sábado, 18 de agosto de 2012

Ciência, fé e extrapolação




 A crença de Newton na gravidade era tão grande que o levou a especular sobre a dimensão do Cosmo

 Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença? Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a fé como também influencia de que modo um indivíduo se relaciona com o mundo.

 Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o "desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido com o "conhecível".

 A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto, "conhecível"), e outra fora dele (e que é, portanto, "desconhecível" ou inescrutável).

 Tanto o cientista quanto o crente acreditam, se bem que a crença de cada um é bem diferente. A do cientista se manifesta de forma clara quando faz uma extrapolação de uma teoria ou modelo além de seus limites testados.

 Por exemplo, ao afirmar que "a gravidade atua da mesma forma em todo o Universo", ou "a teoria da evolução por seleção natural se aplica a todas as formas de vida, inclusive as extraterrestres", não sabemos se essas extrapolações são verdadeiras. Mas, dado o sucesso das teorias em que se baseiam, vale a pena apostar nelas. Testes futuros confirmarão (ou não) a veracidade da extrapolação.

 Sem esse tipo de fé no poder da extrapolação, a ciência não avançaria. Eis um exemplo. A teoria da gravitação universal de Newton, explicada no Livro 3 do seu monumental "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", deveria ter sido chamada de "teoria da gravitação do Sistema Solar", já que, no século 17, não havia como testá-la.

 Porém, Newton foi em frente e supôs que a força da gravidade-proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância- funcionaria em todo o Cosmo: "Se foi estabelecido que todo corpo na vizinhança da Terra gravita em direção à ela em proporção à sua matéria, teremos de concluir que todos os corpos exercem gravitação mútua".

 Mais tarde, em carta datada de 10 de dezembro de 1692 e endereçada a Richard Bentley, teólogo de Cambridge, Newton usa a mesma extrapolação para argumentar que o Universo deve ser infinito.

 Se a gravidade atuasse sobre um Universo finito, pensou Bentley, não causaria o colapso de toda a matéria no seu centro? Newton concordou que esse seria o destino da matéria num universo finito.

 Porém, sugeriu, "se a matéria estiver distribuída de forma homogênea em um Universo infinito, não colapsaria em uma única massa; um pouco de matéria se aglomeraria em um lugar, um pouco mais em outro, constituindo um número infinito de grandes massas, espalhadas pelas distâncias do espaço".

 A crença de Newton na natureza universal da gravidade era tão forte que o levou a especular com confiança sobre a extensão espacial do Cosmo. Einstein fez algo semelhante, mas temos de deixar essa história para outra semana.

 Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de arriscar e de estar errado. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.

domingo, 5 de agosto de 2012

Cem anos de mistério



 Raios cósmicos afetam de viagens espaciais à memória de computadores, mas sua origem ainda é controversa 

 Neste mês, físicos celebram o centenário da descoberta dos raios cósmicos, esses chuveiros de partículas vindas do espaço. Apesar de hoje conhecermos bem sua natureza e composição, muitas perguntas permanecem em aberto, especialmente com relação aos raios cósmicos ultraenergéticos.

 Que processo natural é capaz de acelerar partículas a energias milhões de vezes maiores do que as atingidas no colisor de partículas do Cern, onde foi descoberto o bóson de Higgs?

 Apesar do nome, raios cósmicos têm uma importância prática, já que produzem 13% da radioatividade natural a que somos expostos. Tripulações de aviões recebem o dobro dessa radiação, e astronautas mais ainda. Aliás, raios cósmicos são um dos fatores que complicam viagens espaciais mais longas, como a ida de humanos a Marte.

 Também interferem no funcionamento de computadores, causando erros de armazenamento de dados. Num estudo de 1990, cientistas da IBM estimaram que raios cósmicos induzem um erro para cada 256 megabytes de RAM por mês.

 Em agosto de 1912, o físico austríaco Victor Hess subiu num balão até 5,3 km medindo o fluxo de partículas vindas do céu. A expectativa era de que o fluxo diminuiria com a altitude, exatamente o oposto do que Hess descobriu. A conclusão era clara: as partículas vinham do espaço.

 Nas décadas seguintes, a composição dos raios cósmicos foi decifrada: 90% são prótons; 9% são núcleos dos átomos de hélio, as partículas alfa; 1% são elétrons. Uma pequena fração deles vem de núcleos atômicos forjados meros minutos após o Big Bang. Quando essas partículas se chocam com moléculas da atmosfera, a transformação de sua energia de movimento em matéria, segundo a fórmula E=mc2, cria uma reação em cadeia, um "chuveiro" de partículas.

 A maioria dos raios cósmicos vem do Sol. Mas o mecanismo que gera os mais energéticos ainda é desconhecido. Certamente são criados em eventos astrofísicos dramáticos. Dos vários candidatos, dois têm destaque: buracos negros gigantes que existem no centro de galáxias ou explosões de raios gama, os eventos cósmicos mais energéticos que conhecemos, provavelmente causados quando uma estrela colapsa e vira uma estrela de nêutrons ou um buraco negro, ou quando duas estrelas de nêutrons colidem.

 Um experimento recente da Universidade de Wisconsin, nos EUA, chamado de IceCube, apresentou evidências contra a hipótese de as explosões de raios gama serem responsáveis pelos raios cósmicos ultraenergéticos. A teoria prevê que raios gama e muitos neutrinos são gerados quando estrelas explodem e viram supernovas. Mas o IceCube não detectou sequer um neutrino vindo dessas explosões, o que torna difícil entender de onde vêm as partículas dos raios cósmicos.

 Por outro lado, o Observatório Pierre Auger, onde trabalham vários brasileiros, viu forte correlação entre núcleos de galáxias ativos -onde há buracos negros gigantes- e raios cósmicos ultraenergéticos. Mas o debate ainda contiua.

 Qualquer que seja a explicação, tais raios são uma ponte entre nós e os confins do espaço, reforçando nossa profunda relação com as grandes escalas do Cosmos.