domingo, 26 de agosto de 2001

Uniformitarianismo versus catastrofismo

Quando eu era garoto, minha família costumava passar os fins de semana em Teresópolis, uma cidade na Serra dos Órgãos, perto do Rio de Janeiro. "Subir a serra" era para mim uma aventura fantástica: a densa mata atlântica circundando os picos dramáticos das várias montanhas, árvores teimando em crescer sobre pedra, tantas vezes desafiando a gravidade em sua audácia. Perto do famoso Dedo de Deus, um imenso paredão aponta verticalmente para o céu, elevando-se por uns 200 metros antes de começar a encurvar-se gradualmente. Numa dessas subidas, eu perguntei ao meu pai, "As montanhas não mudam nunca?" "Claro que sim", ele respondeu, "Mas o tempo para uma montanha passa muito mais devagar do que para nós ou para uma árvore". Passados muitos anos, o paredão continua lá, essencialmente idêntico, decorado por árvores que mudam a cada estação.

Essa visão da transformação gradual da Terra, introduzida por Charles Lyell em 1830, é conhecida como uniformitarianismo. Durante os anos 60 essa visão ganhou ainda mais força com a descoberta da "tectônica de placas", onde geólogos observaram que a crosta terrestre pode ser interpretada como sendo composta por enormes placas continentais flutuando lentamente, como navios à deriva em um mar de fraca correnteza. A velocidade dessas placas é de apenas alguns centímetros por ano, comparável à velocidade de crescimento de suas unhas. Portanto, não só os processos erosivos que esculpem as montanhas como, também, os processos de formação de montanhas e continentes satisfazem ao gradualismo proposto por Lyell. Os eventos mais dramáticos ficam restritos a erupções vulcânicas, dilúvios e mudanças climáticas.

Mas a Terra não pode ter sempre gozado de uma existência pacífica, onde tudo ocorre gradualmente. A superfície da Lua e de planetas vizinhos, como Mercúrio e Vênus, é coberta por enormes crateras, cicatrizes de um passado extremamente violento. Durante o seu primeiro bilhão de anos, o Sistema Solar se assemelhava a uma galeria de tiro ao alvo, com a Terra sofrendo intenso bombardeio devido a colisões com asteróides e cometas. Hoje, acredita-se que a própria Lua teria sido arrancada da Terra devido a uma colisão com um protoplaneta de dimensões semelhantes à de Marte. Dentro dessa visão, a infância da Terra não teve nada de gradual ou uniforme, tendo sido pontuada por impactos de dimensões catastróficas.

Vem à mente a imagem de um escultor perante um enorme bloco de pedra. Suas primeiras ações são violentas, retirando grandes pedaços de pedra até que o bloco assuma a estrutura básica da estátua final. A partir daí, o escultor irá detalhar gradualmente o bloco já formado, até que ele chegue à forma desejada. A Terra continuará sempre em formação, visto que as placas continentais permanecem à deriva. Mas a era das transformações catastróficas já terminou. A história da Terra revela uma complementaridade essencial entre o catastrofismo e o uniformitarianismo: o que vemos hoje é produto de ambos processos geológicos, um local e outro nos ligando ao cosmos.

Essa complementaridade pode ser estendida à própria diversificação da vida sobre a Terra. A teoria da evolução de Darwin foi fortemente influenciada pelas idéias de Lyell: as raras mutações que ocorrem nas diversas espécies são ainda mais raramente benéficas à sua sobrevivência. As espécies são extintas gradualmente, por exemplo, devido a mudanças ambientais ou a um desequilíbrio na população entre predador e presa. A evidência dessa extinção gradual é obtida por meio de escavações, onde procura-se por fósseis de uma determinada espécie. Em uma extinção gradual, a abundância dos fósseis diminui aos poucos, e não abruptamente. Porém, o catastrofismo também invadiu a biologia. Hoje, temos evidência de que várias espécies foram extintas subitamente, com seus fósseis desaparecendo misteriosamente após uma certa data. Em muitos casos, incluindo o dos dinossauros, esse desaparecimento foi causado por colisões catastróficas com objetos celestes. Ou seja, mesmo que as colisões tenham sido mais abundantes na infância da Terra, elas ocorreram também em épocas mais recentes. A diversidade da vida, tal como a da geologia do nosso planeta, é consequência da complementaridade entre o uniformitarianismo e o catastrofismo.

