domingo, 25 de dezembro de 2011

Quando mito e ciência se encontram

Muito do que é narrado nas tradições religiosas, como a estrela de Belém, é inspirado por eventos reais

No seu belíssimo "A Adoração dos Magos", o pintor renascentista italiano Giotto di Bondone reproduz a icônica visita dos reis magos à manjedoura onde está o bebê Jesus. Acima, vemos a estrela de Belém, representada como um cometa dourado. Giotto observou o cometa de Halley em 1301, o que influenciou sua obra de 1304.

O que ele não sabia é que o cometa havia aparecido também em 12 a.C.. A conexão que Giotto fez entre o cometa e a famosa estrela foi criticada por muitos, incluindo São Tomás de Aquino. (Quem estiver interessado em visões astronômicas de fim de mundo consulte o meu livro "O Fim da Terra e do Céu"). Cometas não brilham durante o dia, ele argumentou; fora isso, cometas são um mau agouro: "No sétimo dia todas as estrelas, tanto planetas quanto estrelas fixas, cairão dos céus com caudas em fogo, como cometas", escreveu.

A crença de que fenômenos celestes têm significado profético integra inúmeras culturas. Os céus, sendo a morada dos deuses (ou de Deus), espelham as intenções divinas, sejam elas boas ou más.

O grande astrônomo alemão Johannes Kepler, tentando justificar o evento bíblico em termos astronômicos, mostrou que Júpiter e Saturno sofreram três conjunções (estavam perto um do outro) no ano 7 a.C.. Ele imaginou que essas conjunções criassem uma nova, que seria o nascimento de uma estrela. (Hoje sabemos que o fenômeno nova ocorre quando uma estrela do tipo anã branca suga matéria de uma companheira a ponto de acumulá-la sobre sua superfície em altas densidades. O hidrogênio acumulado funde-se em hélio, criando uma nova, que brilha de 20 a cem dias).

Várias tentativas já foram feitas para se associar a estrela de Belém a um evento astronômico, nenhuma ainda conclusiva, se bem que muitas são sugestivas. Isso não tira a importância mítica do evento bíblico, mas mostra que muito do que é narrado nas tradições culturais e religiosas da humanidade é inspirado por eventos reais.

Outro exemplo curioso é o das renas voadoras, cuja origem já foi ligada aos efeitos de um cogumelo alucinógeno (capaz de causar delírios), o Amanita muscaria, que era, e presumivelmente ainda é, consumido em rituais xamânicos na Lapônia e em certas regiões da Sibéria. O cogumelo tem o aspecto que vemos nos contos de fada, vermelho com bolinhas brancas, e aparece frequentemente em lendas de várias culturas europeias. Entre os seus vários apelidos, meu favorito é "ovolo matto" (ovo louco), da região italiana de Trentino.

O etnobotânico Jonathan Ott chegou a especular que as cores do cogumelo inspiraram as da roupa do Papai Noel e que as renas davam a impressão de voar após ingerir o cogumelo e agir de forma descontrolada. Ou talvez os pastores e caçadores da Lapônia viam tais coisas após ingerir o cogumelo.

A cultura popular-religiosa ou não-é um rico repositório de experiências e narrativas, muitas vezes inspirada pelo que as pessoas veem (ou pensam que veem) e sentem (ou pensam que sentem). Se a ciência pode iluminar a origem dessas histórias, isso só adiciona à sua magia. Neste ano, pendurei um Amanita muscaria na árvore de Natal. A estrela, claro, já está no topo.

domingo, 18 de dezembro de 2011

As quatro eras da astrobiologia

Somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso eles existam; toda vida vem da mesma fonte

Domingo passado, dei a palestra inaugural na Escola Avançada de Astrobiologia de São Paulo, um evento que reuniu cientistas de ponta e alunos de pós-graduação dos quatro cantos do planeta. Minha tarefa era ligar a cosmologia, que estuda a origem e a evolução do Universo, à astrobiologia, que se ocupa da origem da vida na Terra e da possibilidade de vida extraterrestre.

Como ponto de partida, é bom lembrar que nós, e qualquer outro tipo de vida que por acaso exista no Cosmo, somos produto da mesma física e química. Nisso, somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso existam. Toda vida vem da mesma fonte.

As criaturas vivas são aglomerados de moléculas capazes de criar cópias de si mesmos.

Como moléculas são coleções de átomos, e átomos são feitos de prótons, nêutrons e elétrons, a vida precisa, como ingredientes essenciais, das partículas de matéria que preenchem o Cosmo.

A primeira era foi, portanto, a era física, começando com a origem do Universo e se estendendo até a formação das primeiras estrelas algumas centenas de anos após o Big Bang. Foi nessa era que surgiram os elétrons, prótons e nêutrons que, primeiro, formaram os núcleos atômicos mais leves, isótopos de hidrogênio, de hélio e de lítio. Em torno de 400 mil anos após o Big Bang, prótons e elétrons combinaram-se para formar átomos de hidrogênio, os mais simples e abundantes do Universo. Esse átomos aglomeraram-se em nuvens gigantescas que, com a ajuda da gravidade, formaram as primeiras estrelas: enormes e de curta vida. Esses monstros estelares explodiram com tremenda violência, gerando os átomos que preenchem a Tabela Periódica, o carbono, o oxigênio, o nitrogênio e os outros ingredientes de todos os seres vivos. Aqui se inicia a segunda era, a era química.

Esses átomos espalharam-se pelo espaço interestelar, semeando as galáxias nascentes que, já no segundo bilhão de anos após o Big Bang, encheram o Cosmo. Nessas galáxias, o mesmo processo de vida e morte das estrelas foi se repetindo, e mais elementos químicos foram forjados. Junto a elas, nasceram planetas e suas luas. A diversidade de mundos é espantosa, cada qual semeado com sua dose de elementos químicos. Naqueles onde existe água líquida e uma química complexa, a vida pode ter surgido. Começou aqui a terceira era, a era biológica.

Sabemos que, em torno de 3,8 bilhões de anos atrás, a vida surgiu aqui na Terra, composta dos restos de estrelas que explodiram em nossa vizinhança cósmica. Possivelmente, ela surgiu também em outros lugares, tanto antes quanto depois de ter surgido aqui. A quarta era, que chamo de era cognitiva, é bem mais recente, começando há menos de meio milhão de anos na Terra. Pode ter começado um ou dois bilhões de anos antes daqui, mas não muito mais do que isso. A vida demora a evoluir de seres unicelulares a seres multicelulares e, destes, a seres inteligentes, se é que o faz. A diversidade da vida em um planeta depende de sua história. A vida que encontramos aqui só existe aqui. Mesmo se a vida for de fato comum no Cosmo, é pouco provável que a vida inteligente o seja. Deste modo, somos únicos no universo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A 'partícula de deus' continua arredia

O bóson de Higgs é o elo perdido do modelo que descreve tudo o que sabemos sobre a matéria

A cada dia, aumentam as expectativas de que algo precisa acontecer no LHC (do inglês Large Hadron Collider, Grande Colisor de Hádrons), o gigantesco acelerador de partículas do Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear). Desenhado para encontrar, principalmente, uma partícula chamada "Higgs", em homenagem ao físico inglês Peter Higgs, que propôs sua existência, até o momento os experimentos não têm nada a mostrar.

Pelo contrário, os resultados parecem delimitar a massa da hipotética partícula a valores que contrariam muitos cálculos. Talvez a constituição da matéria seja mais estranha do que suspeitamos.

É conveniente falar da massa de partículas pesadas em unidades da massa do próton, o integrante principal do núcleo de todos os átomos. O limite atual da massa da partícula Higgs, anunciado no dia 18 de novembro passado, é menor do que a de 141 prótons, provavelmente em torno de 120 prótons. Se a Higgs existir, claro. Porque devemos sempre lembrar que físicos não ditam como funciona a natureza.

Uma partícula como Higgs ajudaria a compreensão de como outras partículas (como quarks e elétrons) têm as massas que têm, mas não significa que a Higgs existe.

Mas antes de continuarmos, um pequeno aparte sobre esse estranho apelido, "partícula de deus". Claro que uma partícula de matéria não tem nada a ver com Deus. "A Partícula de Deus" é o título do livro do prêmio Nobel Leon Lederman, diretor do laboratório americano Fermilab quando fiz meu pós-doutorado lá. O título foi sugerido pelo seu editor, que não gostou do título que ele havia proposto. Lederman queria chamar o livro de "The God Damned Particle" ("maldita partícula") porque ninguém consegue encontrá-la. Mas o editor achou que "The God Particle" venderia muito mais. Acho que ele tinha razão.

A Higgs é o elo perdido do Modelo Padrão, um conjunto de resultados que descrevem em detalhe tudo o que sabemos sobre as partículas que compõem a matéria e suas interações. Ele é um triunfo da física do século 20, reunindo décadas de grandes descobertas experimentais e teóricas. Sua precisão é tamanha ao descrever como as partículas interagem entre si que ninguém, ou quase ninguém, duvidava de que a Higgs, ou algo como ela, seria encontrada. A realidade, entretanto, é outra: não só a Higgs não apareceu, como, se existir, terá uma massa que não seria a mais "natural".

A busca por uma partícula tão elusiva é um excelente modelo de como a ciência funciona. Uma hipótese é proposta, prevendo a existência de uma nova entidade natural. Cálculos detalhados são feitos, tentando isolar as propriedades dessa entidade hipotética. Experimentos são montados para testar a hipótese, ou seja, para tentar encontrar a possível nova entidade. Em caso afirmativo, ótimo. Em caso negativo, há duas alternativas: ou a entidade não existe ou a hipótese deve ser refinada. Esse refinamento gera novas hipóteses que também precisam ser testadas.

Esse processo eventualmente leva a novas explicações de como a natureza funciona. Um resultado negativo muitas vezes abre caminhos inesperados, ampliando nosso conhecimento do Universo. Em ciência, crise leva ao novo.

sábado, 26 de novembro de 2011

O vazamento

Toda exploração nos limites do conhecimento envolve riscos enormes. A do pré-sal não será diferente

Aconteceu o primeiro desastre sério da história recente da exploração petrolífera da costa do Rio. Cheguei aqui nesta semana e fiquei horrorizado com as manchetes sobre o vazamento de óleo no campo de Frade, em poço explorado pela Chevron na bacia de Campos, a 370 quilômetros do continente.

O vazamento ocorre a uma profundidade de 1,2 km e, até quarta-feira, havia liberado, segundo a empresa, em torno de 2.500 barris após 15 dias. Existem disparidades entre o que a ANP (Agência Nacional de Petróleo), os observadores da ONG SkyTruth e os porta-vozes da Chevron andam dizendo.

Segundo a SkyTruth, o vazamento foi de cerca de 15 mil barris, muito superior ao declarado pela companhia. Enquanto a Chevron diz ter engajado 18 navios em rodízio para a limpeza da região, a Polícia Federal do Rio diz que havia apenas um. Para piorar, a empresa contratada para perfurar o poço, a Transocean, é a mesma que operava a plataforma Deepwater Horizon, responsável pelo maior vazamento da história americana, no golfo do México, no ano passado.

