e sem dúvida é_, um grande sucesso, está repleto de seriíssimos problemas conceituais, como por exemplo a incompatibilidade da mecânica quântica e da teoria da relatividade geral na descrição da infância do Universo ou na física de buracos negros. Isso sem falar de novas fronteiras na ciência, como por exemplo o funcionamento do cérebro ou a engenharia genética.

Achar que chegamos ao fim de nossas explicações de fenômenos naturais, quando temos tantas questões em aberto, é extremamente pretensioso; a Natureza sempre nos surpreenderá, forçando-nos a expandir as fronteiras do conhecimento. Infelizmente para alguns, essa expansão requer muita paciência, tenacidade e humildade intelectual.

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