domingo, 29 de agosto de 2010

Einstein, Bohr e a realidade



O determinismo da física clássica, a do cotidiano, é só uma aproximação da realidade mais incerta 


ATÉ QUE PONTO podemos conhecer o mundo? Alguns acreditam que podemos ir até o fim, encontrando respostas para as perguntas mais profundas sobre as operações da natureza. Outros acreditam que o conhecimento que podemos adquirir sobre o mundo tem limites. Esses limites não são apenas uma consequência dos nossos cérebros ou das ferramentas que usamos para estudar a realidade física. Fazem parte da própria natureza.

Dentro da história da ciência, talvez a melhor expressão dessa dicotomia seja encontrada nos famosos debates entre Albert Einstein e Niels Bohr, que se deram até a morte de Einstein em 1955.

Esses dois gigantes da física do século 20, que tinham grande respeito intelectual um pelo outro, trocaram opiniões em diversas ocasiões, tentando interpretar as misteriosas propriedades da ciência que ambos ajudaram a desenvolver: a estranha mecânica quântica, a física das moléculas, dos átomos e das partículas subatômicas.

Em 1905, Einstein publicou o artigo que considerava o mais revolucionário de sua obra. Nele, propôs que, diferentemente da visão prevalente na época, na qual a luz era vista como uma onda, ela também podia ser imaginada como feita de corpúsculos, mais tarde chamados de fótons. A questão era como algo podia ser onda e partícula ao mesmo tempo. A situação piorou em 1924, quando Louis de Broglie sugeriu que não só fótons, mas prótons e toda a matéria, também eram ondas.

A nova mecânica quântica impôs duas restrições fundamentais ao conhecimento: só podemos saber a probabilidade de encontrar uma partícula em algum lugar do espaço; o observador interage com o observado. Consequentemente, o determinismo da física clássica, a do nosso cotidiano, é apenas uma aproximação de uma realidade na qual o conhecimento completo parece ser uma impossibilidade.

Einstein não podia aceitar isso. Em carta a Max Born, que havia proposto a interpretação probabilística, escreveu: "A mecânica quântica demanda nossa atenção... A teoria funciona bem, mas não nos aproxima dos segredos do Velho. De qualquer forma, estou convencido que Ele não joga dados".

Para Einstein, uma descrição probabilística da natureza não podia ser a palavra final. A natureza era ordenada. Acreditava que, em nível mais profundo, tudo voltaria ao determinismo que conhecemos. Para Bohr, o sucesso da mecânica quântica falava por si mesmo. Via a relação entre observador e observado como uma expressão da nossa conexão com o mundo. Tanto que, quando recebeu a Ordem do Elefante da coroa dinamarquesa em 1947, escolheu o símbolo taoísta do yin e do yang como brasão.

As coisas permanecem em aberto. Experimentos que tentaram encontrar algum vestígio de uma estrutura mais profunda do que a probabilidade quântica falharam. Por outro lado, a mecânica quântica exibe propriedades bizarras: um sistema pode afetar o comportamento de outro a distâncias enormes. Einstein chamava isso de "ação fantasmagórica à distância". Existem efeitos não locais (sem a causa e o efeito que conhecemos tão bem) que parecem desafiar o espaço e o tempo. Einstein e Bohr adorariam saber que o debate continua.

domingo, 22 de agosto de 2010

Outra conversa sobre o tempo



Extrapolando a expansão do Universo até seu início, existe um ponto em que não há como definir o tempo



AGORA QUE o livro do Zuenir Ventura e do Luís Fernando Veríssimo, "Conversa sobre o tempo", está nas livrarias, não consegui resistir. Peguei emprestado o título para termos aqui um outro tipo de conversa sobre o mesmo tópico.

O tempo significa muitas coisas diferentes. E, por falar nisso, adianto que o próximo livro da série "Conversa sobre..." será uma conversa minha com o precioso Frei Betto, mediada por Waldemar Falcão. O tema será "Conversa sobre a fé". Mas isso é coisa para o final do ano.

Enquanto esse livro não chega, gostaria hoje de retomar um tema científico, sobre a origem do tempo.

Uma das consequências mais diretas do Big Bang é que o Universo teve origem em um instante específico do passado. Isso se deu há cerca de 13,7 bilhões de anos.

