domingo, 24 de março de 2013

Do nada, tudo


Se, em ciência, todo efeito é resultado de uma causa, qual é a causa primeira do surgimento do Cosmo?

NA SEMANA PASSADA, comecei uma discussão do que chamo o "problema das três origens", focando inicialmente na questão da origem da vida. Apesar de estarmos longe de saber como a matéria inerte tornou-se viva na Terra primitiva ou de como fazê-lo no laboratório, considero essa a mais fácil das três questões.

A origem da vida é algo que podemos estudar de fora para dentro, para ter uma visão externa e objetiva do que ocorre. Mesmo que seja impossível saber exatamente como a vida surgiu na Terra, podemos investigar os possíveis caminhos bioquímicos que levam a não vida à vida. No caso do Cosmo e da mente, as coisas são mais sutis.

Pelo que sabemos, todas as culturas tentaram narrar o processo da origem do mundo. Conforme exploro no livro "A Dança do Universo", os mitos de criação sugerem um número pequeno de respostas possíveis para a origem do mundo.

Todos pressupõem a existência de alguma divindade ou poder absoluto capaz de criar o mundo. Na maioria dos casos, esse poder absoluto é um deus ou grupo de deuses. Em alguns, o Universo é eterno, sem uma origem no tempo; já em outros, o Cosmo surge do nada, de uma tendência inerente de existir.

Esse nada pode ser o vazio absoluto, um ovo primordial ou a luta entre o caos e a ordem. Nem todos os mitos de criação usam uma intervenção divina ou pressupõem que o tempo começa em um momento do passado.

Na visão científica, a origem do Universo faz parte da cosmologia. Imediatamente, encontramos dificuldades: se, em ciência, todo efeito é resultado de uma causa, podemos voltar ao passado até chegarmos na causa primeira.

Mas o que causou essa causa? Aristóteles, por exemplo, usou uma divindade, "o-que-move-sem-ser-movido", que não precisa de uma causa. Ou seja, usou a intervenção divina. Como as observações atuais apontam para um Universo com um início no passado, o desafio dos modelos científicos de origem do Cosmo é justamente tentar driblar a questão da causa primeira.

Porém, mesmo supondo que isso seja possível, será que a resposta é aceitável ou definitiva? Se o Universo surgiu de uma flutuação quântica aleatória, resolvemos a questão da causa. No mundo quântico, processos ocorrem espontaneamente, como no decaimento de núcleos radioativos. Juntando a isso o balanço entre a energia positiva da matéria e a energia negativa da gravidade, essa flutuação pode ter energia nula: o Cosmo surge do "nada".

Esse é o resultado de que tanto se vangloriam Stephen Hawking, Lawrence Krauss, Mikio Kaku e outros físicos. Mas não deveriam. É óbvio que esse nada quântico é muito diferente de um nada absoluto. Qualquer modelo científico pressupõe toda uma estrutura conceitual: energia, espaço, tempo, equações, leis...

Fora isso, hipóteses precisam ser testáveis e não sabemos como fazer isso com uma flutuação primordial. Não podemos sair do Universo e testar outras versões no laboratório. No máximo, modelos como esse chegam a uma compatibilidade com o que observamos.

A questão de por que este Universo e não outro continuará em aberto. O fato de a ciência oferecer tantas respostas não significa que ela deva responder a tudo.

domingo, 3 de março de 2013

Na catedral da física


 Passei esta semana no Cern, o laboratório europeu de física de partículas onde, em julho do ano passado, foi descoberto o famoso bóson de Higgs, infelizmente também conhecido como "partícula de Deus".

Já havia estado lá antes, como pesquisador visitante, por três meses. Isso foi bem antes da grande descoberta do ano passado, mas, para nós, físicos, o Cern já era famoso. Foi lá, em 1983, que foram descobertos outros bósons muito importantes, com os nomes menos sugestivos de W+, W-, e Z0.

Esse trio de partículas confirmou a previsão feita por teóricos, ainda na década de 1960, de que as forças eletromagnéticas e fracas (es tas responsáveis pelo decaimento radioativo) comportam-se da mesma forma a altas energias. Nesta outra realidade, as duas podem ser vistas como facetas distintas da mesma força unificada, a força "eletrofraca".

Na busca por explicações cada vez mais abrangentes dos fenômenos naturais, nada mais atrativo do que teorias que unificam entidades distintas dentro de uma mesma explicação.

A descoberta do bóson de Higgs marca o início de um novo capítulo da física de partículas. Os dados ainda não são suficientes para que se confirmem muitas das propriedades da partícula. É como se soubéssemos que a sombra que vimos projetada na parede é de um ser humano, mas ainda não sabemos se é homem ou mulher, jovem ou velho, a cor dos olhos etc. Para os detalhes, serão necessários mais dados, ou seja, mais colisões e estudos.

Como aceleradores de partículas podem ser vistos como uma espécie de supermicroscópio, quanto maior a energia da colisão (equivalente ao poder de magnificação), mais podemos decifrar das intricadas propriedades das partículas elementares de matéria.

Infelizmente, o acelerador foi fechado semana retrasada, e permanecerá assim por dois anos. O objetivo é atingir o dobro da energia atual quando reabrir em 2015. Com isso, poderemos entender melhor que sombra é essa que vimos.

O bóson de Higgs é mais uma entidade onipresente do que uma sombra; está por toda parte, como o ar que respiramos em nossa atmosfera. Aparentemente imaterial, tem substância e interage com todas as outras partículas de matéria, incluindo as que transmitem as forças entre elas, como os bósons acima mencionados.

A exceção é o fóton, a partícula de luz, que parece ser imune ao charme do Higgs. Essa imunidade explica por que o fóton é única partícula sem massa. (Talvez exista outra, o gráviton, a suposta partícula responsável pela gravidade. Mas, por enquanto, o gráviton permanece uma especulação.)

Como um espírito arredio, o bóson de Higgs é muito difícil de encontrar. Quando surge, desaparece quase que imediatamente, em menos de um trilionésimo de segundo. Ao pensar que, para encontrá-lo, foi necessária a maior máquina já construída na história da humanidade, alojada dentro de estruturas gigantescas, fica difícil não pensar nas antigas catedrais, também imensas, também dedicadas à busca de entidades um tanto etéreas.

As diferenças são muitas, mas a analogia é tentadora. A busca da ciência não deixa de ser uma forma de peregrinação.