domingo, 26 de outubro de 2003

Finito ou infinito

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No último dia 9, a prestigiosa revista científica britânica "Nature" (www.nature.com) publicou artigo de um grupo de cosmólogos liderados pelo francês Jean-Pierre Luminet que vem causando grande estardalhaço. Segundo Luminet e colaboradores, dados astronômicos recentes sugerem que o Universo não só é finito, mas com uma forma global -uma topologia- bem definida, dodecaédrica feito uma bola de futebol. Parece que até a forma do Universo nos lembra do que é realmente importante na vida, uma boa pelada.

Justamente na semana da publicação do artigo estava de passagem pelo Brasil e, no dia 9 mesmo, fui participar de um colóquio no Departamento de Física da USP. Claro, a pergunta foi feita. "E então, Marcelo, é finito ou infinito?"

Pensei no que sabemos a respeito. O grupo de Luminet baseou suas conclusões em dados obtidos principalmente pelo satélite WMAP, da Nasa (agência espacial norte-americana), cuja missão foi mapear em detalhe as flutuações na temperatura do banho de radiação que permeia o Universo. Flutuação aqui significa que o satélite mediu a temperatura em direções diferentes do céu e comparou os seus valores.

Essa radiação cósmica de fundo, como é chamada, é um fóssil de uma era importante na infância do Universo, quando foram formados os átomos de hidrogênio, em torno de 380.000 anos após o Big Bang. Sua existência havia sido proposta por George Gamow e colaboradores no final da década de 1940, como consequência de um Universo primordial muito quente e denso. Tão quente que, durante seus primeiros milhares de anos, elétrons e prótons, apesar de atraídos entre si eletricamente, não conseguiam formar átomos de hidrogênio. Feito um triângulo amoroso, onde a radiação, muito energética (os fótons), impedia a ligação entre elétrons e prótons.

Gamow mostrou que um Universo em expansão se resfriava. Depois, a radiação deixou os elétrons e prótons em paz, passando a viajar livremente pelo Universo. O satélite WMAP mediu as variações na sua temperatura, com precisão de um centésimo de milésimo de grau.
E o que isso tem a ver com a geometria cósmica? No Universo, a gravitação reina como a força suprema. Segundo a teoria da relatividade geral de Einstein, a geometria do espaço pode ser deformada pela presença de matéria. Com isso em mente, voltemos ao Universo primordial, quando a radiação cósmica começou a se propagar pelo cosmo. Nele, haviam grandes concentrações de massa, as sementes do que mais tarde viriam a ser as primeiras estrelas e galáxias.

Imagine que você seja um fóton dessa radiação. O Universo fica parecendo uma corrida de obstáculos, com poços mais ou menos profundos, dependendo da concentração local de massa. Se você cai em um poço, terá de gastar energia para sair dele. Quanto mais fundo, mais energia será gasta. Esses fótons cansados são mais frios do que os outros. Essa é a origem principal das flutuações de temperatura na radiação cósmica.

Antes dos dados do WMAP, tudo indicava que as flutuações de temperatura eram compatíveis com um Universo plano, onde flutuações em todas as direções eram possíveis. Isso mostrava que o Universo era "crítico", com a atração de sua matéria contrabalançando exatamente a taxa de expansão, em um cabo-de-guerra cósmico. Mas os dados do WMAP sugerem que o Universo seja "supercrítico", com um pequeno excesso de matéria. Esse excesso faz com que o Universo tenha uma geometria fechada.

Isso foi visto nos dados do WMAP como uma supressão nas flutuações em ângulos mais abertos: quando a antena aponta em direções do céu separadas por ângulos de mais de 90, as flutuações de temperatura praticamente desaparecem, como se elas não coubessem dentro. Pense em uma banheira cheia d'água. Qual a maior onda que cabe nela? A com o tamanho da banheira, certo? Pois bem, o mesmo com o Universo.