Uma das indicações mais óbvias disso é a expansão do Universo: o fato de as galáxias estarem se afastando umas das outras.

Portanto, passando o filme ao contrário, chegamos em um instante em que todas elas estão comprimidas em um único ponto. Esse é o momento da criação. E, portanto, o momento em que surge o tempo.

O problema é que essa descrição não funciona. Infelizmente, ao nos aproximarmos desse momento crítico, a teoria que usamos para descrever a expansão do espaço (a teoria da relatividade geral de Einstein) deixa de fazer sentido.

Chegamos à "singularidade", onde toda a matéria estaria comprimida em uma região de proporções não tão diferentes de um átomo.

Com isso, a teoria de Einstein, que trata do espaço e do tempo como entidades contínuas e bem comportadas, precisa ser suplantada por conceitos da física quântica, que trata dos átomos e das partículas elementares da matéria. Aí a coisa fica feia.

Na teoria de Einstein, a gravidade é descrita como consequência da curvatura do espaço. A presença de uma massa, seja ela o Sol, você ou uma bola de tênis, deforma o espaço ao redor e afeta a passagem do tempo. Quanto mais matéria, maior a curvatura do espaço e mais lenta a passagem do tempo. Um relógio no Sol bate mais devagar do que na Terra. Os efeitos são bem pequenos.

Quanto tentamos "quantizar" a gravidade, temos de supor que, tal como no caso dos átomos, as mesmas estranhas regras se aplicam: no mundo do muito pequeno, tudo flutua, nada fica parado.

Se você imaginar o espaço como uma membrana, feito o topo de um tambor, isso significa que ele vibrará de várias formas e o que ocorre aqui não é o que ocorre ali.

O mesmo com o tempo. Ele não flui mais continuamente. Como a era quântica do Universo veio antes da era clássica (explicada pela teoria de Einstein), temos de supor que, nessa situação inicial onde tudo flutuava, o tempo usual não existia.

Se extrapolarmos a expansão do Universo até o seu início, chegamos a um ponto em que não podemos definir o tempo de modo familiar.

Aliás, como disse já Santo Agostinho, o tempo e o espaço surgem com a criação. Na física, o tempo e o espaço einstenianos, contínuos e bem comportados, surgem na transição da era quântica à era clássica. E como o Big Bang é precisamente o evento que marca a passagem do universo da era quântica para a era clássica, é ele também que marca o nascimento do tempo.



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domingo, 15 de agosto de 2010

Uma ecologia espiritual



O respeito à vida como verdade universal leva a um estado em que agimos como os guardiões dela



ESTÁ NA HORA de irmos em frente e deixar para trás o desgastado embate entre a ciência e a religião, que já não rende nada. É preciso encontrarmos um novo rumo, ir além da polarização linear que vem caracterizando as discussões do papel da fé e da razão na vida das pessoas por mais de cem anos. A ciência não se propõe a roubar Deus das pessoas, e nem toda prática religiosa é anticientífica. Existe uma outra dimensão a ser explorada, ortogonal a esse eixo em torno do qual giram os argumentos mais comuns.

Um caminho possível é explorar valores morais de caráter universal que desafiem a linearidade do cabo de guerra entre a ciência e a religião.

Bem sei que, para muita gente, a proposta de encontrar valores morais universais representa já um beco sem saída. Relativistas culturais, por exemplo, argumentarão que esses valores universais não existem, que o que é certo para um pode ser errado para outro. Por exemplo, culturas nas quais a poligamia é aceita.

Para encontrar valores morais universais, precisamos ir mais fundo. Não podem ser valores que variem de cultura para cultura ou em épocas diferentes, como a ideia do casamento. Sugiro que o valor mais efetivo que podemos explorar vem da única certeza universal que temos: a morte.

A morte não é recebida com prazer em nenhuma cultura. Claro, alguns veem a morte como uma transição para uma nova vida, ou um mero aspecto de uma existência sem fim. Outros podem até vê-la como um ato heroico de martírio. Mas, tirando fundamentalistas radicais, ninguém em boa saúde física e mental escolhe morrer. Portanto, de todos os valores morais que podemos imaginar, proponho que o mais universal seja a preservação da vida.

