domingo, 23 de dezembro de 2007

Ressuscitação e salvação



A ciência esteve perto de realizar o mito de Frankenstein


C om a chegada do Natal, achei apropriado escrever sobre as recentes descobertas científicas na área da genética que prometem revolucionar o futuro. Não, o assunto não é células-tronco. Em 2003, quando o genoma humano foi finalizado, cientistas descobriram algo surpreendente: nossos corpos possuem restos de tipos de vírus chamados retrovírus, fósseis de batalhas imunológicas travadas há bilhões de anos.

Esses retrovírus são organismos extremamente primitivos: trata-se essencialmente de tiras de material genético circundadas por um invólucro de proteínas. Não se pode nem dizer que sejam vivos. Parasitas, apenas se reproduzem quando conseguem invadir uma célula. Ali, fazem a única coisa que sabem fazer: inserir seus genes no DNA da célula de modo que, quando a célula se divide, eles vão com ela de carona, espalhando-se cada vez mais, numa espécie de colonização celular. O HIV, o vírus causador da Aids, que é um retrovírus, já causou mais de 25 milhões de mortes.

Os pedaços de retrovírus encontrados constituem 8% do genoma. Como comparação, apenas 2% são usados para produzir todas as proteínas que nos mantêm vivos. Esses fósseis genéticos contam a história da nossa evolução, das batalhas contra doenças que definiram nossa espécie. Recentemente, o cientista francês Thierry Heidmann ressuscitou um retrovírus que estava extinto havia centenas de milhares de anos. Para tal, extraiu pedaços do vírus e, como num quebra-cabeças, reconstruiu sua estrutura genética. O vírus, acordando de seu sono profundo, infeccionou ratos no laboratório, comprovando sua eficiência. Nunca a ciência esteve tão próxima de transformar o mito de Frankenstein em realidade.

A idéia de que cientistas possam ressuscitar doenças já extintas parece assustadora. Eu mesmo senti um calafrio quando li sobre isso pela primeira vez. Mas a razão para isso não é criar armas terríveis para subjugar a humanidade (se bem que o risco que isso ocorra está sempre presente). Ao contrário, é usar os retrovírus para curar doenças, a Aids entre elas.

Por que chimpanzés carregam o vírus da Aids mas nunca contraem a doença? Afinal, nosso genoma é praticamente idêntico ao deles. A diferença mais dramática é que os chimpanzés carregam em torno de 130 cópias do retrovírus extinto Pan troglodytes (PtERV), enquanto gorilas têm 80 e nós nenhuma. Quatro milhões de anos atrás, esse vírus infectou chimpanzés e gorilas. Mas não temos traço disso no nosso genoma. Foi então que cientistas da Universidade de Rochester, nos EUA, propuseram algo revolucionário: os processos evolutivos que nos protegeram do PtERV nos deixaram vulneráveis ao HIV.


Em particular, parece que a chave está num gene que nós temos e os macacos também, chamado TRIM5 . Nos humanos, esse gene produz uma proteína que destrói o PtERV. No macaco reso, ela protege contra o HIV. Após ressuscitar o PtERV, os cientistas provaram que a proteína produzida pelo TRIM5 pode proteger contra uma ou outra doença, mas não contra as duas ao mesmo tempo.

Quando nos separamos totalmente dos macacos, há 4 milhões de anos, desenvolvemos uma proteção eficiente contra o PtERV. Mas essa proteção nos deixou vulneráveis ao HIV. O objetivo agora é tentar desenvolver uma droga que atue do mesmo modo que a proteína que protege os macacos contra o HIV. Ou seja, ressuscitação e salvação à moda científica. [Para escrever este artigo, inspirei-me na matéria de Michael Specter, "Darwin's Surprise", publica na revista americana "The New Yorker", dia 3 de Dezembro de 2007.]

domingo, 16 de dezembro de 2007

Testando a relatividade


Não adianta uma idéia ser "bela" sem passar nos testes

Quando perguntaram a Einstein se ele estava preocupado com possíveis erros na teoria da relatividade, ele respondeu: "De modo algum. A teoria é bela demais para estar errada".

Isso é que é confiança! Em 1915, Einstein havia sugerido um novo modo de pensar sobre a gravidade que ficou conhecido como teoria da relatividade geral. Ela substituía a idéia prevalecente na época, sugerida por Isaac Newton em 1686, que dizia que a força gravitacional entre dois objetos com massa agia à distância, sem que os objetos se tocassem. Einstein propôs que a gravidade pode ser interpretada como resultado de uma deformação no espaço devido à presença de um objeto com muita massa.

Quanto mais massa tiver o objeto, maior a curvatura que ele causa no espaço. Como quando nos sentamos num colchão; quanto mais pesados somos, mais o colchão se curva em torno do nosso traseiro.