Consequentemente, a ANP suspendeu as atividades da Chevron no Brasil e negou à companhia a possibilidade de perfurar novo poço para explorar a camada do pré-sal. Com uma reserva estimada em 50 milhões de barris, o pré-sal é uma das maiores descobertas dos últimos 30 anos. Não é coincidência que, quando voo para o Rio hoje, noto que uma fração razoável dos passageiros trabalham para a indústria petrolífera e suas subsidiárias.

Com o aumento da população mundial e, consequentemente, do consumo de petróleo e seus derivados, fica cada vez mais difícil achar reservas de fácil exploração. Mas o pré-sal realmente bate todos os recordes. Com profundidade de 6 a 7 quilômetros da superfície e passando por uma camada de sal com espessura variando de 200 metros a 2 quilômetros, a extração será extremamente difícil, desafiando a tecnologia atual.

Desde que ouvi falar do pré-sal pela primeira vez, tenho tido pesadelos sobre a possibilidade concreta de desastres ecológicos de dimensões catastróficas, capazes de comprometer a costa do Brasil desde o Espirito Santo até Santa Catarina.

Ouvimos muito sobre a euforia da descoberta e sobre como é viável a extração do petróleo sob essas condições complicadas, mas muito pouco sobre medidas tomadas caso vazamentos ocorram, o que me parece inevitável. Toda exploração nos limites do conhecimento envolve riscos enormes. O pré-sal não será uma exceção para esse fato.

Enquanto outras economias debatem como ir além do uso de combustíveis fósseis, o Brasil, com sua vasta rede hidrelétrica e potencial solar e eólico, parece estar querendo ir para trás. Claro que todos querem os royalties que vêm da exploração do petróleo, sempre com a visão do lucro a curto prazo. Mas acidentes como esse, no campo de Frade, mostram os perigos da exploração desenfreada e sem medidas rígidas de controle.

O pré-sal pode vir a ser a galinha dos ovos de ouro do Brasil. Vale lembrar que, na fábula de Esopo, o dono da galinha, ganancioso e impaciente, acaba por matá-la para pegar os ovos que acreditava ter no ventre. E acaba sem nenhum.

domingo, 13 de novembro de 2011

O cérebro determina o que é real?

Estamos cercados de radiação eletromagnética que não vemos. O essencial é invisível aos olhos

Para que eu esteja escrevendo estas palavras, uma coreografia desconhecida organiza a ação coletiva de milhões de neurônios no meu cérebro: ideias emergem e são expressas em palavras, que datilografo no meu laptop graças à coordenação detalhada dos meus olhos e músculos. Algo está no comando, uma entidade que chamamos de "mente".

Segundo a neurociência moderna, nossa percepção do mundo é sintetizada em regiões diferentes do cérebro. O que chamamos corriqueiramente de "realidade" resulta da soma integrada de incontáveis estímulos coletados pelos cinco sentidos, captados no mundo exterior e transportados para nossas cabeças pelo sistema nervoso.

A cognição, a experiência concreta de existirmos aqui e agora, é uma fabricação de incontáveis reações químicas fluindo por bilhões de conexões sinápticas entre neurônios.

Eu sou e você é uma rede eletroquímica autossustentável, que se define através de sua atuação na malha de células biológicas que constituem o nosso corpo. Mas somos muito mais do que isso.

Somos todos diferentes, mesmo se feitos da mesma matéria-prima. A ciência moderna destituiu o velho dualismo cartesiano de matéria e alma em favor de um materialismo estrito. Hoje, afirmamos que o teatro do ser ocorre no cérebro e que o cérebro é uma rede de neurônios que se acendem e apagam como luzes numa árvore de Natal.

Ainda não temos ideia de como essa coreografia neuronal engendra a nossa sensação de existirmos como indivíduos. Vivemos nossas vidas convencidos de que a separação entre nós e o mundo à nossa volta é clara. Precisamos dela para construir uma visão objetiva da realidade que nos cerca.
No entanto, nossa percepção dessa realidade, na qual baseamos nossa sensação de existir como indivíduos, está longe de ser completa. Nossos sentidos capturam apenas uma pequena fração do que realmente ocorre à nossa volta. Trilhões de neutrinos vindos do coração do Sol atravessam nossos corpos a cada segundo.

Estamos cercados por radiação eletromagnética de todos os tipos-ondas de rádio, infravermelha, micro-ondas-sem nos dar conta disso. Sons escapam da nossa audição, grãos microscópicos de poeira e bactérias são invisíveis aos nossos olhos. Como disse a raposa ao Pequeno Príncipe: "O essencial é invisível aos olhos".

Nossos instrumentos em muito ampliam nossa visão, permitindo-nos "ver" o que escapa aos nossos sentidos. Mas a tecnologia tem limites, mesmo que esteja sempre avançando. Portanto, uma grande fração do que ocorre escapa e escapará à nossa detecção. O que sabemos sobre o mundo depende do que podemos medir e detectar.

Quem, então, pode determinar que sua sensação do real é a verdadeira? O indivíduo que percebe a realidade apenas com os sentidos? Ou o que amplifica sua visão com instrumentos diversos?

Obviamente, essas pessoas verão coisas diferentes. Se compararem o que chamam de realidade material, o conjunto das coisas que existem à sua volta, irão discordar completamente. Qual dos dois está certo? Eu proponho que nenhum está. Mas vamos ter de continuar essa conversa na semana que vem.

domingo, 6 de novembro de 2011

O que é o espaço?

O espaço vazio não existe: há um vácuo de flutuações de energia capazes de criar partículas de matéria

DE VEZ em quando é bom parar e refletir sobre coisas que pensamos ser triviais. Com frequência, descobrimos que o que tomamos como simples é bem mais complicado do que parece. Esse é o caso do conceito de espaço na física e na matemática.

Todo mundo tem uma noção intuitiva de espaço: é o que separa as coisas. Sem ele, tudo estaria embolado no mesmo lugar. Portanto, de acordo com essa definição, para entender o que é espaço implicitamente precisamos de outros objetos.

Obviamente, é difícil compreender o que é o espaço vazio, já que nesse caso não existem objetos distantes entre si. Mas conhecemos intuitivamente o seu significado: uma região sem qualquer matéria. Ou seja, para definirmos espaço, vazio ou não, precisamos de matéria.

Na matemática, espaço é uma construção abstrata, uma invenção para definir distâncias entre dois ou mais pontos ou entre dois ou mais objetos. É importante lembrar que espaço é uma invenção e que não tem, a princípio, uma existência física. Espaço não é uma coisa. Ou é?

Na física moderna, a história fica mais complicada e bem mais interessante. Para Newton, o criador das leis da mecânica e da gravidade, o espaço é uma espécie de palco onde se desdobra o drama da natureza. Os fenômenos ocorrem sem afetar o palco, que está lá apenas para permitir que objetos interajam entre si. Por exemplo, o Sol e a Terra ou você e uma cadeira. Com Einstein e a relatividade, tudo muda.

Einstein mostrou que o espaço não é inerte: ele responde à presença de matéria, sendo uma entidade plástica e não rígida como supôs Newton. Quando, no final do século 17, Newton explicou a atração gravitacional entre dois corpos, imaginou o espaço entre eles como sendo irrelevante. O que importava era a massa dos corpos e a distância entre eles. Para Newton, a gravidade age através do espaço, uma influência um tanto misteriosa que atua à distância: o Sol não precisa tocar na Terra para influenciá-la.

Einstein mudou isso, sugerindo que o espaço em torno de objetos é distorcido em proporção à sua massa e densidade. Quanto mais denso um corpo, maior sua atração gravitacional e maior a distorção que causa no espaço à sua volta. Para Einstein, o espaço deixou de ser apenas palco e virou ator também.

Mas mesmo para Einstein o espaço vazio ainda seria o espaço sem qualquer objeto material e, portanto, com geometria plana. Com a física quântica, houve uma nova mudança na compreensão do que seria o "vazio". No mundo dos átomos e das partículas subatômicas, tudo existe num estado de agitação constante: um elétron nunca para no mesmo lugar. Portanto, sempre haverá algum movimento.

Existe uma probabilidade de que mesmo no espaço vazio, uma flutuação de energia possa criar partículas de matéria. A física quântica permite uma violação temporária da conservação de energia.

Partículas podem aparecer do espaço vazio (ou vácuo), contanto que se desintegrem outra vez, numa dança constante de criação e destruição.

Ou seja, de acordo com a física quântica, o espaço vazio não existe. Há um vácuo pleno de flutuações de energia capazes de criar partículas de matéria, mesmo que por apenas alguns instantes. O espaço vira uma coisa que pode criar.

domingo, 30 de outubro de 2011

Dexter entre a ciência e a religião




Na série de TV, um mata em nome de Deus, e o outro, em nome da sua justiça pessoal; ambos estão errados



Imagino que muitos de vocês conheçam a popular série da Showtime chamada "Dexter", agora no seu sexto ano. Se não conhecem, não tem problema: aqui vai um resumo.

Imagine um assassino justiceiro, que mata apenas os criminosos. Na série, Dexter Morgan, representado pelo ator Michael Hall, é adorável, boa gente e trabalha como analista para a polícia de Miami. Sua especialidade é explorar os traços de sangue no local do crime, buscando pistas que levem ao assassino. Ele só mata suas vítimas após conferir que, de fato, são culpadas. O interessante da série é que você acaba torcendo por um assassino que ignora o sistema penal. Sua lógica é: quem assassina uma pessoa inocente merece morrer. Ponto.

A cada ano, Dexter confronta assassinos diversos, cada qual com suas características. A diferença é que Dexter conseguiu domar o seu "passageiro negro," o instinto assassino que o faz matar outros seres humanos. Se não o domou, conseguiu converter uma força destrutiva numa força positiva (que busca um senso de justiça).

Nesta temporada, Dexter, um ateu que baseia suas ações em decisões racionais, confronta pela primeira vez a fé e suas dúvidas. Os assassinos agem em nome de Deus, ou assim acreditam, recriando os eventos descritos no Apocalipse de João, último livro do Novo Testamento. O show é uma paródia dos inúmeros assassinatos em nome da religião, tema que discuti com Frei Betto no livro "Conversa sobre a Fé e a Ciência" (Ed. Agir, 2011).

Numa conversa entre Dexter e o irmão Sam, um ex-criminoso que virou pastor e que ajuda outros criminosos a encontrar o caminho do bem, a essência do confronto é esclarecida. Diz o irmão Sam: "Não posso provar para você que Deus existe. Mas a ciência não pode provar que Ele não existe". Ou seja, para os que têm fé, Deus só pode ser encontrado além do plano de ação da ciência, baseado numa metodologia dedutiva. Já um ateu reverteria o argumento dizendo: "Se você está tão certo de que Deus existe, então prove. Não vejo evidência".

No cerne do argumento encontramos uma incompatibilidade fundamental entre o discurso da ciência e os da fé. O irmão Sam já disse: para os que acreditam em presenças sobrenaturais no mundo, o discurso científico tem pouco a dizer sobre a existência de Deus. Eles tomam antibióticos e mandam e-mails com seus iPads, mas param por aí.

Seria de esperar que alguma espécie de coexistência pacífica pudesse ser encontrada, em que o crente e o descrente concordassem em não concordar. Se você acredita em Deus, vá em frente. Se não, vá em frente também. Infelizmente, as muitas questões nas quais a religião pode influenciar decisões políticas, educacionais e sociais não permitem essa coexistência inocente. A separação entre Igreja e Estado deveria tomar conta disso, mas, infelizmente, não é o caso.