domingo, 19 de agosto de 2001

Prevendo o destino do cosmo

Todos os dias, milhões (bilhões?) de pessoas lêem o seu horóscopo em jornais e revistas, ansiosos por antecipar os eventos de suas vidas: Será que terei sorte na loteria? No amor? No trabalho? Será que viverei por muitos anos? É extremamente sedutor tentar prognosticar o nosso destino, tentar burlar as surpresas que o tempo nos trará. Esse interesse em prognosticar o futuro não se restringe à nossa vida individual. Se as nossas vidas têm uma duração finita, o que será do cosmo em que vivemos? Afinal, a Terra também tem uma história, com um princípio (há 4,6 bilhões de anos), um meio (a época atual) e um fim (em aproximadamente 5 bilhões de anos, quando o Sol entrar em seus estertores finais).

Apesar do tom pessimista, o fim da Terra não representa necessariamente o fim da espécie humana. Podemos imaginar que, em alguns milhões de anos (ou menos), iremos desenvolver tecnologias capazes de nos transportar para um outro sistema planetário, colonizando outras partes da galáxia do mesmo modo que exploradores do século 16 colonizaram novos continentes. Mas a situação se complica se o Universo entrar em pane. Nos últimos 50 anos, a cosmologia mostrou que o cosmo também tem uma história, com um princípio (há aproximadamente 14 bilhões de anos), um meio (a época atual, em que o Universo contém bilhões de galáxias e, no mínimo, uma espécie inteligente) e um fim. E, se o Universo inteiro desaparecer, realmente estaremos encurralados pelo fim do tempo. A menos, claro, que descubramos passagens para outros universos, o que no momento viola várias leis da física. Deixando de lado tal possibilidade, a questão do fim do cosmo se torna extremamente importante: o que diz a cosmologia a respeito?

Até 1998, a resposta era imediata: o destino do Universo depende da quantidade de matéria que ele possui. A física que descreve a evolução do Universo é ditada pela teoria da relatividade geral, de Einstein. Para tornar as coisas mais simples, uma excelente analogia pode ser feita entre o destino cósmico e um foguete escapando da gravidade terrestre. No caso do foguete, duas forças estão em jogo: a gravidade terrestre atrai o foguete, dificultando o seu escape (e o foguete atrai a Terra de volta, sem muitos resultados), e as turbinas do foguete o impulsionam em direção ao espaço.

Quanto mais potente for o foguete, maior a altura que ele alcançará. No final, o foguete atingirá uma velocidade suficiente para escapar da gravidade terrestre. Essa velocidade é conhecida como "velocidade de escape" (a velocidade de escape para a Terra é de 11 quilômetros por segundo). Portanto, existe uma competição entre a gravidade terrestre e a potência das turbinas do foguete.

Voltando ao Universo, a competição é semelhante: a quantidade total de matéria no Universo tende a diminuir sua taxa de expansão, como se o Universo estivesse tentando escapar de sua própria gravidade. Portanto, tudo depende de quanta matéria (e energia, pois, devido à famosa relação E=mc2, não podemos separar as duas) existe no Universo. Se o Universo tiver menos matéria do que a sua densidade crítica (a densidade de "escape"), sua gravidade não será suficiente para reverter a sua expansão em contração. Caso contrário, o Universo entrará em uma fase de contração que terminará em seu colapso final. O desafio é então "medir" a quantidade de matéria no Universo e compará-la com a densidade crítica. Mas, em 1998, tudo mudou.

Astrônomos descobriram que o Universo está passando por uma fase em que a sua expansão está sendo acelerada. Essa aceleração não cabe no modelo simples do Universo escapando da própria gravidade. Para que o Universo esteja acelerando, um outro ingrediente é necessário, uma espécie de antigravidade, conhecida como constante cosmológica.

