domingo, 12 de outubro de 2003

O olho biônico

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É bem verdade que nem sempre isso é claro, mas o objetivo mais fundamental da ciência e de suas aplicações tecnológicas é aliviar o sofrimento humano. Essa mensagem se perde, muitas vezes, devido às aplicações científicas que fazem parte do seu lado sombrio.

Exemplos não faltam, do uso das tecnologias nuclear e bioquímica em armas de destruição de massa até efeitos causados pela industrialização, como a poluição e o efeito estufa. Hoje, para variar um pouco, gostaria de abordar a ciência do bem. Em particular, alguns dos avanços que vêm sendo realizados no campo da visão artificial. Por incrível que pareça, o olho biônico não é mais apenas assunto de filmes de ficção científica.
Dos muitos males que afligem a humanidade, a cegueira é um dos mais terríveis. Quem leu o livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, sabe até que ponto a sociedade se desintegra quando perde coletivamente a visão. (Claro, a intenção de Saramago era metafórica e não literal. De qualquer modo, as consequências são bastante óbvias.)

Como disse uma voluntária da pesquisa realizada por dois médicos americanos, Mark Humayun e Eugene de Juan, ambos trabalhando na Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles: "Eu tinha de pedir a alguém para me levar ao banheiro quando estava em um restaurante. Ou, se eu deixasse minhas chaves ou dinheiro caírem no chão, eu tinha de me pôr de quatro e apalpar o chão até encontrá-los". É a perpétua escuridão.

Essa voluntária sofre de retinite pigmentosa, uma doença que deteriora progressivamente a retina até causar a cegueira completa. O trabalho de Humayun e De Juan consiste em reproduzir artificialmente o conjunto de operações executadas pelo olho humano ao captar imagens e transformá-las em impulsos nervosos, que são transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro. O desafio é que o olho humano é uma máquina absolutamente fantástica.

A retina funciona mais como um computador do que como uma câmera. Os seus 130 milhões de células especializadas, chamadas cones e bastonetes, registram a luz comprimindo-a em um sinal analógico que é então transmitido digitalmente pelos mais de 1 milhão de neurônios do nervo óptico até o cérebro, onde a imagem é recriada.

Cada neurônio pode transmitir 200 pulsos por segundo. Portanto, um olho pode enviar 200 megabits de informação por segundo ao cérebro, 4.000 vezes mais do que um modem comum, dos usados hoje para conexão à internet. Claro que reproduzir algo com essa complexidade, capaz de gerar os detalhes e as cores que enxergamos normalmente, é impossível. Mas os primeiros olhos biônicos, mesmo que primitivos, começam já a dar grandes esperanças àqueles que sofrem de retinite pigmentosa e, possivelmente, outros tipos de cegueira.

Humayun e De Juan criaram uma rede com 16 eletrodos, que eles fixam cirurgicamente à retina do paciente. Esses 16 eletrodos fazem o papel de bastonetes e cones. Os eletrodos têm fios ultrafinos, implantados sob a pele, que são ligados a um pequeno disco magnético preso atrás da orelha do paciente. A outra parte do equipamento consiste em um par de óculos com uma câmera de vídeo em miniatura no seu centro.

A câmera está ligada a um computador do tamanho de uma carteira de bolso, que tem uma pequena antena afixada sobre o disco magnético atrás da orelha do paciente. Quando o paciente põe os óculos, a câmera capta a imagem, que é transformada pelo computador em impulsos elétricos. Esses impulsos são então emitidos pela antena como ondas de rádio até o disco magnético, estimulando os eletrodos implantados na retina do paciente. Ou seja, o dispositivo recria primitivamente os impulsos elétricos que são transmitidos através do nervo óptico até o cérebro.

Alguns pacientes, mesmo com essa rede de apenas 16 eletrodos, conseguem distinguir objetos grandes, janelas abertas, portas fechadas ou carros na rua. O objetivo é aumentar o número de eletrodos, de uma rede 4 por 4 (os 16 atuais) para uma de até 32 por 32 (1.024 eletrodos). Isso será suficiente para que o paciente possa ler e reconhecer rostos de pessoas. E transformar a perpétua escuridão em memória.

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