Não sei o que vai ocorrer na série. Ao usar assassinos que são fanáticos religiosos, os autores estão tomando partido. Por outro lado, Dexter também é um assassino, mesmo se ateu. Um mata em nome de Deus, o outro em nome de uma justiça pessoal. Ambos estão errados. Espero que ao menos na TV algum meio-termo seja atingido. Ficaria decepcionado se Dexter virasse religioso.

domingo, 23 de outubro de 2011

O Brasil deve aprender mais ciência




Ao entender os mecanismos da natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação

COM FREQUÊNCIA, perguntam -me por que escrevo para o público não especializado. "Isso não toma tempo de sua pesquisa?" A resposta é sim, toma. Porém, para mim -e para outros cientistas que dedicam parte de seu tempo à divulgação científica- apresentar as ideias da ciência à sociedade é mais do que divertido ou intelectualmente estimulante: é nosso dever. E, mais importante ainda, é também vital para o nosso futuro.
Há diversas razões para isso. Aqui posso tocar em apenas algumas delas. Uma é que a ciência é parte essencial da nossa cultura e contribui crucialmente para a nossa visão de mundo. Pense que quando Cabral chegou aqui as pessoas pensavam que a Terra era o centro do cosmo e que nós éramos os escolhidos, criados à imagem de Deus. À medida que a compreensão científica do Universo avançou, nossa percepção de quem somos e de onde vivemos mudou.
A influência científica da nossa visão de mundo não se limita a ideias abstratas. Pelo contrário, nossa percepção da realidade é determinada por inovações tecnológicas. A morte recente de Steve Jobs, o líder da Apple, ilustra claramente como a ciência de ponta, aliada ao design inovador, pode mudar como a sociedade vive e se comunica.
Uma segunda razão se origina ao menos com os Atomistas da Grécia Antiga, se não antes, com Tales e Heráclito no século 6 a.C. Conforme escreveu o pensador romano Lucrécio em seu poema "Sobre a natureza das coisas": as pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus. Quando finalmente entendermos que nada pode surgir do nada, teremos uma imagem muito melhor de como formas materiais podem ser criadas ou como fenômenos podem ser ocasionados sem a ajuda de um deus.
A razão e a lógica são propostas como antídotos contra medos irracionais, baseados na fé cega em crenças supersticiosas. A ciência é uma consequência direta dessa profunda mudança de atitude: nada de se curvar perante divindades. Ao entender os mecanismos que regem a natureza, o homem poderá erguer-se, sem medo, perante a criação.
A ciência terá um papel cada vez maior no nosso futuro. Tome, por exemplo, a questão das fontes de energia e do aquecimento global. Quais as escolhas que melhor equilibram nossas necessidades e a saúde do planeta? Quais candidatos políticos se alinham com suas escolhas? Ou a engenharia genética e de como as células-tronco podem criar novas curas para doenças que afligem milhões de pessoas. Até que ponto nossas pesquisas devem ir? Até a clonagem humana? Será que a religião deve ter algum papel na decisão de quais pesquisas devem ou não ser financiadas?
Apenas uma população bem informada será capaz de tomar as decisões para um futuro melhor. Por isso, precisamos de mais ciência na mídia, nas escolas, nas nossas comunidades. Se o Brasil quer estar entre as cinco maiores potências mundiais nas próximas décadas, precisará de uma população educada cientificamente, preparada para competir com países que sabem da importância da ciência para o desenvolvimento.

domingo, 16 de outubro de 2011

O filme da sua mente




Supondo que tecnologias capazes de ler a mente se tornem disponíveis, elas exigirão limites jurídicos?


Será que um dia você poderá visualizar os seus pensamentos e torná-los acessíveis em arquivos visuais? Imagine assistir os seus sonhos como se fossem um filme!
Parece coisa de ficção científica, certo? E se outra pessoa (ou o governo) ganhasse acesso ao que ocorre na sua mente? Ou se víssemos o que ocorre na mente de um paciente em coma? As possibilidades médicas são enormes, as complicações éticas também. Supondo que essas tecnologias virem realidade, onde devemos parar? Será que prisioneiros deverão ser submetidos a leituras cerebrais para que o júri possa confirmar o seu veredicto?
Continuamos longe de ver o que ocorre em nossas mentes. Mas não tão longe quanto costumávamos estar. Num experimento recente, voluntários assistiram a videoclipes enquanto sua atividade cerebral era registrada usando ressonância magnética funcional (fMRI). Com os dados coletados, computadores foram capazes de reconstruir parcialmente as imagens que os voluntários viram. Não é o mesmo que ver dentro de suas mentes, mas ver o que suas mentes viam, um feito já bem impressionante.
Como afirmou o cientista cognitivo Jack Gallant, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que é um dos autores do estudo, "é um grande avanço para a reconstrução de imagens internas... abrimos uma tela para assistir os filmes que passam em nossas mentes".
Dentre os inúmeros benefícios dessa tecnologia, podemos imaginar o dia em que pessoas deficientes (ou qualquer outra) poderão comandar computadores com suas mentes. No experimento, os voluntários tiveram de ficar sendo escaneados por horas, para que a máquina de fMRI registrasse o fluxo sanguíneo do córtex visual, a região do cérebro que processa a visão.
Num computador, os pesquisadores dividiram o cérebro em pequenos cubos, chamados voxels (pixels volumétricos). A informação dos clipes que chegava ao córtex era medida pelo fMRI, enquanto o computador gravava o tipo e o local da atividade neuronal correspondente a cada imagem, criando um mapa da informação segundo a segundo.
O computador então comparou essa informação com 18 milhões de clipes tirados do YouTube, buscando padrões semelhantes. Os cem mais parecidos eram combinados, e as imagens eram usadas para reconstruir os clipes originais.
Não há dúvida de que esses são apenas os primeiros passos de uma nova tecnologia, e que ninguém pode ainda ver o que se passa na sua cabeça. Dois desafios importantes são a baixa velocidade com que as máquinas atuais de fMRI registram a atividade neuronal (é por isso que a reconstrução é de segundo a segundo) e o tamanho limitado da videoteca usada para comparação.
(Por exemplo, nos 18 milhões de videoclipes do YouTube não havia um com um elefante, de modo que aquela parte da correspondência foi prejudicada.) Porém, como é o caso com novas tecnologias, os primeiros passos podem ser lentos, mas o progresso ocorre mais rápido do que o esperado.
Talvez nossa geração não tenha de censurar nossos sonhos para maridos e mulheres; mas é bem provável que a geração de nossos filhos não terá tanta sorte.

domingo, 9 de outubro de 2011

Celebrando a energia escura




Astrônomos vencedores do Prêmio Nobel em Física nos fazem repensar a relação espaço, tempo e matéria


A energia escura está aqui para ficar. Essa semana foi anunciado o Prêmio Nobel em Física. Venceram três astrônomos que em 1998 descobriram algo surpreendente o Universo não só está em expansão, mas essa expansão é acelerada.
Conforme comentou outro vencedor do Nobel, Frank Wilczek: "esse é o maior mistério da física básica atual". E é mesmo. Quando a descoberta foi anunciada, pouca gente achou que estava correta. Mas, passados 13 anos, os efeitos da expansão acelerada foram comprovados por métodos diferentes.
Quando físicos afirmam que o Universo está em expansão, é comum imaginar que houve uma espécie de explosão, como a de uma bomba, que lança seus detritos em todas as direções. Se fosse assim, o Universo teria um ponto central, de onde tudo surgiu. E a verdade é que nenhum ponto no espaço é mais especial do que outro.
Para visualizar a expansão cósmica, convém imaginar uma tira de borracha em duas dimensões, como um quadrado. Imagine, também, que as galáxias são moedas grudadas à tira.
Conforme a tira cresce nas suas duas direções, as moedas afastam-se umas das outras. Um observador numa moeda vê as outras se afastando dele. Portanto, a expansão do Universo é uma expansão da geometria do espaço: as distâncias entre dois pontos crescem. Esse efeito só é observável a distâncias de milhões de anos-luz.
Para determinar que as galáxias estão se afastando umas das outras, astrônomos precisam medir sua distância e velocidade.
Para a distância, utilizam fontes de luz padrão. Por exemplo, usando lanternas idênticas, e sabendo que a intensidade da luz cai com o quadrado da distância, é possível, num descampado à noite, medir a distância das lanternas até um certo ponto a partir da intensidade da luz que chega a este ponto.
O feito dos três astrônomos foi ter achado uma fonte padrão tão poderosa que sua luz pode ser detectada a bilhões de anos-luz de distância. São as chamadas explosões de supernova do tipo Ia, que ocorrem quando uma estrela suga a matéria da sua vizinha até não poder suportar mais seu próprio peso.
As velocidades são determinadas usando o efeito Doppler, que nos é familiar ao ouvirmos uma ambulância. A distorção do som ocorre devido ao alongamento (quando ela se afasta) ou encolhimento (quando se aproxima) das ondas de som.
O mesmo ocorre com a luz. As galáxias que se afastam têm sua luz deslocada para maiores comprimentos de onda, em direção ao vermelho. Daí o nome "desvio para o vermelho das galáxias", a prova de que o Universo está em expansão.
Os astrônomos mostraram que a partir de 5 bilhões de anos atrás, o cosmo começou a expandir mais rapidamente, como se um tipo novo de matéria (ou energia) dominasse seu crescimento. Essa fonte de energia foi chamada de "energia escura". Não sabemos qual a sua natureza. Talvez esteja relacionada a minúsculas flutuações de energia ou a uma nova força da natureza ligada a um campo desconhecido. Ou, talvez, mostre a necessidade de se modificar a teoria da relatividade geral, de Albert Einstein.
Qualquer que seja a resposta, é certo que nos forçará a repensar a relação espaço, tempo e matéria.

domingo, 2 de outubro de 2011

Einstein errou?



Muitos sonham em desmentir o genial físico alemão; por enquanto, porém, suas teorias, que inspiraram tecnologias como laser e GPS , resistem ao teste do tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Esta semana marcou o 106º aniversário da publicação do artigo de Einstein com a famosa fórmula E=mc2, talvez a mais famosa da física.
Aos 26 anos, Einstein redefiniu nossa compreensão da matéria, mostrando sua íntima relação com a energia. O elo da correspondência é a velocidade da luz, representada pelo "c", com um valor aproximado de 300 mil km/s.
Você pisca o olho e a luz dá sete voltas e meia em torno da Terra. Segundo a teoria da relatividade, nada na natureza pode viajar mais rápido do que a luz: qualquer objeto com massa, de um elétron a um cometa, necessariamente deve viajar com uma velocidade mais baixa do que "c".
Porém, vimos recentemente cientistas dos laboratórios europeus Cern, em Genebra, na Suíça, e Gran Sasso, na Itália, anunciando a detecção de partículas com velocidades maiores que a da luz.