A presença da constante cosmológica complica as previsões do destino do Universo baseadas apenas em sua quantidade de matéria. Por exemplo, é perfeitamente possível que o Universo tenha densidade acima da crítica, sem jamais entrar em colapso. Para piorar, não basta medirmos o valor atual da constante cosmológica. E se ele mudar no futuro, por exemplo, indo a zero? Caso a aceleração cósmica seja confirmada, será difícil (se não impossível) prevermos o destino do cosmo. Teremos de aprender a viver com essa incerteza.

domingo, 12 de agosto de 2001

Os cinco eclipses mais importantes da história

O primeiro eclipse total do Sol do novo milênio ocorreu no dia 21 de junho passado. Apenas aqueles que se encontravam dentro de uma faixa varrende oeste a leste o cone sul da África tiveram o privilégio de assistir ao vivo um dos espetáculos mais emocionantes da natureza. Tal como no eclipse de agosto de 1999, eu acompanhei um grupo de ex-alunos do Dartmouth College, a universidade onde leciono nos EUA, misturando turismo com aulas de astronomia. No nosso navio, posicionado a oeste de Madagascar, estavam também grupos da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, cada um deles com o seu professor. A coluna de hoje foi inspirada por uma das palestras proferidas por Owen Gingerich, um famoso historiador da ciência e o responsável pelo grupo de Harvard.

O tema da palestra de Gingerich era "Os cinco eclipses mais importantes da história". Claro, a escolha dos "cinco mais" tem uma grande dose de arbitrariedade. De qualquer forma, os cinco eclipses selecionados tiveram mesmo um papel muito importante no desenvolvimento da astronomia. O primeiro ocorreu no dia 28 de maio de 585 a.C. Supostamente, esse eclipse teria sido "previsto" pelo grego Tales de Mileto, considerado por muitos, inclusive o grande Aristóteles, como o primeiro dos filósofos ocidentais. O ponto crucial aqui não é o eclipse, mas sua previsão. Antes de Tales, os fenômenos naturais eram atribuídos a ações divinas e não a fatores compreensíveis racionalmente. Os céus passaram a ser acessíveis à razão, inaugurando nova era do pensamento humano.

Saltando mais de 2.000 anos de história, o segundo eclipse da lista ocorreu no dia 18 de julho de 1860. Esse foi o primeiro eclipse a ser fotografado -e o casamento entre a astronomia e a fotografia é um dos mais felizes da história da ciência. As fotos facilitaram a descoberta de que os jatos de gás incandescente conhecidos como proeminências surgem da superfície solar e não externamente a ela, conforme se acreditava na época. No dia 18 de agosto de 1868, durante o terceiro eclipse da lista, um espectroscópio revelou, pela primeira vez, a composição química dos gases presentes nas proeminências. Em 1859, os alemães Bunsen e Kirchhoff haviam demonstrado que cada elemento químico tem o seu próprio espectro de emissão de luz, obtido quando uma amostra do elemento é aquecida a ponto de emitir radiação. O espectro das proeminências solares revelou claramente as linhas vermelhas, verdes e azuis do hidrogênio. Mas o espectro também revelou a presença de linhas amarelas que não correspondiam a qualquer elemento encontrado na Terra até então. Esse "novo" elemento foi chamado de hélio, em homenagem ao deus grego ligado ao movimento do Sol pelos céus.

O quarto eclipse da lista ocorreu no dia 7 de agosto de 1869. Dessa vez, fotografou-se o espectro da coroa, a região externa ao disco solar, cuja beleza translúcida é apenas visível durante eclipses totais ou quando o disco solar é artificialmente obscurecido. Vários elementos foram identificados, incluindo o hélio e um outro elemento misterioso, que ficou conhecido como "coroneum". Apenas no século 20 ficou claro que o elemento "coroneum" não era um novo elemento químico presente apenas na coroa solar, mas sim o elemento ferro altamente ionizado.

Um elemento ionizado tem um ou mais de seus elétrons retirados de seu átomo. No caso do "coroneum", metade dos elétrons dos átomos de ferro foi arrancada. Com isso, astrônomos concluíram que a coroa não só é extremamente tênue -os átomos de ferro não conseguem resgatar novos elétrons para voltar ao seu estado não-ionizado- mas que ela também goza de temperaturas altas o suficiente para promover as colisões responsáveis pela dramática ionização dos átomos de ferro. Ainda não se sabe ao certo por que razão a coroa apresenta temperaturas tão altas.