A forma dodecaédrica é a que explica melhor a supressão das flutuações a ângulos grandes. Se isso está certo ou não, ainda não podemos afirmar. Em 2007, outro satélite, mais bem equipado, será capaz de resolver a questão por definitivo. Nesse caso, a ciência terá respondido a uma pergunta que é tão antiga quanto a história do conhecimento, o tamanho e forma do cosmo em que vivemos.

domingo, 19 de outubro de 2003

O debate quântico

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Durante as primeiras três décadas do século 20, o misterioso comportamento dos átomos foi pouco a pouco sendo revelado por um grupo de físicos que inclui Einstein, Bohr, Dirac, Schrödinger, Heisenberg, Pauli e muitos outros. Foram 30 anos que abalaram profundamente os alicerces da física, transformando a nossa concepção de mundo. Os átomos e seus constituintes, elétrons, prótons e nêutrons, têm propriedades inteiramente diferentes dos objetos que vemos no dia-a-dia, como bolas, carros ou ondas na praia. O mundo quântico, como veio a ser chamada a realidade em que essas entidades existem, é um mundo borgiano, exótico e paradoxal.

No nosso mundo, o mundo clássico, objetos podem viajar continuamente pelo espaço. Planetas orbitam o Sol, pessoas andam nas calçadas (quando há espaço), carros viajam em estradas etc. Já um elétron, orbitando o núcleo de um átomo, tem seus movimentos limitados. A ele são dadas apenas certas órbitas, separadas por distâncias fixas, como se um átomo fosse uma cebola, feito de órbitas concêntricas. O elétron "pula" de órbita em órbita, como nós subimos e descemos escadas. Estranho.

Mesmo essa imagem é já simplificada. Na verdade, não podemos pensar no átomo com um minissistema solar, com o núcleo no centro, feito o Sol, e o elétron girando à sua volta, como um planeta. O elétron deve ser interpretado como uma entidade que pode ter vários padrões de vibração, feito uma corda de violão que pode ser tocada de muitas formas, cada uma dando origem a uma nota diferente. Cada padrão de vibração do elétron está relacionado a uma "órbita", ou melhor, estado, com energia bem definida.

O elétron, portanto, não gira em torno do núcleo, mas ressoa de formas diferentes, dependendo da energia. Esses padrões vibratórios são os estados quânticos, e os pulos entre as órbitas consistem em transições entre padrões vibratórios. De certa forma, o átomo é como um instrumento musical, com apenas algumas notas possíveis, cada uma correspondendo a um estado ou nível de energia.

Uma consequência direta desse modo de interpretar o elétron é que fica impossível dizer onde, precisamente, ele está em um determinado momento. Do mesmo modo, não podemos dizer precisamente qual a posição de uma onda do mar, apenas sua distribuição pelo espaço. Esta indeterminação intrínseca da mecânica quântica, a mecânica do mundo atômico, irritou e irrita muita gente.

Talvez "frustrar" seja um verbo melhor, porque no mundo clássico não temos esse problema. Quando queremos saber onde está um carro, basta olhar para ele, medir a sua distância e determinar a sua posição. Já com o elétron a coisa fica bem mais complicada. Primeiro, o átomo é tão pequeno que não podemos vê-lo como vemos uma bactéria no microscópio. O ato de ver o elétron interfere com a sua posição. É como se soubéssemos de uma barata escondida embaixo do sofá: quando formos cutucá-la para ver onde ela está, ela muda de posição.

No caso do elétron em torno de um átomo, o ato de ver significa enviar radiação eletromagnética ou outra partícula para interagir com ele. Quando isso ocorre, o elétron imediatamente escolhe uma órbita e fica lá. Você pode estar pensando: "Então sabemos onde ele está, não? Na órbita número dois ou três". Não. Se você repetir a experiência cem vezes, vai obter resultados diferentes. Tudo o que podemos dizer é que o elétron tem uma certa probabilidade de ser detectado nessa ou naquela órbita. A certeza que existe no mundo clássico desaparece no mundo quântico.

Einstein jamais engoliu isso. Ele achava que essa incerteza quântica, probabilística, era consequência de nossa ignorância: deve haver uma teoria mais fundamental que pode determinar exatamente o que vai ocorrer com o elétron, explicando essas probabilidades todas. Bohr dizia que não: a natureza é intrinsecamente indeterminada, e pronto. Einstein pode gostar ou não disso.