FANTASMAGÓRICAS
As partículas são neutrinos, conhecidas como "partículas-fantasmas" devido à sua fraca interação com a matéria: neutrinos atravessam paredes, pessoas e planetas como se não existissem, apenas raramente colidindo com outras partículas.
Os experimentos começam criando neutrinos no Cern. Depois, eles viajam 730 quilômetros através da crosta terrestre até chegar aos detectores em Gran Sasso.
Embora o porta-voz da experiência tenha afirmado que o processo é simples, que basta dividir distância por tempo para obter a velocidade, na prática a coisa é bem mais complicada. De fato, a maioria absoluta dos físicos vê os resultados com muito ceticismo, duvidando que sobrevivam por muito tempo.
Ou, claro, pode ser que os neutrinos tenham viajado mesmo algumas dezenas de bilionésimos de segundo mais rápido do que as partículas da luz. Mas eu não apostaria nisso.
O que acho interessante é o burburinho que surge cada vez que um cientista crê demonstrar que Einstein errou.
Cientistas têm o dever de testar teorias. Dada a profundidade das teorias de Einstein, achar uma falha numa delas pode revolucionar a nossa compreensão do mundo natural. Esse tipo de ceticismo é vital para o funcionamento da ciência.

MATURAÇÃO LENTA
Muitas vezes, uma teoria demora a maturar. De volta a Einstein, esse foi o caso com a sua teoria da relatividade geral, a que relaciona a atração gravitacional com a curvatura do espaço.
A teoria foi desenvolvida aos poucos, entre 1907 e 1915, até Einstein chegar à sua versão final. Afirmar que Einstein deu passos "errados" no meio do caminho é ignorar o processo criativo dos cientistas; a ciência não anda numa linha reta entre dois pontos. Ela meandra aqui e ali até chegar ao seu objetivo.
Que eu saiba, os resultados principais de Einstein estão todos ainda conosco e continuam a inspirar novas pesquisas, sem falar nas tecnologias "einstenianas" do cotidiano.
Mesmo que, um dia, algumas das ideias de Einstein sejam suplantadas por novas teorias-e isso deve acontecer -, dizer que ele estava errado é no mínimo ingênuo.
Será que podemos dizer que Newton estava errado quando Einstein corrigiu suas teorias? Certamente não! Toda teoria deve ser aplicada dentro do seu limite de validade: julgá-la errada quando aplicada fora desses limites é não saber como usá-la.
O próprio Einstein considerou uma de suas ideias como o "maior dos seus erros", a adição da chamada constante cosmológica às equações descrevendo a geometria do Universo.
Em 1931, Einstein visitou o astrônomo Edwin Hubble no observatório do monte Wilson, na Califórnia, e teve a oportunidade de ver o desvio para o vermelho da luz emitida por galáxias distantes. A interpretação mais imediata desse desvio é a expansão do Universo, isto é, que as galáxias estão se afastando umas das outras a altas velocidades. Em 1917, Einstein havia escrito um artigo onde supõe que o Universo é estático, sem expansão alguma.
Para isso, teve de adicionar a constante cosmológica, que garante a solução estática que queria. O resultado de Hubble mostrou que sua suposição não era necessária.

REVIRAVOLTA
Ironicamente, em 1998, astrônomos descobriram que o Universo está em expansão acelerada, efeito que pode ser causado justamente pela constante cosmológica de Einstein. A natureza tem razões que a razão desconhece.
Outro "erro" de Einstein é sua posição com relação à mecânica quântica, que descreve as partículas da matéria. Ele nunca aceitou que, conforme dizia essa área da física, a realidade tivesse um forte componente aleatório.
Até hoje, nada de anormal foi encontrado com a mecânica quântica. Em defesa de Einstein, não houve aqui um erro, mas uma diferença filosófica na sua visão de mundo. É prematuro julgar se sua posição está certa ou errada.
A lição aqui me parece simples: é bom termos cuidado ao julgar teorias a partir de resultados recentes e com pouco escrutínio. Afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias.
Embora o questionamento constante seja vital para a ciência avance, as trombetas da revolução só devem ser soadas após a revolução ter mesmo começado.

domingo, 25 de setembro de 2011

O Universo e a vida




A evolução não leva à vida complexa e inteligente: ela leva a formas de vida bem adaptadas ao seu ambiente

SE VOCÊ tem prestado atenção nas últimas notícias sobre ciência, deve ter percebido que está chovendo planeta. (Semana que vem falaremos da suposta descoberta de partículas mais rápidas do que a luz.)

Na semana passada, astrônomos da Universidade de Genebra, na Suíça, descobriram o planeta que mais se parece com a Terra até agora, ao menos em termos da sua massa e posição. O HD85512 b tem massa 3,6 vezes maior do que a da Terra e orbita sua estrela na "zona habitável", região onde a água, se existir, pode ser líquida.

Claro, não sabemos ainda se existe vida no planeta, ou mesmo se ele é rochoso como a Terra. Serão anos até que seja possível analisar, mesmo que superficialmente, a composição de sua atmosfera. Porém, o entusiasmo é justificável: quanto mais planetas semelhantes à Terra forem encontrados, maiores as chances de a vida existir em outro lugar. As descobertas recentes mostram que planetas como a Terra devem existir. Será que o Universo é mesmo propício à vida?

Cientistas acreditam que a vida é comum no Universo devido à regularidade das leis da física e da química. Galáxias distantes se movem segundo as mesmas leis que conhecemos aqui na Terra; suas estrelas e gases são compostos pelos mesmos elementos químicos.

Portanto, é razoável supor que os mesmos processos que levaram a vida a surgir aqui na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos devem ter ocorrido em outras plataformas planetárias. Esse é o argumento da regularidade cósmica.

Mas será suficiente? A suposição é que, se a física e a química são as mesmas, a biologia também será. Quando pensamos em vida extraterrestre, estamos implicitamente supondo que ela obedece à teoria da evolução por seleção natural de Darwin. Claro, só saberemos se esse é mesmo o caso quando obtivermos uma amostra de vida alienígena e estudarmos suas propriedades e composição genética. Porém, é difícil imaginar que os princípios dar-winistas não se aplicarão.

Mas isso nada diz sobre as particularidades das formas de vida. Quando falamos de vida extraterrestre, é fundamental distinguir entre vida unicelular e vida multicelular. Ao contrário do que muitos supõem, a evolução não leva da vida unicelular à vida complexa e inteligente: ela leva a formas de vida bem adaptadas ao seu ambiente.

Aqui na Terra, durante 2,5 bilhões de anos, a vida se resumiu a seres unicelulares. As transições que levaram da vida unicelular à vida multicelular complexa foram muitas e são ainda pouco compreendidas: de células simples a células com o material genético isolado, como as nossas; daí a seres multicelulares; deles, a criaturas com órgãos diferenciados, mas cuja funcionalidade é integrada.

O que aprendemos com o único exemplo que conhecemos é que a história da vida num planeta depende completamente da história geológica desse planeta (ou lua). Se pudéssemos mudar um evento importante na nossa história, digamos, a colisão com o asteroide que exterminou os dinossauros, a história da vida terrestre teria sido outra. Provavelmente, não estaríamos aqui. Do que vemos até agora, a Terra permanece uma joia rara no cosmo. E merece nosso respeito e cuidado.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
Facebook: http://goo.gl/93dHI

domingo, 18 de setembro de 2011

Quando começa a vida?




A primeira batida cardíaca marca o início de uma integração sistêmica, a comunicação entre órgãos


Minha esposa está para ter um bebê a qualquer momento. Aliás, quando você ler essa coluna, é muito possível que o bebê já tenha nascido. Inspirado por isso, nas últimas 39 semanas venho ponderando a questão do início da vida.

Quando, exatamente, a vida começa? Não me refiro ao início da vida na Terra, algo que pesquiso em meu trabalho, mas ao começo da vida de um indivíduo humano, esse tópico controverso que alimenta a grande polêmica entre quem é contra ou a favor do aborto.

Como sou físico e não médico ou especialista em bioética, apresento apenas algumas possibilidades que, espero, incitem mais debates.

Começando do começo: na concepção, temos a junção do espermatozoide e do óvulo. O zigoto é resultado do abraço bioquímico de 46 cromossomos, 23 do pai e 23 da mãe.

É possível argumentar que a vida começa antes da fertilização. Se o esperma "nada" em direção ao óvulo, há um propósito. Mas podemos equacionar vida com um propósito?

Após a fertilização, o zigoto implanta-se na parede uterina e começa a se desenvolver. Este é o blastocisto, de onde as células-tronco podem ser extraídas. Uma incrível dança hormonal ocorre. Após cinco semanas, há um tubo neural e primórdios de coração e outros órgãos. Começa aqui o período embrionário.

Em seis semanas, a coisa acelera: o embrião pode mover suas costas e pescoço. O batimento cardíaco passa a ser detectado via ultrassom em torno de seis semanas. Há fontes que colocam o início do pulso cardíaco ainda antes, em torno de três semanas após a concepção.

Essa transição é, para mim, fantástica. Um amontoado minúsculo de células já tem um sistema nervoso primitivo, que ordena um coração primitivo a pulsar! Como, exatamente, isso ocorre? A primeira batida cardíaca marca a transição entre algo em que células estão se dividindo para algo em que existe uma integração sistêmica, órgãos se comunicando. É aqui que começa?

Em oito semanas, o embrião tem "tudo" de um adulto. É o início da fase fetal, um ser proto-humano, ou já humano, com um coração e cérebro. Por outro lado, sua sobrevivência depende da placenta.

Outra transição acontece quando o feto pode sobreviver independentemente da mãe. Mas quando isso ocorre?

Devido aos avanços na medicina neonatal, 80% dos bebês prematuros de 26 semanas conseguem hoje sobreviver. Com o avanço da tecnologia, essa sobrevivência será ainda maior.

Portanto, essa transição depende da tecnologia.

Finalmente: quando surge o consciente? No útero, no nascimento ou durante a infância? Deixando de lado a questão de como definir o consciente, eletroencefalogramas de fetos no 3º trimestre já revelam uma integração entre os dois hemisférios cerebrais, uma condição importante para a formação do consciente.

Talvez seja o choque do nascimento, quando o bebê é forçado a respirar por si só e a interagir com um ambiente completamente diverso, que desperta o consciente. Ou talvez não exista uma resposta para essa questão, apenas interpretações do que significa vida em estágios diversos de desenvolvimento.

De qualquer forma, tenho de terminar isso, pois preciso arrumar o quarto do bebê que está por vir.

domingo, 11 de setembro de 2011

O que é unidade?




Ao refletir sobre unidade, vale lembrar que somos feitos da mesma matéria: pessoas, plantas e rochas


Hoje, nos EUA, é um dia lúgubre, o aniversário de dez anos do ataque terrorista que destruiu as Torres Gêmeas em Nova York e danificou parte do Pentágono. O número de vítimas chegou a 2.977: pessoas de todas as idades, raças e credos.

Entre as várias discussões sobre o que ocorreu e os seus motivos, gostaria de meditar aqui sobre o que mais falta no mundo: unidade. No fim de semana passado, recebemos em casa a artista russa Ekatherina Savtchenko (para ver seu trabalho, visite www.ekatherinas.com). Savtchenko usa a sua arte para transmitir uma forte mensagem de unidade, conectando várias culturas e fés com aspectos diversos do conhecimento humano, incluindo a ciência. Ela é parte da Unity Foundation (Fundação Unidade), um grupo ainda pequeno de pessoas dedicado a encontrar um denominador comum e inspiração dentre as tantas vozes do mundo.