O último dos eclipses da lista ocorreu em 1919, varrendo uma faixa entre o Ceará e a Guiné, na costa oeste da África. Astrônomos confirmaram que a força da gravidade pode ser interpretada como a curvatura do espaço em torno de um corpo maciço, conforme previu Einstein. Ao passar junto ao Sol, a luz proveniente das estrelas é desviada de sua trajetória retilínea. A curvatura do espaço é revelada durante um eclipse, modificando profundamente nossa percepção do Universo onde vivemos.

domingo, 5 de agosto de 2001

A nova super-rede


O desenvolvimento dos computadores nos últimos 15 anos vem modificando profundamente a pesquisa científica nas áreas mais variadas, da cosmologia até a geologia e a genética. Eu me lembro, quando ainda era estudante de doutorado em meados dos anos 80, da dificuldade que era rodar um programa relativamente simples. Primeiro, era preciso ir ao prédio onde estavam os terminais de acesso aos computadores (caso não fosse necessária a leitura de cartões).

Depois, era longa a espera até que o pequeno processador calculasse as derivadas de que precisava para resolver a minha equação. Finalmente, eu tinha de esperar os resultados serem impressos na impressora central e ficar na fila para recebê-los. Era possível fazer um gráfico das soluções, mas a tecnologia existemnte era bastante primitiva. Para a maioria das pessoas, criar uma animação das soluções era coisa de ficção científica.

As ciências físicas baseiam-se em modelos matemáticos usados na descrição dos fenômenos naturais. Muitas vezes essa descrição envolve equações que não podem ser resolvidas "à mão", isto é, não é possível encontrar soluções dessas equações em termos de funções matemáticas comuns, como o seno ou o logaritmo. Em outros casos, temos de resolver muitas equações ao mesmo tempo, o que seria humanamente impossível. É aqui que residem as mais importantes aplicações dos computadores nas ciências físicas: o que não podemos resolver à mão, resolvemos numericamente, por meio de cálculos aproximados realizados em computadores. Claro, quanto mais complicada a equação (ou equações), mais poderoso deve ser o computador. Por exemplo, hoje sabemos que as galáxias não estão distribuídas pelo cosmo ao acaso, mas sim respeitando uma estrutura extremamente complexa. Uma imagem útil na descrição da distribuição de galáxias é a de um banho de espuma. As galáxias estão distribuídas na superfície das bolhas, enquanto seu interior é essencialmente vazio. Usando a lei da gravitação, é possível simularmos a distribuição de galáxias observada por astrônomos, testando assim as teorias de formação da estrutura cósmica. Para isso são usados os computadores mais poderosos do mundo, capazes de resolver mais de 258 milhões de equações conjuntamente, com 512 processadores em paralelo.

Em cálculos dessa natureza, quanto maior o número de processadores, melhor. É aqui que entra a idéia da "super-rede": por todo o mundo, milhões de computadores passam uma enorme parte de seu tempo em hibernação, esperando por novos cálculos ou tarefas. Por que não criar uma super-rede, capaz de identificar quais computadores estão sendo subutilizados, integrando-os em cálculos feitos em outros computadores? Como um gigantesco polvo estendendo seus tentáculos, a super-rede otimizaria o uso dos computadores, conectando máquinas em Pequim e São Paulo para realizar os cálculos de um meteorologista russo ou de um geólogo australiano.

Tal como com o desenvolvimento da internet, são os físicos que vêm tentando desenvolver programas capazes de reconhecer quais nódulos na super-rede são utilizáveis em um dado momento e como integrá-los nos cálculos, oferecendo ao mesmo tempo uma interface que torna a sua utilização relativamente fácil. Por exemplo, os programas sendo testados atualmente decidem por si só como otimizar a distribuição das tarefas entre os vários nódulos. Essas incluem não só a resolução de equações em simulações, mas, também, a análise de enormes quantidades de dados. Como um outro exemplo, experimentos envolvendo colisões de partículas elementares a altas energias produzem milhares de trilhões de bits de dados por ano, cujas análises mais primárias necessitam de 20 trilhões de operações por segundo. O computador mais veloz atualmente pode processar "apenas" 3 trilhões de dados por segundo. O apetite por maiores velocidades de processamento e armazenamento de dados só tende a crescer.

Dois problemas essenciais com a super-rede são a fidelidade e a rapidez na transmissão de informação, além da segurança. Como um gigantesco animal cibernético, é importante que a super-rede tenha excelentes sistemas cardiovascular (para o fluxo de informação) e imunológico (na defesa contra um vírus). Caso contrário, a super-rede será a Torre de Babel da era da informática.