domingo, 27 de março de 2011

Quem teme a Singularidade?




A crença na imortalidade por meio das máquinas lembra outra muito antiga, no triunfo da alma humana

VOCÊ ESTÁ preparado para virar um deus? "A Singularidade Está Próxima" é um documentário dirigido por Anthony Waller e codirigido pelo famoso inventor e autor Ray Kurzweil. No Brasil, existe a tradução do seu "A Era das Máquinas Espirituais", pela editora Aleph. Eis a sinopse do filme:

"No século 21, nossa espécie vai se libertar do seu legado genético e atingirá um nível inimaginável de inteligência, progresso material e longevidade; consequentemente, a definição de "ser humano" será enriquecida e transformada. O celebrado futurista Ray Kurzweil apresenta uma visão que é a culminação dramática de séculos de desenvolvimento tecnológico e que transformará o nosso destino".

De acordo com Kurzweil, o avanço tecnológico e, em particular, o avanço na velocidade de processamento e de memória de dados, é tão rápido que em breve atingiremos um ponto no qual máquinas serão capazes de superar o cérebro humano. Ele prevê que a humanidade atingirá um ponto final, a "Singularidade". De lá em diante, algo novo e imprevisível, talvez um híbrido de máquina e humano, talvez apenas máquina, existirá, matéria inanimada imitando a vida em estado de animação virtual.

A esperança de Kurzweil e outros entusiastas da Singularidade é que velocidades altas de processamento, mais o acesso ilimitado a dados, podem simular o cérebro: máquinas com altíssima complexidade computacional podem criar uma ultrainteligência emergente. Humanos, preparem-se, pois o seu fim está próximo! E a data foi marcada para 2045.

Kurzweil não é nem bobo nem louco. Apesar de ter vários críticos, é um inventor reconhecido, vencedor de vários prêmios. Stevie Wonder foi o primeiro a comprar a sua máquina de leitura para cegos; seus sintetizadores são famosos.

Ele fundou a Universidade da Singularidade, hospedada no Centro de Pesquisa Ames, da Nasa, e parcialmente financiada pelo Google, na qual executivos fazem cursos para se preparar para a Singularidade. (Lembram os evangélicos se preparando para o Apocalipse.) Kurzweil quer mais do que máquinas ultrainteligentes; quer ser imortal também. Acredita que a morte é uma doença curável, e que os avanços da medicina e da genética permitirão estender a longevidade indefinidamente. Esses seres imortais não serão de carne e osso, mas máquinas espirituais dotadas de nossa consciência e memória. A felicidade, e outras qualidades e emoções, como a generosidade e o ódio, terão de ser repensadas.

Teremos de rever tudo, e o pior é que nem sabemos como começar.

"Singularidade" significa um ponto no qual nosso conhecimento deixa de funcionar, onde as leis deixam de ser leis. Será que devemos levar isso a sério? Sim, devemos.

Apesar de várias questões (a extrapolação de Kurzweil é baseada em dados passados; não há garantia que funcionará no futuro), nossa simbiose com as máquinas de silício é cada vez maior. Você vê isso na rua, com as pessoas e seus celulares e bluetooths como extensões de seus braços e ouvidos. Por outro lado, a crença na Singularidade me parece a versão moderna duma crença muito antiga, a do triunfo final da alma humana.

domingo, 20 de março de 2011

Conversa Sobre a Fé e a Ciência




Os caminhos da razão e do espírito são um só: a busca por significado em um mundo cheio de mistérios

NA SEMANA QUE VEM sai meu novo livro, em parceria com Frei Betto e com intermediação de Waldemar Falcão, "Conversa Sobre a Fé e a Ciência", pela Nova Fronteira. Temos alguns eventos no Rio e em São Paulo, de que espero participar via teleconferência, aproveitando os benefícios de nossa era digital.

Conversas sobre ciência e religião, em geral, terminam em briga. Mas não deveriam. Talvez seja essa uma das lições mais importantes que Frei Betto e eu queremos passar.

Reconheço que somos dois exemplos um pouco alternativos. Eu, como cientista, mantenho uma posição de respeito pela religião. Frei Betto, como pensador político e teólogo cristão, mantém uma posição aberta em relação à ciência. Começamos a conversa sem nos conhecermos e terminamos amigos.

Frei Betto concorda comigo que é absurdo fechar os olhos para os avanços da ciência, negando suas descobertas. Concorda, também, que a religião não deve ser usada fora de seu contexto, especialmente como um substituto da ciência.

Usar a Bíblia como texto científico, tentar extrair de sua narrativa simbólica fatos sobre o surgimento do Universo e da vida, é retornar ao obscurantismo da Idade Média. Por outro lado, concordamos plenamente que a ciência não se propõe a atingir uma verdade "absoluta".

Verdades dependem de quando são formuladas, ou seja, do contexto histórico em que são buscadas. Por exemplo, para os gregos, era "verdade" que a Terra era o centro do Universo; até o fim do século 18, era "verdade" que o Sol era o centro do Universo; até 1924, era "verdade" que a Via Láctea era a única galáxia no Universo. Com o avanço da ciência, essas verdades foram substituídas por outras.