Parte das atividades da fundação é coletar depoimentos de pessoas, registrados em vídeo, sobre sua visão do que é unidade. O objetivo é explorar vários significados da palavra e entender a sua essência. Quando chegou a minha vez e a câmera apontava na minha direção, tive de pensar rapidamente sobre o que entendo por unidade. Imediatamente, a noção de conectividade me veio à mente.

A ciência, em particular a física, influencia o que entendo por unidade. No seu aspecto mais básico, essa conectividade -que a tudo e todos liga-vem da unidade que vemos nas leis da natureza. Através do espaço e do tempo, por bilhões de anos-luz de distância e bilhões de anos, podemos afirmar com confiança que as mesmas leis da física e da química são válidas.

Vemos estrelas a bilhões de anos-luz de distância, estudamos os seus espectros e concluímos que esses objetos, tão longínquos, muitos deles já nem mais existentes, contêm hidrogênio, hélio e muitos dos mesmos elementos químicos que encontramos na Terra e em nossos corpos.

Vemos, também, que essas estrelas produzem seu brilho da mesma forma que o nosso Sol, transformando hidrogênio em hélio em seu centro, através da fusão nuclear. Somos todos feitos da mesma matéria: pessoas, plantas, rochas, estrelas.

As leis da natureza conectam o Universo, trazendo-o até nós. Mas que leis são essas? De onde vêm? Aqui, a ciência tem pouco a dizer. As leis da natureza são, em realidade, nossa interpretação do que vemos da natureza, consequência do que medimos do mundo. Elas expressam padrões de comportamento que identificamos através do espaço e do tempo, padrões que podemos quantificar e comparar com medidas e observações.

Como criadores dessas leis, nossa conexão com o Cosmos vai além da nossa composição material em comum: ela existe, também, por meio das nossas mentes, ao mapearmos na consciência aquilo que, sem nós, passaria desapercebido.

Como escrevi em meu livro "Criação Imperfeita", somos como o Universo pensa sobre si mesmo. Termino sugerindo uma montagem em vídeo em que Richard Feynman, Carl Sagan, Bill Nye e Neil deGrasse Tyson "cantam" sobre a unidade da natureza e nossa conexão com o cosmo. (Assista no link: http://www.youtube.com/watch?v=XGK84Poeynk&feature=youtu.be
)

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
Facebook: http://goo.gl/93dHI


sábado, 28 de maio de 2011

Os planetas ciganos da galáxia


Se há planetas gigantes livres, é provável que existam também muitos outros em órbitas distantes de suas estrelas-mãe

As manchetes desses dias estavam repletas de descobertas cósmicas espetaculares. Já que o mundo não acabou, podemos voltar ao nosso assunto mais usual, a exploração de como funciona a natureza, aprofundando nosso conhecimento sobre o Universo em que vivemos.

Hoje, escrevo sobre a descoberta de um grupo de astrônomos liderados por takahiro sumi, da Universidade de Osaka, no Japão. Após anos de observações, o grupo concluiu que existem cerca de 400 bilhões de planetas ciganos na nossa galáxia, circulando pelo espaço.

Esse número é duas vezes maior do que o de estrelas na Via Láctea.

Considerando planetas são objetos que orbitam estrelas, a descoberta é mesmo surpreendente.

Talvez um nome melhor seja planetas órfãos, já que se desgarraram de suas estrelas-mãe.É possível que tenham sido ejetados de seus sistemas solares devido à instabilidades na dinâmica de suas órbitas ou, menos provável, que tenham órbitas extremamente alongadas.

A descoberta sugere que nosso sistema solar, com quatro planetas gasosos gigantes a grandes distâncias do sol, não seja uma raridade.

Buscas por ex o planetas (que giram em torno de estrelas que não o sol) tendem a achar planetas grandes perto de suas estrelas. Num sistema planetário, o centro de massa não se encontra exatamente no centro da estrela devido à contribuição das massas dos planetas.

A situação é um pouco como a de duas crianças, uma bem gordinha e outra bem magrinha, numa gangorra: o ponto de equilíbrio é perto da gordinha,mas não nela. tanto a estrela quanto os planetas giram em torno do centro de massa e não do centro da estrela. Isso causa uma pequena variação na luz da estrela, quando observada a distância, o chamado efeito Doppler.

Baseados nessa variação, astrônomos podem calcular a massa e o número de planetas em órbita.

Quanto mais massivos e mais próximos da estrela estiverem os planetas, maior o efeito que causam e mais fácil a sua detecção.

Outra técnica, o método do trânsito, mede a diminuição da luz da estrela quando um planeta passa a sua frente. Aqui, também, quanto maior e mais próximo da estrela estiver o planeta, mais fácil a sua detecção. O satélite Kepler da nasa já detectou possivelmente 1.235 exoplanetas com este método. A nova descoberta utiliza um outro método, chamado de microlentes gravitacionais. Baseado na teoria da relatividade de Einstein, usa a curvatura do espaço causada por grandes concentrações de massa que distorce a luz que passa à sua volta.Quando um planeta passa em frente a uma fonte de luz, ele pode na maioria das vezes aumentá-la.

Foram detectadas dez aumentos desse tipo causados por planetas gigantes sem uma estrela-mãe, o que implica em centenas de bilhões de planetas órfãos.
se existem tantos planetas gigantes livres, é provável que existam muito sem órbitas não tão próximas de suas estrelas. tal como Júpiter, saturno, Urano e netuno, esses gigantes protegem os planetas internos contra possíveis colisões com asteroides e cometas.

A nova descoberta sugere que, talvez, não sejamos os únicos seres a dar graças a vizinhos gigantes.

domingo, 22 de maio de 2011

Sobre a vida após a morte


Do ponto de vista científico, vida após a morte não faz sentido,embora a esperança de que ela exista seja muito compreensível

Já que no domingo passado escrevi sobre o fim do mundo (era para ter sido ontem), é natural continuar nossa discussão refletindo sobre vida após a morte. especialmente nesta semana, quando o famoso físico Stephen Hawking falou do assunto em entrevista ao jornal inglês "The Guardian". "um conto de fadas para pessoas que têm medo do escuro", disse.

Mantendo a discussão ao nível "científico", o que podemos falar sobre experimentos que visam detectar vida após a morte?

Eis o que escrevi sobre o tópico em meu livro "Criação Imperfeita": "quando ingressei no curso de física da PUC do Rio em1979, era a encarnação perfeita do cientista romântico, com barba, cachimbo e tudo.

Lembro-me, com um certo embaraço, do meu experimento para 'investigar a existência da alma'. Se a alma existia, pensei, tem que ter uma natureza ao menos em parte eletromagnética, de modo a poder animar o cérebro. e se eu convencesse um hospital a dar-me acesso a um paciente em coma, já prestes a morrer? Assim, poderia circundá lo com instrumentos capazes de detectar atividade eletromagnética.

Talvez pudesse detectar a cessação do desequilíbrio elétrico que caracteriza a vida [...] Por via das dúvidas, o paciente deveria também estar deitado sobre uma balança bem precisa, caso a alma tivesse peso." Continuo:"Na verdade,minha incursão no terreno da "teologia experimental" era mais brincadeira do que algo que levei a sério. Porem, minha metade vitoriana charlatã, devo dizer, tinha ao menos um predecessor.
em 1907, um certo Dr. Duncan MagDougall de Haverhill, em Massachusetts, conduziu uma série de experimentos para medir o peso da alma.emborasua metodologia fosse altamente duvidosa, seus resultados foram mencionados no prestigioso "New York Times":"Médico crê que alma tem peso", afirmou a manchete. O peso era em torno de 21,3 gramas, embora tenha havido algumas variações entre os poucos pacientes investigados. Como grupo de controle, ele pesou 15 cães, mostrando que eles não sofriam qualquer mudança de peso. O resultado não o surpreendeu, pois suspeitava que só humanos têm almas."

Os experimentos de Mag Dougall inspiraram o filme "21 Gramas", com Sean Penn fazendo o papel de um matemático à beira da morte.

De volta a Hawking, devo dizer que concordo com ele. Tudo o que sabemos sobre como a natureza opera indica que a vida é um fenômeno bioquímico emergente que tem um início e um fim.

Do ponto de vista científico, vida após a morte não faz sentido: existe a vida, um estado complexo da matéria em que um organismo interage ativamente com o ambiente, e existe a morte, um estado em que essas interações tornam-se passivas.

Morte é ausência de vida. (Mesmo o vírus só pode ser considerado0 vivo dentro de uma célula anfitriã.) É perfeitamente compreensível querer mais do que algumas décadas de vida, ter esperança de que existe algo mais.

Porém, nosso foco deve ser no aqui e no agora, e não no além. O que importa é o que fazemos coma vida que temos, curta que seja.Após ela, o que persiste são as memórias naqueles que continuam vivos.

domingo, 15 de maio de 2011

O fim do mundo, de novo


Se existe um risco imediato de destruição, ele não vem do céu, de cometas ou de asteroides assassinos, mas de nossas próprias mãos


PARECE QUE o mundo vai acabar.

De novo. A data definida pelo americano Harold Camping, um fundamentalista cristão de 89 anos, é resultado de cálculos e numerologia obscura, usando eventos bíblicos e catástrofes naturais. Camping previu o Apocalipse antes, em 1994. Mas desta vez está certo, diz ele.

Recentemente, cerca de 50 pessoas juntaram-se a Camping em Washington para espalhar a notícia. Entre eles, um oficial do Departamento de Segurança Interna que tirou férias especialmente para isso."Tenho de voltar no dia 23,mas não será preciso, pois no dia 21 sumirei", disse ao"Washington Post".

Nesse meio-tempo, um ateu está se oferecendo para tomar conta dos animais domésticos que ficarem para trás, já que eles não vão para o céu. Já tem mais de mil clientes.
Ironicamente, os céus estão oferecendo uma série de espetáculos neste mês, com vários alinhamentos planetários visíveis no hemisfério Sul. Como em tempos imemoriais, esses alinhamentos costumam ser interpretados como sinais apocalípticos. Em 11 de maio, Mercúrio, Vênus e Júpiter convergiram numa região com apenas 2,05 graus de diâmetro.

Como referência, a Lua cheia ocupa meio grau. Portanto, os planetas se juntaram no equivalente a quatro luas cheias, uma visão belíssima. No dia 21, o dia da previsão de Camping, Mercúrio, Vênus e Marte estarão numa região com apenas 2,13 graus de diâmetro.

Em 1186, os cinco planetas conhecidos então (até Saturno) alinharam-se nos céus, causando pânico por toda a Europa. Inúmeros outros fenômenos celestes, de eclipses a cometas e chuvas de meteoros, fizeram o mesmo no decorrer da história.

E continuam assustando as pessoas desnecessariamente. Os céus foram sem previstos como sagrados.

Portanto, fenômenos inesperados e misteriosos eram interpretados como mensagens de deuses prontos para punir os pecadores. Conforme discuto em meu livro "O Fim da Terra e do Céu", essa tradição apocalíptica não se reserva apenas a fanáticos religiosos. Cientistas também participam ocasionalmente, se bem que sob a luz de argumentos racionais e testáveis.