O debate foi ao laboratório, e teorias diversas, não-probabilísticas, foram testadas. Ganha sempre a indeterminação. Aparentemente, o mundo quântico é mesmo paradoxal, um mundo borgiano em que todas as observações são, em princípio, possíveis, com probabilidades diferentes.

domingo, 12 de outubro de 2003

O olho biônico

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É bem verdade que nem sempre isso é claro, mas o objetivo mais fundamental da ciência e de suas aplicações tecnológicas é aliviar o sofrimento humano. Essa mensagem se perde, muitas vezes, devido às aplicações científicas que fazem parte do seu lado sombrio.

Exemplos não faltam, do uso das tecnologias nuclear e bioquímica em armas de destruição de massa até efeitos causados pela industrialização, como a poluição e o efeito estufa. Hoje, para variar um pouco, gostaria de abordar a ciência do bem. Em particular, alguns dos avanços que vêm sendo realizados no campo da visão artificial. Por incrível que pareça, o olho biônico não é mais apenas assunto de filmes de ficção científica.
Dos muitos males que afligem a humanidade, a cegueira é um dos mais terríveis. Quem leu o livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, sabe até que ponto a sociedade se desintegra quando perde coletivamente a visão. (Claro, a intenção de Saramago era metafórica e não literal. De qualquer modo, as consequências são bastante óbvias.)

Como disse uma voluntária da pesquisa realizada por dois médicos americanos, Mark Humayun e Eugene de Juan, ambos trabalhando na Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles: "Eu tinha de pedir a alguém para me levar ao banheiro quando estava em um restaurante. Ou, se eu deixasse minhas chaves ou dinheiro caírem no chão, eu tinha de me pôr de quatro e apalpar o chão até encontrá-los". É a perpétua escuridão.

Essa voluntária sofre de retinite pigmentosa, uma doença que deteriora progressivamente a retina até causar a cegueira completa. O trabalho de Humayun e De Juan consiste em reproduzir artificialmente o conjunto de operações executadas pelo olho humano ao captar imagens e transformá-las em impulsos nervosos, que são transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro. O desafio é que o olho humano é uma máquina absolutamente fantástica.

A retina funciona mais como um computador do que como uma câmera. Os seus 130 milhões de células especializadas, chamadas cones e bastonetes, registram a luz comprimindo-a em um sinal analógico que é então transmitido digitalmente pelos mais de 1 milhão de neurônios do nervo óptico até o cérebro, onde a imagem é recriada.

Cada neurônio pode transmitir 200 pulsos por segundo. Portanto, um olho pode enviar 200 megabits de informação por segundo ao cérebro, 4.000 vezes mais do que um modem comum, dos usados hoje para conexão à internet. Claro que reproduzir algo com essa complexidade, capaz de gerar os detalhes e as cores que enxergamos normalmente, é impossível. Mas os primeiros olhos biônicos, mesmo que primitivos, começam já a dar grandes esperanças àqueles que sofrem de retinite pigmentosa e, possivelmente, outros tipos de cegueira.

Humayun e De Juan criaram uma rede com 16 eletrodos, que eles fixam cirurgicamente à retina do paciente. Esses 16 eletrodos fazem o papel de bastonetes e cones. Os eletrodos têm fios ultrafinos, implantados sob a pele, que são ligados a um pequeno disco magnético preso atrás da orelha do paciente. A outra parte do equipamento consiste em um par de óculos com uma câmera de vídeo em miniatura no seu centro.

A câmera está ligada a um computador do tamanho de uma carteira de bolso, que tem uma pequena antena afixada sobre o disco magnético atrás da orelha do paciente. Quando o paciente põe os óculos, a câmera capta a imagem, que é transformada pelo computador em impulsos elétricos. Esses impulsos são então emitidos pela antena como ondas de rádio até o disco magnético, estimulando os eletrodos implantados na retina do paciente. Ou seja, o dispositivo recria primitivamente os impulsos elétricos que são transmitidos através do nervo óptico até o cérebro.