Apesar de não haver dúvida de que certos fatos científicos permanecem inalterados com o passar do tempo (por exemplo, as leis de Newton), chamá-los de "verdades" talvez seja imprudente.

A ciência é uma narrativa que se ocupa do mistério, do não saber. Ela não tem capítulo final. Seu foco não é a busca pela verdade, mas por uma descrição do mundo que esteja de acordo com nossas observações.

Por outro lado, as religiões organizadas, com seu dogmatismo intransigente, distorcem o real sentido da fé. Nisso, Frei Betto e eu também concordamos plenamente (para ver no que mais concordamos e no que discordamos, é preciso ler o livro).

No cerne da religião, no ato de devoção religiosa, encontramos a espiritualidade pura, individual, que tece uma relação profunda entre o homem e o Universo e entre o homem e a sua consciência.

Frei Betto menciona Santa Teresa D'Ávila como alguém que alcançou um nível exemplar de transcendência pessoal e de comunhão com o divino. Aprendi muito durante nossa "conversa" e saí admirando meu interlocutor ainda mais.

Vejo a ciência, no aspecto mais puro e humano, como uma busca por transcendência, em que o espírito humano se une ao mundo natural para criar novas formas de pensar a nossa existência e, por meio da tecnologia, para criar expressões materiais dessa comunhão. Sob esse prisma, os caminhos da razão e do espírito são um só, simbolizando a essência do ser humano, que é a busca por significado num mundo cheio de mistérios.

domingo, 13 de março de 2011

Teoria de tudo: fato ou fantasia?




Faço o papel do contra: nosso conhecimento do mundo é necessariamente algo bastante incompleto


NA SEGUNDA-FEIRA passada, tive o privilégio de participar de um evento promovido pelo Museu Americano de História Natural, em Nova York. Foi o debate anual em memória do famoso escritor e divulgador de ciência Isaac Asimov. O mestre de cerimônias foi Neil deGrasse Tyson, do Planetário Hayden.

Éramos seis físicos, alguns conhecidos do público pelos seus livros de divulgação: Katherine Freese, da Universidade de Michigan, Brian Greene, da Universidade Columbia, Janna Levin, também de Columbia, Sylvester Gates Jr., da Universidade de Maryland, e Lee Smolin, do Instituto Perimeter, no Canadá. Um público de 1.300 pessoas lotou o auditório, intrigado pelo tema da discussão: teoria de tudo, realidade ou fantasia?

Foi uma noite e tanto. (Para os leitores que entendem inglês, o debate estará disponível em vídeo em breve.) Muitos físicos acreditam que a teoria de tudo (TDT) é o objetivo final da ciência: a descrição completa de como as partículas elementares da matéria interagem entre si e que, de quebra, mostra que todas as forças que descrevem essas interações são uma só.

  Essa TDT seria o ápice do processo reducionista que começou na Grécia Antiga em torno de 450 a.C., quando os atomistas propuseram que a matéria é feita de pedaços indivisíveis, os átomos. (É importante esclarecer que a TDT não diz nada sobre "tudo": ela não prediz o tempo ou o que você vai comer no café da manhã, restringindo-se às partículas e suas interações.)

A busca muda conforme o nosso conhecimento sobre a composição e as propriedades da matéria muda. Esse foi, aliás, um dos meus argumentos. Fiz o papel do contra, baseando-me nas ideias do meu último livro, "Criação Imperfeita". A maioria dos integrantes do painel acredita que é possível chegar a uma TDT e que talvez a teoria das supercordas seja o caminho. Sou mais cético. Não tanto em relação ao que as supercordas podem fazer, mas sobre a existência de uma TDT e a possibilidade de encontrá-la.

  "Supercordas", para quem não sabe, é a teoria que diz que as partículas de matéria são feitas de cordas submicroscópicas vibrando em frequências diferentes. Sua atração é que oferece um caminho para entendermos o que ocorre no centro dos buracos negros e na origem do Universo. O problema é que supercordas existem em dez dimensões espaciais e requerem a "supersimetria", uma simetria que dobra o número de partículas que existem.

  Até agora, não temos qualquer indicação de que dimensões extra ou supersimetria existem. O LHC, a máquina na Suíça que procura novas partículas, vem pondo limites sérios à existência da supersimetria. Em alguns anos saberemos.

  Mesmo se as supercordas estiverem corretas, ainda assim não as chamaria de TDT. O que sabemos da natureza depende do que podemos medir. Portanto, a busca por teorias unificadas deve ser constantemente revisada à medida em que descobrimos mais. Todos os esforços passados falharam porque não podemos prever o que mediremos no futuro. Uma teoria de supercordas do século 21 pode coletar (unificar) o que sabemos até hoje, mas não pode ser definitiva. Nosso conhecimento do mundo é necessariamente incompleto.