De fato, é importante considerarmos o risco de um asteroide ou de um cometa com mais de um quilômetro de diâmetro colidir com a Terra (possível, mas realmente muito improvável), ou de o Sol explodir (isso ocorrerá, em aproximadamente 5 bilhões de anos), ou de o próprio Universo ter um fim (terá, continuando sua expansão indefinidamente, enquanto as estrelas morrerão e se apagarão, se bem que existem outras alternativas).

Começos e fins são parte integral do discurso científico desde o nascimento da ciência moderna no século 17. Newton previu o fim do mundo para 2060. Halley, famoso pelo cometa homônimo, sugeriu que o Dilúvio foi causado pelo impacto de um cometa contra a Terra.

Felizmente, podemos afirmar com confiança absoluta que alinhamentos planetários não trarão o Apocalipse e que o Sol, mesmo que volta e meia lance enormes bólidos de matéria em nossa direção, continuará fundindo hidrogênio em hélio de forma relativamente pacata por muito tempo. Se existe ameaça mais imediata, ela não vem dos céus, mas das nossas próprias mãos.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A escorregadia ‘partícula de Deus’


Volta e meia os boatos que falam de uma descoberta do bóson de Higgs correm o mundo, mas tudo indica que ele ainda nos escapa

OS FÍSICOS de partículas estão mais uma vez em alvoroço. Duas semanas após ter escrito aqui sobre a possibilidade de uma nova força da natureza ter sido encontrada no Fermilab, rumores de que a famosa partícula chamada Higgs foi achada no LHC (Grande Colisor de Hádrons, gigantesco acelerador de partículas localizado nos arredores de Genebra,na Suíça) vêm circulando pela mídia.

Um relatório interno escrito anonimamente por alguém da equipe do detector Atlas, do LHC, menciona um sinal estranho nos dados, relativo a uma massa 115 vezes maior que a de um próton.
A atenção dada ao relatório é exagerada. Um porta-voz do Cern, o laboratório onde fica o LHC, disse a uma agência de notícias que "provavelmente não é nada".

Primeiro, queria contar a história por trás do desafortunado nome "partícula de Deus". Como alguns leitores devem saber, "A Partícula de Deus"é onome de um livro de divulgação científica escrito pelo físico vencedor do Nobel Leon Lederman, que foi diretor do laboratório americano Fermilab durante anos e meu chefe quando eu fazia meu pós-doutorado por lá.

De acordo com Leon, ele queria chamar o livro de "Partícula Maldita"(do inglês "Goddamn Particle"), pois ninguém conseguia achá-la. Mas seu editor sugeriu que "Partícula de Deus" venderia muito mais. Por razões óbvias,o nome vingou.

É claro que a partícula não tem nada de divino.Obóson de Higgs, como é propriamente chamado, é uma partícula hipotética cuja função é dar massa às outras partículas do Modelo Padrão, que reúne tudo o que sabemos sobre a matéria.

Talvez essa função dê ao Higgs certa influência.Mas não lhe confere divindade. Peter Higgs é o físico escocês que, nos anos 1960, desenvolveu várias ideias ligadas ao mecanismo em que uma partícula confere massa a todas as outras.

O bóson de Higgs é a peça que falta No Modelo Padrão. Daí o enorme interesse em achá-lo. Se você procurar no Google por "Higgs found" (Higgs encontrado), verá que volta E meia esses boatos ocorrem. Mas, antes que você acuse os físicos de partículas de serem pouco sérios, é importante entender como funciona essa comunidade.

A World Wide Web (o célèbre "www" da internet) foi inventada no Cern exatamente para facilitar a comunicação rápida entre os físicos.

Experimentos em aceleradores de partículas envolvem milhares de cientistas e engenheiros. Portanto, quando um sinal (esperado ou surpreendente) surge, o entusiasmo cresce rápido: é inevitável evitar que a informação, mesmo prematura, acabe vazando.

Seria um alívio encontrar finalmente o Higgs. Desde que comecei minha carreira, venho editando sua massa nas equações que descrevem a infância do universo. Graças aos esforços dos cientistas do Fermilab e do Cern (que incluem muitos brasileiros), temos uma boa ideia de qual deve será sua massa do Higgs.

Basta encontrá-lo. Ou não. O Modelo Padrão pode estar nos contando apenas parte da história ou, quem sabe, o Higgs pode não existir. Afinal, a natureza pouco liga para as nossas ideias, mesmo quando as achamos belas demais para estarem erradas. Os dados é que vão decidir isso.

domingo, 24 de abril de 2011

Vida extraterrestre e a natureza





O ETs, se existirem, serão exóticos. Ainda assim, obedecerão às mesmas leis da física e da química e, provavelmente, da evolução


Essa semana, li um texto do jornalista científico Marc Kaufman, que escreve regularmente para o jornal "Washington Post". Kaufman lançou recentemente um livro em que debate o possível impacto da descoberta de vida extraterrestre.

Eis parte do que ele escreveu: "O que acontecerá se forem encontrados sinais de vida no subterrâneo marciano, ou fósseis de vida no seu passado, ou se algum planeta extrasolar tiver níveis elevados de oxigênio e ozônio em sua atmosfera, sinais convincentes da presença de vida? Será que Marte, ou este exoplaneta, fará então parte da natureza? E como a maioria dos cientistas concorda que se vida for encontrada em outro planeta, deverá ser encontrada por todo o universo, será que o universo fará então parte da 'natureza'?"

Fiquei perplexo ao ler isso. Em uma perspectiva histórica, o objetivo da ciência é obter as leis da natureza como um todo. A divisão que Aristóteles impôs no cosmo ""a Terra e seus arredores como domínio da transformação e, da Lua para cima, o domínio da imutabilidade-- foi demolida por Galileu, Kepler e Newton no século 17.

Newton, em particular, mostrou que a gravidade é uma universal, responsável pela queda dos objetos na Terra e pelas órbitas celestes. Ao mostrar que a mesma força se estende através do espaço, tornou o cosmo acessível à razão humana.

Algo de semelhante ocorreu com a química no século 19. Ao examinar o espectro da luz solar, Joseph Fraunhofer descobriu linhas escuras superimpostas sobre o contínuo que nos é familiar no arco-íris, do vermelho ao violeta. Em torno de 1850, Bunsen e Kirchhoff mostraram que algumas das linhas que "faltavam" no espectro solar correspondiam à luz emitida quando certos elementos químicos eram aquecidos a ponto de brilhar: cada elemento emite apenas em determinadas cores e essas podem ser relacionadas às linhas escuras no espectro solar. A interpretação foi revolucionária: os mesmos elementos existem no Sol e na Terra. A química juntou-se à física em sua universalidade. A natureza segue as mesmas regras, não importa onde.

Na biologia a situação é mais incerta. Dado que a Terra é o único planeta que conhecemos com vida, podemos apenas especular sobre vida extraterrestre. Porém, se definirmos vida como um conjunto de reações químicas capaz de se autossustentar e de se reproduzir de acordo com a evolução darwiniana, podemos isolar alguns dos ingredientes importantes para que ela exista em outros mundos: água líquida, carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e alguns outros elementos. Formas de vida alternativas poderiam existir mas teriam um bioquímica pouco versátil. E o que vemos de seres em locais exóticos é que a vida é muito versátil.

Talvez Kaufman tivesse em mente o familiar (vida aqui) versus o não familiar (vida fora daqui). Pois é certo que os ETs serão diferentes. A história da vida depende fundamentalmente da história de seu planeta anfitrião. E como não existem duas histórias iguais, os ETs, se existirem, serão exóticos. Ainda assim, obedecerão às mesmas leis da física e da química e, muito provavelmente, o curso da evolução segundo o processo de seleção natural.

domingo, 10 de abril de 2011

Contra as formas de dogmatismo




Dentro da sua validade, teorias funcionam bem; mas dizer que a ciência detém a verdade é demais


EM SEU ENSAIO "Absence of Mind", a romancista e ensaísta americana Marilynne Robinson, que venceu o prêmio Pulitzer por seu romance "Gilead", critica cientistas como Richard Dawkins e Steven Pinker por seus ataques à fé e à religião.

Robinson declara que a postura desses cientistas é essencialmente fundamentalista, baseada na doutrina do "cientismo", que prega que a ciência é o único modelo explicativo válido. "As certezas que, juntas, trivializam e menosprezam, precisam ser revisitadas", escreveu.

Eis, resumidamente, o argumento de Robinson: não há dúvida de que a ciência é uma belíssima construção intelectual, com inúmeros triunfos no decorrer dos últimos quatro séculos. Porém, sua visão de mundo é necessariamente incompleta.

Reduzir todo o conhecimento aos métodos da ciência acaba por empobrecer a humanidade. Precisamos de diversidade cultural, e essa diversidade inclui, entre outras, a cultura das religiões.

O que faz com que cientistas tenham tanta confiança no seu saber? Afinal, a prática da ciência apoia-se em incertezas; uma teoria funciona apenas dentro de seus limites de validade. Teorias são testadas constantemente e seus limites são expostos. É justamente dos limites de uma teoria que surgem outras..

Portanto, para que a ciência avance é necessário que ela falhe.

As verdades de hoje não serão as mesmas de amanhã. Veja, por exemplo, a noção de que a Terra é o centro do cosmo, plenamente aceita até o século 17. Claro, dentro de sua validade, teorias funcionam extremamente bem e, dessa forma mais restrita, podemos chamá-las de verdadeiras. Mas afirmar que a ciência detém a verdade é ir longe demais.

Escrevo não como uma crítica à ciência -isso seria contradizer a minha obra!-, mas como uma espécie de toque de despertar aos que pregam a ciência como dona da verdade. É necessário ter mais cuidado.

Robinson examina vários casos, expondo seus pontos fracos e os abusos da retórica científica. Porém, ela não é imune aos abusos de sua retórica. Por exemplo, ela critica a análise de Steven Pinker sobre o "Bom Selvagem": "Será que é razoável argumentar contra o mito do Bom Selvagem baseando-se na cultura do século 20? O que nos parece primitivismo pode ser algo bem diferente. Não posso deixar que uma análise tão falha seja difundida".

Em 2006, Robinson publicou uma resenha do livro de Dawkins, "Deus, um Delírio", na qual critica o biólogo duramente. Robinson acusa Dawkins de usar argumentos científicos onde eles não são pertinentes. Por exemplo, quando Dawkins critica a ideia de que Deus é o criador do Universo, afirmando que a ideia não faz sentido: como o Universo começou simples, Deus não poderia ser complexo para conseguir criá-lo.

Dawkins conclui que Deus contradiz a teoria da evolução, pois já surge complexo. Robinson contra-ataca dizendo que aplicar teorias científicas a Deus não faz sentido. Mesmo sendo agnóstico, tenho de concordar com ela.

Muito da ciência e da religião vem da necessidade que temos de encontrar sentido e significado em nossas vidas. Simpatizo com a necessidade de humildade e autocrítica nas ciências defendida por Robinson. Espero, porém, a mesma atitude de líderes religiosos e teólogos.

domingo, 3 de abril de 2011

Uma mente sem limites


O interessante é aprender a aceitar nossas limitações, ao mesmo tempo em que tentamos transcendê-las

IMAGINE UMA pílula que ofereça poderes intelectuais ilimitados, que cause uma avalanche de atividade neuronal, elevando o cérebro a um nível de percepção incomparável. Você toma aquilo e, por algumas horas, vira uma espécie de deus.