Alguns pacientes, mesmo com essa rede de apenas 16 eletrodos, conseguem distinguir objetos grandes, janelas abertas, portas fechadas ou carros na rua. O objetivo é aumentar o número de eletrodos, de uma rede 4 por 4 (os 16 atuais) para uma de até 32 por 32 (1.024 eletrodos). Isso será suficiente para que o paciente possa ler e reconhecer rostos de pessoas. E transformar a perpétua escuridão em memória.

domingo, 5 de outubro de 2003

Sobre gotas e esferas

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Volta e meia é bom deixarmos de lado assuntos mais exóticos, como buracos negros, Big Bang, mecânica quântica, neutrinos ou supercordas, e pensarmos um pouco sobre as coisas que vemos todos os dias e que passam quase, ou totalmente, despercebidas. É mesmo uma pena que, em nossas vidas apressadas, mal tenhamos tempo de vislumbrar a beleza dos fenômenos simples, de apreciar a elegância das soluções que a natureza encontra para equilibrar função e forma. Por isso, hoje escrevo sobre uma forma que estamos cansados de ver, a gota d'água.

Para tornar o assunto um pouco mais romântico, imagine que você foi acampar com o seu amado (ou amada) na serra, em uma bela noite de junho, quando a temperatura já está mais fria. Como sabem aqueles que acampam, com o sol nascendo fica difícil dormir até tarde. Você sai da tenda para atender às suas necessidades biológicas e percebe que as plantas à sua volta estão todas decoradas por belíssimas gotas de orvalho, hemisférios líquidos resplandecentes, elegantemente simétricos.

Encantado, você começa a pensar nas várias gotas d'água que passam por sua vida, sem que você dê a menor bola: no suor sobre a sua pele, na condensação no chuveiro, no vidro embaçado do carro, nas gotas de chuva, nas lágrimas de sua amada (ou amado) durante um filme triste etc. Então você percebe, de um só golpe, que todas essas gotas têm uma coisa em comum: elas são esféricas ou, quando sobre uma superfície, hemisféricas. A questão passa a ser uma obsessão. Por que a esfera? O que determina essa forma e não outra?

Imagine uma gota d'água, suspensa no ar. A água é composta por moléculas combinando átomos de oxigênio e hidrogênio. A força que mantém as moléculas unidas é a atração elétrica entre os seus átomos integrantes. Uma molécula é eletricamente neutra, isto é, sua carga elétrica total é zero. Mas não exatamente.

O ponto é que a distribuição de carga na molécula nunca é perfeita: existe sempre um excesso (ou ausência) de carga, dando à molécula uma pequena força atrativa conhecida como força de Van der Waals. Isso significa que uma molécula dentro de uma gota é atraída pelas suas vizinhas em todas as direções, o que resulta em uma força total nula. Mas esse cancelamento das forças não ocorre para as moléculas na superfície da gota: afinal, não existem moléculas acima delas para exercer qualquer atração -só de ar, mas o efeito é mínimo. Ou seja, existe um desequilíbrio que faz com que as moléculas na superfície da gota sejam atraídas para seu interior.

Essa atração força as moléculas na superfície a se aproximarem mais, tornando-a mais densa. Esse efeito é conhecido como tensão superficial do líquido e é o responsável pela resistência que a superfície de um líquido oferece contra a sua expansão ou ruptura. Isso explica, por exemplo, por que uma agulha de metal, que é aproximadamente oito vezes mais densa do que a água, pode boiar. Diferentes líquidos têm diferentes tensões superficiais. A do mercúrio é quase seis vezes maior do que a da água, a 20C. Quando a temperatura aumenta e as moléculas estão mais agitadas, a tensão superficial diminui.

E o que isso tem a ver com a esfericidade das gotas? Como a tensão superficial causa uma contração das moléculas na superfície, ela faz com que sua área seja a menor possível. Para um volume fixo (a quantidade de líquido na gota), a forma geométrica com superfície de menor área que existe é a esfera. Portanto, é a tensão superficial que faz com que as gotas tenham essa forma. Se você cutucar a gota bem de leve, você verá que ela vai oscilar um pouco e depois voltará a ter a forma esférica.

A esfera reaparece em vários outros lugares: balões, planetas, estrelas. Nesses casos, as explicações para a forma são outras e ficam para depois. Mas uma coisa é sempre verdade: a esfera é muito comum porque ela constitui a solução mais econômica entre as tensões que existem nos objetos. A natureza, sábia que é, forja esse compromisso na forma mais simétrica que existe.