Não me refiro apenas à vida humana. Quando percebemos o quanto nossas vidas dependem do planeta que habitamos, damos-nos conta de que precisamos agir para preservar todas as formas de vida. É óbvio que temos que garantir nossa existência, e que isso requer que consumamos alimentos. Mas esse consumo não precisa ser predatório. Pode ser planejado para que mantenha um equilíbrio saudável entre o que é produzido e o que é consumido.

Quanto mais saudável o planeta, mais saudável a economia. Isso pode não ser óbvio a curto prazo, mas em intervalos de décadas é. Este é o século em que finalmente iremos entender que precisamos estabelecer uma relação simbiótica com a Terra. Talvez essa seja a lição mais importante que a ciência moderna tem a ensinar.

O respeito à vida como moral universal leva a uma ecologia espiritual na qual nós, como espécie dominante do planeta, agimos como guardiões da vida. Com isso, a dimensão espiritual que nos é tão importante ganha expressão na devoção ao planeta e às suas formas de vida.

Esse senso de conexão espiritual com a natureza é celebrado tanto na ciência quanto na religião. De Einstein a Santa Teresa de Ávila (grato a Frei Betto, por me chamar atenção para esta obra), o mundo é festejado como sacro. As palavras variam, mesmo a motivação pode variar; mas, em sua essência, a mensagem é a mesma. Acho difícil encontrar uma moral universal mais básica do que o respeito à vida e ao planeta que a abriga de forma tão generosa. Ao menos, é um começo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Dividindo visões de mundo


É loucura levar nossa visão de mundo muito a sério, pois sem dúvida ela vai acabar se transformando



"Todos levamos dentro de nós um grão de loucura, sem o qual é imprudente viver", escreveu García-Lorca. Richard Wagner, Virginia Woolf, Gore Vidal, D. H. Lawrence, Greta Garbo -eis alguns dos nomes que volta e meia escapavam para o vilarejo de Ravello, ao sul de Nápoles, na Itália. Não é para menos. A uma altitude de 365 metros, escavada nas íngremes encostas que abraçam dramaticamente o Mediterrâneo, Ravello é uma joia rara. E não só pela sua inigualável beleza.


Tive o privilegio de passar cinco dias em Ravello recentemente, participando do festival que ocorre anualmente no verão. O evento é único, reunindo pensadores, artistas plásticos, músicos, empreendedores, todos em busca da mesma coisa: beleza natural e revitalização intelectual e estética. Vim a convite do organizador do festival, o famoso sociólogo italiano Domenico de Masi, que soube de mim graças ao jornalista Roberto D'Ávila.

Masi é conhecido do público brasileiro. Dentre seus livros, "O Ócio Criativo" foi sucesso de vendas. Ele também escreve regularmente para a revista "Época". Com uma docilidade ímpar, conduz o festival como se fosse a sua orquestra: tudo funciona perfeitamente, dos concertos de música clássica e jazz às peças de teatro e até, claro, a conferência da qual participei.

A cada ano o festival tem um tema diferente, que unifica as obras. Neste ano, o tema foi a loucura. Mapearam sua presença nas instituições, na ciência, no Cosmo, na jurisprudência, na propaganda, no comércio, nas comunicações, na economia e na política. Do Brasil, participou também a notável ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, que fez excelente apresentação sobre a manipulação ideológica das instituições de direito, especialmente em regimes fascistas.

Falei sobre as mudanças de visão de mundo que ocorreram na história, e de como elas foram e são decorrentes dos avanços da ciência. Começando com os gregos e seu mundo, onde a Terra era o centro do Universo. Lembrei que, na época de Colombo e Cabral, essa era ainda a visão dominante: para eles, tudo girava em torno da Terra, enquanto nós, humanos, éramos o ápice da Criação. A Igreja fornecia a justificativa para esse arranjo vertical da existência: da Terra, o homem almejava ascender à graça dos céus, morada de Deus e de seus anjos.