Essa é a premissa do novo filme "Sem Limites", dirigido por Neil Burger e baseado no romance de Alan Glynn. O enredo nos apresenta Bradley Cooper no papel de um escritor fracassado que é transformado num gênio pelos poderes de uma milagrosa droga psicotrópica.

Imagine se o cérebro tivesse um poder tremendo, uma capacidade ilimitada de percepção e dedução anestesiada pela rotina? O que chamamos de criatividade, de "insights" geniais, são meras fagulhas do que poderia ocorrer, a percepção de uma realidade que tudo engloba, uma nova dimensão da existência.
Será possível abrirmos as portas para essa realidade, libertando-nos da "trivialidade" a que somos acorrentados pelo uso de apenas uma fração do nosso córtex?

Na verdade, a ideia de que usamos apenas 10% do cérebro é um mito. Usamos o órgão por inteiro, cada parte com uma função bem conhecida. Caso contrário, teríamos evoluído de forma diversa, com cérebros menores e mais econômicos.

Portanto, o ponto não é ativar áreas adormecidas do cérebro, mas criar conexões mais eficientes entre os neurônios: o segredo está em aumentar o número de pontes entre eles, intensificar o trânsito, por assim dizer, criando novas ressonâncias que levem a um patamar mais elevado de consciência.

Será que uma pílula pode realmente fazer isso?

Ninguém sabe. Mas vejamos onde estamos hoje. Milhões de pessoas, incluindo crianças, tomam vários medicamentos à base de anfetaminas, todos estimulantes.

As drogas aumentam a quantidade de dopamina no cérebro, otimizando o foco e a atenção, a libido e o nível geral de eficiência cognitiva do paciente. Essas drogas são, de certa forma, versões simplificadas da NZT 48, a pílula mágica do filme: a ficção ampliando o que já existe. Será que a ciência pode chegar a algo assim? E, se puder, quem a tomaria?

Vemos aqui mais uma versão moderna da lenda de Fausto. Agora o Diabo veste as roupas da indústria farmacêutica, ou as de um traficante de drogas.

No romance "A Pedra Filosofal", de 1969, Colin Wilson imaginou um cenário semelhante: com o implante de eletrodos em pontos estratégicos do córtex pré-frontal, seria possível catapultar o cérebro a um nível de funcionamento inimaginável.

O "homem liberado" que resulta do experimento é transformado num profeta, num gênio, num deus, capaz de ver o passado e o futuro, de decifrar significados profundos sobre o Universo que as pessoas mais comuns nem sonham existir.

Será que nós podemos acender todas as luzes sem queimar o fusível central? Qual a vantagem de uma mente ilimitada?

No filme, as vantagens que temos permanecem: quem é mais inteligente continua mais inteligente. Talvez possamos extrair uma lição importante do filme e do livro: o que torna a vida interessante não é atingir níveis fantasiosos de percepção, mas aprender a aceitar nossas limitações ao mesmo tempo em que tentamos transcendê-las.

domingo, 27 de março de 2011

Quem teme a Singularidade?




A crença na imortalidade por meio das máquinas lembra outra muito antiga, no triunfo da alma humana

VOCÊ ESTÁ preparado para virar um deus? "A Singularidade Está Próxima" é um documentário dirigido por Anthony Waller e codirigido pelo famoso inventor e autor Ray Kurzweil. No Brasil, existe a tradução do seu "A Era das Máquinas Espirituais", pela editora Aleph. Eis a sinopse do filme:

"No século 21, nossa espécie vai se libertar do seu legado genético e atingirá um nível inimaginável de inteligência, progresso material e longevidade; consequentemente, a definição de "ser humano" será enriquecida e transformada. O celebrado futurista Ray Kurzweil apresenta uma visão que é a culminação dramática de séculos de desenvolvimento tecnológico e que transformará o nosso destino".

De acordo com Kurzweil, o avanço tecnológico e, em particular, o avanço na velocidade de processamento e de memória de dados, é tão rápido que em breve atingiremos um ponto no qual máquinas serão capazes de superar o cérebro humano. Ele prevê que a humanidade atingirá um ponto final, a "Singularidade". De lá em diante, algo novo e imprevisível, talvez um híbrido de máquina e humano, talvez apenas máquina, existirá, matéria inanimada imitando a vida em estado de animação virtual.

A esperança de Kurzweil e outros entusiastas da Singularidade é que velocidades altas de processamento, mais o acesso ilimitado a dados, podem simular o cérebro: máquinas com altíssima complexidade computacional podem criar uma ultrainteligência emergente. Humanos, preparem-se, pois o seu fim está próximo! E a data foi marcada para 2045.

Kurzweil não é nem bobo nem louco. Apesar de ter vários críticos, é um inventor reconhecido, vencedor de vários prêmios. Stevie Wonder foi o primeiro a comprar a sua máquina de leitura para cegos; seus sintetizadores são famosos.

Ele fundou a Universidade da Singularidade, hospedada no Centro de Pesquisa Ames, da Nasa, e parcialmente financiada pelo Google, na qual executivos fazem cursos para se preparar para a Singularidade. (Lembram os evangélicos se preparando para o Apocalipse.) Kurzweil quer mais do que máquinas ultrainteligentes; quer ser imortal também. Acredita que a morte é uma doença curável, e que os avanços da medicina e da genética permitirão estender a longevidade indefinidamente. Esses seres imortais não serão de carne e osso, mas máquinas espirituais dotadas de nossa consciência e memória. A felicidade, e outras qualidades e emoções, como a generosidade e o ódio, terão de ser repensadas.

Teremos de rever tudo, e o pior é que nem sabemos como começar.

"Singularidade" significa um ponto no qual nosso conhecimento deixa de funcionar, onde as leis deixam de ser leis. Será que devemos levar isso a sério? Sim, devemos.

Apesar de várias questões (a extrapolação de Kurzweil é baseada em dados passados; não há garantia que funcionará no futuro), nossa simbiose com as máquinas de silício é cada vez maior. Você vê isso na rua, com as pessoas e seus celulares e bluetooths como extensões de seus braços e ouvidos. Por outro lado, a crença na Singularidade me parece a versão moderna duma crença muito antiga, a do triunfo final da alma humana.

domingo, 20 de março de 2011

Conversa Sobre a Fé e a Ciência




Os caminhos da razão e do espírito são um só: a busca por significado em um mundo cheio de mistérios

NA SEMANA QUE VEM sai meu novo livro, em parceria com Frei Betto e com intermediação de Waldemar Falcão, "Conversa Sobre a Fé e a Ciência", pela Nova Fronteira. Temos alguns eventos no Rio e em São Paulo, de que espero participar via teleconferência, aproveitando os benefícios de nossa era digital.

Conversas sobre ciência e religião, em geral, terminam em briga. Mas não deveriam. Talvez seja essa uma das lições mais importantes que Frei Betto e eu queremos passar.

Reconheço que somos dois exemplos um pouco alternativos. Eu, como cientista, mantenho uma posição de respeito pela religião. Frei Betto, como pensador político e teólogo cristão, mantém uma posição aberta em relação à ciência. Começamos a conversa sem nos conhecermos e terminamos amigos.

Frei Betto concorda comigo que é absurdo fechar os olhos para os avanços da ciência, negando suas descobertas. Concorda, também, que a religião não deve ser usada fora de seu contexto, especialmente como um substituto da ciência.

Usar a Bíblia como texto científico, tentar extrair de sua narrativa simbólica fatos sobre o surgimento do Universo e da vida, é retornar ao obscurantismo da Idade Média. Por outro lado, concordamos plenamente que a ciência não se propõe a atingir uma verdade "absoluta".

Verdades dependem de quando são formuladas, ou seja, do contexto histórico em que são buscadas. Por exemplo, para os gregos, era "verdade" que a Terra era o centro do Universo; até o fim do século 18, era "verdade" que o Sol era o centro do Universo; até 1924, era "verdade" que a Via Láctea era a única galáxia no Universo. Com o avanço da ciência, essas verdades foram substituídas por outras.

Apesar de não haver dúvida de que certos fatos científicos permanecem inalterados com o passar do tempo (por exemplo, as leis de Newton), chamá-los de "verdades" talvez seja imprudente.

A ciência é uma narrativa que se ocupa do mistério, do não saber. Ela não tem capítulo final. Seu foco não é a busca pela verdade, mas por uma descrição do mundo que esteja de acordo com nossas observações.

Por outro lado, as religiões organizadas, com seu dogmatismo intransigente, distorcem o real sentido da fé. Nisso, Frei Betto e eu também concordamos plenamente (para ver no que mais concordamos e no que discordamos, é preciso ler o livro).

No cerne da religião, no ato de devoção religiosa, encontramos a espiritualidade pura, individual, que tece uma relação profunda entre o homem e o Universo e entre o homem e a sua consciência.

Frei Betto menciona Santa Teresa D'Ávila como alguém que alcançou um nível exemplar de transcendência pessoal e de comunhão com o divino. Aprendi muito durante nossa "conversa" e saí admirando meu interlocutor ainda mais.

Vejo a ciência, no aspecto mais puro e humano, como uma busca por transcendência, em que o espírito humano se une ao mundo natural para criar novas formas de pensar a nossa existência e, por meio da tecnologia, para criar expressões materiais dessa comunhão. Sob esse prisma, os caminhos da razão e do espírito são um só, simbolizando a essência do ser humano, que é a busca por significado num mundo cheio de mistérios.

domingo, 13 de março de 2011

Teoria de tudo: fato ou fantasia?




Faço o papel do contra: nosso conhecimento do mundo é necessariamente algo bastante incompleto


NA SEGUNDA-FEIRA passada, tive o privilégio de participar de um evento promovido pelo Museu Americano de História Natural, em Nova York. Foi o debate anual em memória do famoso escritor e divulgador de ciência Isaac Asimov. O mestre de cerimônias foi Neil deGrasse Tyson, do Planetário Hayden.

Éramos seis físicos, alguns conhecidos do público pelos seus livros de divulgação: Katherine Freese, da Universidade de Michigan, Brian Greene, da Universidade Columbia, Janna Levin, também de Columbia, Sylvester Gates Jr., da Universidade de Maryland, e Lee Smolin, do Instituto Perimeter, no Canadá. Um público de 1.300 pessoas lotou o auditório, intrigado pelo tema da discussão: teoria de tudo, realidade ou fantasia?

Foi uma noite e tanto. (Para os leitores que entendem inglês, o debate estará disponível em vídeo em breve.) Muitos físicos acreditam que a teoria de tudo (TDT) é o objetivo final da ciência: a descrição completa de como as partículas elementares da matéria interagem entre si e que, de quebra, mostra que todas as forças que descrevem essas interações são uma só.

  Essa TDT seria o ápice do processo reducionista que começou na Grécia Antiga em torno de 450 a.C., quando os atomistas propuseram que a matéria é feita de pedaços indivisíveis, os átomos. (É importante esclarecer que a TDT não diz nada sobre "tudo": ela não prediz o tempo ou o que você vai comer no café da manhã, restringindo-se às partículas e suas interações.)