Em física, idéias novas, especialmente as mais radicais, são sujeitas a inúmeros testes. O que diferencia a ciência é justamente essa insistência em que as hipóteses sejam testadas e verificadas em laboratórios ou, no caso da astronomia, por meio de observações com telescópios e outros instrumentos capazes de colher informação do céu. Não adianta que uma idéia seja "bela" ou extremamente elegante: sem ser verificada, não é aceita pela comunidade científica.

Claro, em alguns casos -especialmente quando a tecnologia é insuficiente-, idéias sobrevivem durante muitos anos sem serem testadas. É o caso da teoria das supercordas nos dias de hoje.
No caso da relatividade geral, o próprio Einstein havia proposto três testes. Um era a explicação para anomalias na órbita do planeta Mercúrio que não eram explicadas pela teoria newtoniana.

Outro, que a luz proveniente de estrelas distantes seriam desviadas ao passar na vizinhança do Sol. Isso porque o Sol, com sua massa gigantesca, deforma a geometria do espaço a sua volta, o que cria um efeito mensurável na Terra. O terceiro teste, mais complicado, dizia que a luz (ou melhor, a radiação eletromagnética) também era afetada pela gravidade: quanto maior a gravidade, menos energia tem a luz. Como a luz vermelha tem menos energia do que a azul, o efeito ficou conhecido como "desvio para o vermelho gravitacional".

Na década de 60, essa previsão da teoria foi testada com sucesso nos EUA. A teoria explicava também a órbita de Mercúrio, e o desvio da luz de estrelas foi verificado em inúmeras oportunidades, inclusive no Brasil em 1919. Mesmo assim, a teoria continua sendo testada.

A insistência em novos testes vem do fato de nenhuma teoria ser perfeita, existindo sempre dentro de limites de validade. A própria teoria da relatividade explica coisas que a teoria de Newton não explica, como os três testes acima. A esperança é que, ao expor a teoria a testes cada vez mais sensíveis, será possível vislumbrar onde ela falha. Essas falhas, por sua vez, apontam para novas teorias, novas idéias sobre a natureza. É sempre bom lembrar que a ciência é uma narrativa que se aprimora constantemente.

Recentemente, a teoria de Einstein foi sujeita a mais um teste: medindo a distância até a Lua com precisão de um centímetro, cientistas refletiram um raio laser num espelho deixado na superfície lunar por astronautas da missão Apollo 11. (Pondere este feito tecnológico). Mais uma vez, as correções propostas por Einstein passaram pelo teste. Com isso, teorias que tentam generalizar as idéias da relatividade ficam cada vez mais restritas.

Mas como nenhuma teoria é perfeita, nem mesmo a relatividade, a busca continua.

domingo, 9 de dezembro de 2007

A mão da criação



Nos animais e plantas todos os aminoácidos são canhotos


E u sei que o título dessa coluna é meio apelativo. Peço desculpas. Mas agora que tenho sua atenção, explico do que se trata. A vida, feito as suas mãos, pode ser destra ou canhota. Quer dizer, não a vida em si, mas as moléculas que compõem os seres vivos. Que existem preferências já sabemos, mesmo ao nível macroscópico. Por exemplo, cerca de 15% da população é canhota; a maioria dos moluscos que tem uma concha espiralada tem, também um sentido prioritário de rotação (algo que vale a pena confirmar).

O mistério dessa chamada "quiralidade" é que, no laboratório, quando os aminoácidos e os açúcares que compõem as proteínas e DNA dos seres vivos são sintetizados artificialmente, moléculas com orientação destra e canhota aparecem na mesma proporção, 50% de cada. Nos animais e plantas todos os aminoácidos são canhotos e todos os açúcares são destros. Por que essa assimetria fundamental? Será que ela é determinante para a vida? Será que, se seres vivos forem achados em outros planetas deste e de outros sistemas estelares, terão a mesma assimetria?

Quando cientistas se deparam com esse tipo de desequilíbrio no mundo natural, procuram logo por uma explicação lógica. Dizer que isso é uma coincidência, mesmo que uma possibilidade viável, não é muito interessante. Além do mais, só podemos afirmar que algo é uma coincidência após eliminarmos todas as outras possibilidades, o que não é nada fácil. Melhor é imaginar que existe algum mecanismo, alguma força que seleciona a orientação espacial das moléculas.

A hipótese mais conhecida usa uma assimetria da física de partículas, ligada ao decaimento radioativo: das quatro forças fundamentais da natureza, a gravitacional, a eletromagnética e as forças nucleares forte e fraca, apenas a última exibe uma assimetria entre as orientações espaciais. Portanto, nada mais natural do que tentar usar essa assimetria como explicação.
Se estiver correta, o efeito seria o mesmo por todo o Universo. O problema é que a força fraca atua a distâncias subnucleares, isto é, dentro do núcleo atômico. É difícil imaginar que ela possa ter algum papel em escalas moleculares, que são muito maiores. Fora isso, o efeito é muito muito pequeno, e pode ser corrompido por outros maiores. Esse colunista provou recentemente que essa explicação é inviável. Temos que procurar por um outro caminho, então.