De lá para cá, tudo mudou. Não somos mais o centro do Cosmo, e nem mesmo o Sol é uma estrela importante. Como ele, existem bilhões de outras, e isso só na nossa galáxia. Expliquei que a ciência vai avançando com o tempo, e que certezas atuais podem se tornar absurdos. Disso, aprendemos que é loucura levar nossa visão de mundo muito a sério, pois sem dúvida ela vai mudar. É bom tomarmos nossas certezas com muita humildade.

O festival fornece a todos uma oportunidade de refletir sobre aspectos da vida que o dia-a-dia interrompe. São raros esses momentos, em que pessoas ocupadas se permitem um espaço para a contemplação do belo e do absurdo, na expectativa de abrir a cabeça para o novo. Ao fim do seminário, perguntei a Masi, um grande fã do nosso país, por que não temos algo de semelhante no Brasil. "Excelente ideia", disse-me ele. Acho que será um grande sucesso.

domingo, 1 de agosto de 2010

O erro de Kepler



Devemos julgar afirmações sobre "teorias de tudo" com enorme ceticismo; nosso conhecimento é limitado



Em 1596, com o furor de uma mente devota, o jovem Johannes Kepler, então com apenas 25 anos, publica seu primeiro livro, "Mysterium Cosmographicum" ou "O Mistério Cosmográfico". Nele, o astrônomo principiante propõe nada menos do que a solução para a estrutura do Cosmo, o que acreditava ser o plano divino da Criação.

Tudo se deu durante uma aula que ministrava para um punhado de estudantes desinteressados. Quando explicava as conjunções dos planetas Júpiter e Saturno, Kepler se perguntou se o fato de Saturno estar aproximadamente duas vezes mais longe do Sol do que Júpiter era sintoma de uma ordem mais profunda: talvez a estrutura cósmica seguisse as regras da geometria. Fosse esse o caso, a mente humana teria acesso aos segredos mais profundos da Criação e à mente de Deus. E a língua em comum entre homem e Deus seria a matemática.

Após várias tentativas frustradas, Kepler obteve a solução que tanto almejava. Na época, só eram conhecidos seis planetas, de Mercúrio a Saturno. Urano e Netuno, invisíveis aos olhos, só foram descobertos bem mais tarde. Kepler, numa visão genial, imaginou que o cosmo seria organizado a partir dos cinco sólidos platônicos, os cinco objetos mais simétricos que existem em três dimensões. Conhecemos bem dois deles, o cubo e a pirâmide (tetraedro). Kepler entendeu que, ao colocar um sólido dentro do outro, como aquelas bonecas russas, com esferas entre cada um deles, poderia acomodar apenas seis planetas: Sol no centro; esfera (Mercúrio); sólido; esfera (Vênus); sólido; esfera (Terra); sólido etc. Portanto, o número de planetas seria decorrente do número de sólidos perfeitos!

Kepler foi além. Como os sólidos obedecem às regras da geometria, seu arranjo determina também as distâncias entre si e, portanto, entre as esferas que os cercam. Experimentando com padrões diferentes, Kepler encontrou um que previa as distâncias entre os planetas com uma precisão de 5% -quando comparado com os dados astronômicos da época, um feito sensacional.

Para um homem que acreditava profundamente num Deus matemático, criador da ordem cósmica, nada mais natural do que uma solução geométrica. Kepler via seu arranjo como a expressão do sonho pitagórico de obter uma explicação geométrica para os mistérios do mundo. Para ele, essa era a teoria final.

Podemos aprender algo com Kepler. Soubesse ele da existência de outros planetas, Urano e Netuno, como teria reagido? Certamente, seu sonho de uma ordem geométrica para o Cosmo dependia do que se sabia na época. Seu erro foi ter dado ao estado do conhecimento empírico do mundo uma finalidade que não existe. Para Johannes Kepler, era inimaginável que o Cosmo pudesse se desviar de sua estrutura geométrica. No entanto, sabemos que nosso conhecimento do mundo é limitado, e será sempre.

Por isso, devemos julgar declarações sobre teorias de tudo ou teorias finais com enorme ceticismo. A história nos ensina que o progresso científico caminha de mãos dadas com nossa habilidade de medir a Natureza. Achar que a mente humana pode imaginar o mundo antes de medi-lo pode ocasionalmente dar certo. Mas, em geral, leva a mundos que existem apenas na imaginação.