A busca muda conforme o nosso conhecimento sobre a composição e as propriedades da matéria muda. Esse foi, aliás, um dos meus argumentos. Fiz o papel do contra, baseando-me nas ideias do meu último livro, "Criação Imperfeita". A maioria dos integrantes do painel acredita que é possível chegar a uma TDT e que talvez a teoria das supercordas seja o caminho. Sou mais cético. Não tanto em relação ao que as supercordas podem fazer, mas sobre a existência de uma TDT e a possibilidade de encontrá-la.

  "Supercordas", para quem não sabe, é a teoria que diz que as partículas de matéria são feitas de cordas submicroscópicas vibrando em frequências diferentes. Sua atração é que oferece um caminho para entendermos o que ocorre no centro dos buracos negros e na origem do Universo. O problema é que supercordas existem em dez dimensões espaciais e requerem a "supersimetria", uma simetria que dobra o número de partículas que existem.

  Até agora, não temos qualquer indicação de que dimensões extra ou supersimetria existem. O LHC, a máquina na Suíça que procura novas partículas, vem pondo limites sérios à existência da supersimetria. Em alguns anos saberemos.

  Mesmo se as supercordas estiverem corretas, ainda assim não as chamaria de TDT. O que sabemos da natureza depende do que podemos medir. Portanto, a busca por teorias unificadas deve ser constantemente revisada à medida em que descobrimos mais. Todos os esforços passados falharam porque não podemos prever o que mediremos no futuro. Uma teoria de supercordas do século 21 pode coletar (unificar) o que sabemos até hoje, mas não pode ser definitiva. Nosso conhecimento do mundo é necessariamente incompleto.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Infinito, elétron e outras invenções


Baseamos os nossos argumentos no que podemos medir. E o que vem a ser a coisa real? Talvez nunca saibamos

OUTRO DIA, meu filho de quatro anos perguntou: "Pai, você pode contar até infinito?" "Não posso, filho, não ia acabar nunca". "Mas quanto é infinito menos três?" "É infinito também". "Mas como se escreve o número infinito?" "É um oito deitado." "Mas isso é um número, feito um ou dois?"

O infinito é mais uma ideia do que um número. É um conceito que criamos para representar sequências infindáveis de números, ou um ponto no espaço ou no tempo infinitamente distante da nossa posição ou do nosso momento presente.

O infinito não é algo a que chegamos; é algo sobre o qual pensamos.

Uma representação de nossas limitações, já que somos finitos no espaço e no tempo. Por outro lado, é também exemplo da nossa criatividade.

Mesmo que arredio, o infinito está por toda parte. Em cosmologia, dados atuais indicam que o Universo é infinito. Se andarmos numa direção e mantivermos a rota, jamais retornaremos ao ponto de partida. Se o universo fosse finito, feito a superfície de uma bola (em 3D), poderíamos circunavegá-lo, como o fez Fernão de Magalhães com a Terra (ou os que restaram de sua tripulação.)

Podemos ter certeza de que o universo é infinito? Não. Sabemos apenas que a porção do espaço que podemos medir, o que chamamos de horizonte -a distância percorrida pela luz em 13,7 bilhões de anos- é plana (ou quase). E uma geometria plana, como a superfície de uma mesa, estende-se ao infinito. Mas nossa certeza termina aí.

É possível que nossa porção plana do espaço faça parte de um universo curvo gigantesco. Se não temos acesso ao que há fora do horizonte, não temos certeza do que existe lá. Podemos apenas inferir.

E os pontos e linhas da geometria? Conceitos estranhos, também.

Um ponto marca uma posição no espaço, mas não ocupa espaço: seu volume é nulo. Uma linha, ligando dois pontos no espaço, não tem espessura. E é feita de pontos adjacentes. Coisas sem volume, lado a lado, fazem uma linha sem espessura!

Portanto, representamos coisas no espaço usando coisas que não existem no espaço, mais ideias do que coisas. Representações matemáticas, como quando desenhamos pontos num papel e os conectamos com linhas, mesmo que ilusórias, funcionam extraordinariamente bem. O real baseia-se no intangível.

Quando procuramos pelos menores pedaços de matéria, encontramos ideias semelhantes. Átomos são formados de elétrons, prótons e nêutrons. Prótons e nêutrons são formados de quarks. Portanto, dizemos assim que a matéria é feita de quarks e elétrons.

Será que quarks e elétrons são feitos de coisas ainda menores? Um elétron não é simplesmente uma bola de energia com carga negativa.

Um físico de partículas diria que um elétron não tem estrutura interna, que não há nada "lá dentro". Mas não podemos ter certeza.

Baseamos nossos argumentos no que podemos medir. Podemos tratar o elétron como uma partícula "pontual", com carga elétrica negativa, mas devemos lembrar que esta representação é uma aproximação da coisa real. E o que é essa coisa real? Talvez nunca saibamos. Como pontos e linhas, os elétrons e quarks são construções que usamos para representar como vemos o mundo.

Eles são como os vemos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ciência, fé e as três origens


A compreensão científica dos vários fenômenos da natureza deveria fortalecer a nossa espiritualidade


UMA EXCELENTE ILUSTRAÇÃO da intersecção entre a ciência e a religião ocorre quando refletimos sobre o que chamo de "as três origens": a do Universo, a da vida e a da mente.

Por milênios, mitos de criação de todas as partes do mundo vêm tecendo explicações para esses três grandes mistérios. No meu livro "A dança do Universo" (Ed. Companhia das Letras, 2006), explorei alguns dos temas míticos que reaparecem na ciência, em particular na cosmologia, no estudo do Universo.

Precisamos conhecer nossas origens. E, desde os primórdios, olhamos para os céus em busca de respostas. Hoje, sabemos que somos aglomerados de poeira estelar dotados de consciência. Para desvendar nossa misteriosa origem, precisamos saber de onde vieram as estrelas, como a matéria não viva se transformou em matéria viva e como essa virou matéria pensante.

Mitos de criação atribuem as três origens a forças sobrenaturais, capazes de realizar feitos que nos parecem impossíveis. Grande parte do conflito entre a religião e a ciência se deve à tensão entre esses dois modos antagônicos de explicação.

Qualquer entidade que, por definição, existe além das leis naturais está além da esfera da ciência.

Será que as três origens podem ser explicadas pela ciência, sem a interferência de entidades sobrenaturais? Em caso afirmativo, religiões baseadas em entidades que existem além das leis naturais teriam que sofrer revisões profundas.

Isso não significa que, caso a ciência venha a entender as três origens, não teremos mais uma conexão espiritual com a natureza. Pelo contrário, a compreensão dos fenômenos naturais, dos mais simples aos mais profundos, deveria apenas fortalecer nossa espiritualidade. A racionalidade e a espiritualidade são aspectos complementares.

Religiosos ou não, poucos resistem ao fascínio da criação. As perguntas que fazemos hoje foram já feitas há milênios de anos na savana africana, nas pirâmides do Egito, nas colinas do monte Olimpo e na selva amazônica. O que mudou foi a natureza da explicação.

A cosmologia nos mostra que o Universo surgiu há 13,7 bilhões de anos. Podemos reconstruir sua história a partir de um segundo após a criação -um grande feito do intelecto humano. Mas ainda não podemos ir até a origem. Podemos afirmar que todos os seres vivos na Terra, presentes e extintos, dividem um ancestral em comum, um ser unicelular que viveu em torno de 3,5 bilhões de anos atrás. Mas não entendemos a origem da vida em si e nem sabemos se a questão pode ser respondida de forma definitiva: talvez existam várias origens da vida.

Entendemos menos ainda o cérebro, esse fantástico aglomerado de cerca de 100 bilhões de neurônios que define quem somos. Porém, através da ressonância magnética, detectamos as atividades de grupos de neurônios que trabalham como numa orquestra sem maestro.

Se podemos ou não entender as três origens através da ciência é matéria para futuros ensaios. Precisamos destrinchar as questões relacionadas com a natureza e com os limites do conhecimento.

São as questões não respondidas que servem de motivação para os cientistas. O destino final importa menos do que o que aprendemos no meio do caminho.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2002201102.htm

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Defendendo a ciência


Outros países educam seus jovens sobre a importância da ciência; no Brasil, há uma corrente contrária

PARECE NOTÍCIA VELHA, mas a ciência e o ensino da ciência continuam sob ataque. Por exemplo, uma busca na internet com as palavras "criacionismo", "escolas" e "Brasil" leva ao portal www.brasilescola.com. Lá, há um texto, de Rainer Sousa, da Equipe Brasil Escola, que discute a origem do homem.

O autor afirma que o assunto é "um amplo debate, no qual filosofia, religião e ciência entram em cena para construir diferentes concepções sobre a existência da vida".

No final, diz: "sendo um tema polêmico e inacabado, a origem do homem ainda será uma questão capaz de se desdobrar em outros debates. Cabe a cada um adotar, por critérios pessoais, a corrente explicativa que lhe parece plausível".

"Critérios pessoais" para decidir sobre a origem do homem? A religião como "corrente explicativa" sobre um tema científico, amplamente discutido e comprovado, dos fósseis à análise genética?

Como é possível essa afirmação de um educador, em pleno século 21, num portal que leva o nome do nosso país e se dedica ao ensino?

Existem inúmeros exemplos da tentativa, às vezes vitoriosa, da infiltração de noções criacionistas no currículo escolar. Claro, se o criacionismo fosse estudado como fenômeno cultural, não haveria qualquer problema. Mas alçá-lo ao nível de teoria científica deturpa o sentido do que é ciência e de seu ensino.

Um país que não sabe o que é ciência está condenado a retornar ao obscurantismo medieval. Enquanto outros países estão trabalhando para educar seus jovens sobre a importância da ciência, aqui vemos uma corrente contrária, que parece não perceber que a ciência e as suas aplicações tecnológicas determinam, em grande parte, o sucesso de uma nação.

Muitos dirão que são contra a ciência apenas quando ela vai de encontro à fé. Tomam antibióticos, mas rejeitam a teoria da evolução.

Se soubessem que o uso de antibióticos, que aumenta as chances de que os germes criem imunidade por mutações genéticas, é uma ilustração concreta da teoria da evolução, talvez mudassem de ideia. Ou não. Nem o melhor professor pode ensinar quem não quer aprender.

Os cientistas precisam se engajar mais e em maior número na causa da educação do público em geral.
Mas devemos ter cuidado em como apresentar a ciência, sem fazê-la dona da verdade. Devemos celebrar os seus feitos, mas ser francos sobre suas limitações e desafios (a teoria da evolução não é um deles!) Não devemos usar a ciência como arma contra a religião, pois estaríamos transformando-a numa religião também. Achados científicos são postos em dúvida e teorias "aceitas" são suplantadas.

Bem melhor é explicar que a ciência cria conhecimento por meio de um processo de tentativa e erro, baseado na verificação constante por grupos distintos que realizam experimentos para comprovar ou não as várias hipóteses propostas.

Teorias surgem quando as existentes não explicam novas descobertas. Existe drama e beleza nessa empreitada, na luta para compreender o mundo em que vivemos. Ignorar o que já sabemos é denegrir a história da civilização. O problema não é não saber. O problema é não querer saber. É aí que ignorância vira tragédia.