Outra idéia é que luz ultravioleta e outros tipos de radiação podem influenciar a orientação espacial das moléculas. De fato, esse efeito foi demonstrado no laboratório com vários tipos de radiação. Mas como usar essa idéia na vida primitiva, ou mesmo antes da vida, em eras "pré-bióticas"? Se a nuvem rica em hidrogênio que gerou o sistema solar há pouco menos de cinco bilhões de anos tiver passado por uma região no espaço rica nesses tipos de radiação, o efeito pode ser ativado. Especula-se que, talvez, a nuvem tenha passado perto de uma estrela de nêutrons, que pôde irradiá-la, ou numa região onde estrelas nascem, também rica em radiação.

O problema, aqui, é encontrar essas estrelas e identificar a radiação correta; fora isso, ela tem que sobreviver durante muito tempo para ser efetiva, algo que não é fácil. De qualquer forma, foram encontrados vestígios de aminoácidos com orientação como a dos da Terra em meteoritos provenientes dos confins do Sistema Solar.

Será que fomos todos irradiados e a orientação molecular da vida na Terra veio do espaço? Ainda não sabemos. Eu tenho minha própria teoria, mas hoje não sobrou espaço para explicá-la. Fica para a próxima!

domingo, 2 de dezembro de 2007

O despertar de uma nova era



Parece que o debate sobre embriões já é desnecessário


D ia 21 de novembro, jornais do mundo inteiro anunciaram uma descoberta absolutamente fantástica: cientistas conseguiram criar células-tronco a partir de células da pele. Alguns chegaram até a comparar o evento ao vôo dos irmãos Wright com seu "primeiro" avião. Ou seja, uma nova tecnologia capaz de transformar o mundo. (As aspas são um lembrete de que a pessoa que fez essa asserção é, obviamente, norte-americana. Pois nós, brasileiros, sabemos que essa glória pertence ao nosso Santos Dumont.)

Vale lembrar que a importância das células-tronco vem da sua capacidade de se transformar nas células de todos os tecidos do corpo humano; musculares, nervosas, ósseas etc. Com isso, elas podem ser usadas para gerar tecidos novos, saudáveis, em pessoas afligidas por vários males, da doença de Parkinson e outras enfermidades degenerativas do sistema nervoso à diabetes. As células-tronco são uma espécie de pan-célula, uma célula que é potencialmente todas as células. Basta que seja dirigida nessa ou naquela direção, como trens em trilhos.

É justamente desse poder de transformação das células-tronco que nasce a controvérsia que tem marcado a pesquisa nessa área da biologia. Não é à toa que as células-tronco são encontradas em embriões; afinal, nesse estágio primitivo da vida é necessário justamente ir do mais geral ao mais especializado, que é o que as células-tronco são capazes de fazer. A questão que é levantada em debates que vão do ético e religioso ao político vem do fato que a extração dessas células de embriões acaba por destruí-los. Posições mais conservadoras afirmam que isso é equivalente a assassinar um ser humano, um crime. O governo norte-americano bloqueou fundos de pesquisa que envolvam a destruição de embriões.

No Brasil, o uso de embriões está sendo questionado pelo Ministério Público Federal no Superior Tribunal de Justiça. Toda uma revolução na medicina tem que esperar pela nossa lenta evolução moral. E a controvérsia continuou mesmo após cientistas afirmarem que extrairiam células-tronco apenas daqueles embriões que seriam destruídos de qualquer forma nas clínicas de fertilização.

Agora, parece que esse debate torna-se desnecessário. Ao conseguir transformar células da pele em células-tronco ou, ao menos, em células que tem o mesmo potencial de transformarem-se em células de vários tecidos do corpo humano, a questão "criminal" imediatamente desaparece.

Se as técnicas vingarem -e tudo indica que vingarão- qualquer pessoa poderá ter o seu kit de células-tronco, para ser usado em caso de necessidade, sem preocupações éticas. A técnica utilizada demonstra a incrível sofisticação da pesquisa em genética: vírus foram usados para reativar quatro genes adormecidos numa célula da pele, essencialmente reprogramando a sua função. Meio parecido com o que é feito com programas de computador quando são editados.
Existem, claro, muitos desafios técnicos pela frente: alguns dos genes sofrem mutações cancerígenas, outros causam tumores; a margem de sucesso ainda é relativamente pequena. Mas a pesquisa científica é assim mesmo, sempre obscura no início.

A descoberta alivia o peso político que pontua a questão do uso medicinal das células-tronco. Mas, a meu ver, o debate ético permanecerá. Toda nova tecnologia tem seu lado luminoso e seu lado sombrio. Será fácil manipular não só os genes mas o medo que as pessoas têm do novo. Infelizmente, a história nos mostra que toda grande revolução do conhecimento encontra forte resistência daqueles que preferem viver no passado.

sábado, 1 de dezembro de 2007

A estrela de Belém


Viaje no tempo e descubra detalhes sobre os fenômenos que iluminaram os céus do hemisfério norte à época do nascimento de Jesus

"Em 12 de agosto do ano 3 a.C., ocorreu uma conjunção muito luminosa dos planetas Júpiter e Vênus na constelação do Leão"

Poucos símbolos são tão evocativos quanto a Estrela de Belém. Todo presépio com a cena da Natividade mostra os Reis Magos, vindos do leste, guiados pela estrela cujo brilho dominava os céus, adornando a noite com o augúrio de um bom presságio, o nascimento de Jesus. Já bem antes dessa época, os céus representavam a escrita dos deuses. Para os babilônios, que inventaram a astrologia, a posição relativa dos planetas e estrelas era carregada de significado, determinando o futuro de um rei ou a fertilidade das colheitas vindouras. Para os chineses, cometas eram um sinal de que algo de terrível iria acontecer. Sem compreender o aparecimento imprevisível de luminárias celestes, as civilizações antigas atribuíam a elas mensagens divinas, boas e más.

O que sabemos da Estrela de Belém? Segundo o Evangelho de São Mateus, a melhor pista que temos, deduzimos que deve ter sido um objeto celeste novo, já que serviu para guiar os Reis Magos do leste. A "estrela" apareceu duas vezes: primeiro, quando os reis tiveram uma audiência com Herodes em Jerusalém; depois, ela "pairou" sobre Belém. Mateus não diz que a estrela era particularmente brilhante, e Herodes não a viu, pois perguntou aos reis quando ela surgiu.

Temos, claro, que supor que a "estrela" de fato existiu e que não era uma aparição sobrenatural. Nesse caso, a questão que vários astrônomos e historiadores da ciência vêm se perguntando há anos é: que tipo de fenômeno astronômico poderia ter causado a aparição celeste?

Para obtermos uma resposta, temos que datar o nascimento de Jesus. Isso é um tanto complicado, pois não existe um registro definitivo. O período mais aceito pelos historiadores é entre os anos 8 e 1 a.C. - ou seja, Jesus provavelmente nasceu antes de Cristo. Mesmo esse intervalo é ainda muito longo. Afinal, coisas interessantes ocorrem nos céus todos os anos. Fontes mais recentes localizam o nascimento em torno de 3 a.C. Quais os candidatos astronômicos da época para a Estrela de Belém?

Se supormos que o evento foi luminoso o suficiente para ser visto em outros países do hemisfério norte, podemos descartar a possibilidade de que a estrela era um cometa ou uma explosão de supernova. Ambos os eventos teriam sido registrados por astrônomos em outras partes do mundo, especialmente na China, onde essas coisas eram levadas a sério. Ademais, cometas eram considerados um mau presságio. Se tivesse sido uma supernova, poderíamos ver seus vestígios até hoje. Por exemplo, a Nebulosa do Caranguejo corresponde aos restos de uma supernova que explodiu no ano 1054 e que foi devidamente registrada por astrônomos chineses e árabes.

Outra possibilidade sugerida é uma chuva de meteoros ou mesmo um meteoro de órbita irregular. A probabilidade, porém, é muito pequena, pois meteoros são vistos por pouco tempo, e a "estrela" pairou nos céus por um período relativamente longo.

Que possibilidade resta, então? Se olharmos para o céu em torno de 3 a.C. - e isso é possível hoje com computadores que recriam exatamente a posição dos planetas e estrelas em qualquer momento do passado -, encontramos um candidato para o evento: uma conjunção planetária especialmente brilhante. Conjunções ocorrem quando vemos dois ou mais planetas ocuparem o mesmo ponto no céu. Na verdade, estão muito distantes, mas, vistos da Terra, parecem se sobrepor. No ano 3 a.C., ocorreram nada menos do que nove conjunções. Mas, no dia 12 de agosto, ocorreu uma conjunção dos planetas Vênus e Júpiter na constelação do Leão, que, além de muito luminosa, tinha um forte significado astrológico. E devemos lembrar que os "reis" eram, muito provavelmente, astrólogos. Para os babilônios, Vênus era Ishtar, a deusa da fertilidade, e Júpiter, o planeta-rei. O casamento celeste deu origem ao nascimento do menino-deus.

Não podemos comprovar, ao menos sem mais dados históricos, se foi esse o evento astronômico que transformou-se na Estrela de Belém. De qualquer forma, é importante meditar sobre a relação entre a Bíblia e a História sob a luz da ciência.