domingo, 29 de setembro de 2013

A ciência, o bem e o mal

Em 1818, com apenas 21 anos, Mary Shelley publicou o grande clássico da literatura gótica, "Frankenstein ou o Prometeu Moderno". O romance conta a história de um doutor genial e enlouquecido, que queria usar a ciência de ponta de sua época, a relação entre a eletricidade e a atividade muscular, para trazer mortos de volta à vida.
Duas décadas antes, Luigi Galvani havia demonstrado que a eletricidade produzia movimentos em músculos mortos, no caso em pernas de rãs. Se vida é movimento, e se eletricidade pode causá-lo, por que não juntar os dois e tentar a ressuscitação por meio da ciência e não da religião, transformando a implausibilidade do sobrenatural em um mero fato científico?
Todos sabem como termina a história, tragicamente. A "criatura" exige uma companheira de seu criador, espelhando Adão pedindo uma companheira a Deus. Horrorizado com sua própria criação, Victor Frankenstein recusou. Não queria iniciar uma raça de monstros, mais poderosos do que os humanos, que pudesse nos extinguir.
O romance examina a questão dos limites éticos da ciência: será que cientistas podem ter liberdade total em suas atividades? Ou será que existem certos temas que são tabu, que devem ser bloqueados, limitando as pesquisas dos cientistas? Em caso afirmativo, que limites são esses? Quem os determina?
Essas são questões centrais da relação entre a ética e a ciência. Existem inúmeras complicações: como definir quais assuntos não devem ser alvo de pesquisa? Dou um exemplo: será que devemos tratar a velhice como doença? Se sim, e se conseguíssemos uma "cura" ou, ao menos, um prolongamento substancial da longevidade, quem teria direito a tal? Se a "cura" fosse cara, apenas uma pequena fração da sociedade teria acesso a ela. Nesse caso, criaríamos uma divisão artificial, na qual os que pudessem viveriam mais. E como lidar com a perda? Se uns vivem mais que outros, os que vivem mais veriam seus amigos e familiares perecerem. Será que isso é uma melhoria na qualidade de vida? Talvez, mas só se fosse igualmente distribuída pela população, e não apenas a parte dela.
Outro exemplo é a clonagem humana. Qual o propósito de tal feito? Se um casal não pode ter filhos, existem outros métodos bem mais razoáveis. Por outro lado, a clonagem pode estar relacionada com a questão da longevidade e, em princípio ao menos, até da imortalidade. Imagine que nosso corpo e nossa memória possam ser reproduzidos indefinidamente; com isso, poderíamos viver por um tempo indefinido. No momento, não sabemos se isso é possível, pois não temos ideia de como armazenar memórias e passá-las adiante. Mas a ciência cria caminhos inesperados, e dizer "nunca" é arriscado.
Toquei apenas em dois exemplos, mas o ponto é óbvio: existem áreas de atuação científica que estão diretamente relacionadas com escolhas éticas. O impulso inicial da maioria das pessoas é apoiar algum tipo de censura ou restrição, achando que esse tipo de ciência é feito a caixa de Pandora.
Mas essa atitude é ingênua. Não é a ciência que cria o bem ou o mal. A ciência cria conhecimento. Quem cria o bem ou o mal somos nós, a partir das escolhas que fazemos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Mensagem cósmica

Neste mês, pela primeira vez na história, uma sonda construída por seres humanos deixou os confins do Sistema Solar e penetrou o espaço interestelar. A sonda, Voyager 1, foi lançada pela NASA 36 anos atrás, em setembro de 1977, durante o governo de Jimmy Carter, quando pessoas ainda usavam calça boca-de-sino. A era das viagens interestelares, coisa que até aqui era mais ficção do que realidade, começou.
O Sol, como toda estrela, emite quantidades enormes de partículas eletricamente carregadas (principalmente prótons e elétrons, constituintes do "vento solar") que ficam confinadas numa bolha chamada de heliosfera. O limite desta bolha, a heliopausa, marca a região onde a influência do Sol no meio interestelar passa a ser desprezível. A transição entre o Sistema Solar e o espaço interestelar se deu quando a sonda Voyager I atravessou a heliopausa, localizada cerca de 100 vezes a distância entre a Terra e o Sol. Mesmo a luz demora em torno de 14 horas para chegar de lá até aqui.
O feito serve de metáfora tanto para a missão da ciência quanto para o espírito humano. Ciência, enquanto criação nossa, representa um esforço marcadamente humano de superar fronteiras, no caso, as fronteiras do conhecimento. A cada descoberta, aprendemos mais sobre o mundo e sobre nosso lugar nele. Existe um lado heroico nessa empreitada, que tem valor tanto na prática --à medida que as descobertas científicas são usadas pela sociedade de diversas formas--, quanto numa dimensão mais mitológica, onde buscamos, juntos como espécie, responder às questões tão antigas quanto nossa existência neste planeta. Superar fronteiras, portanto, significa aprender mais sobre quem somos, como espécie e como indivíduos.
Como disse o poeta americano T. S. Eliot, "apenas aqueles que se arriscam a ir mais longe sabem quão longe podem ir".
Este é o espírito da ciência e, a meu ver ao menos, deveria ser também a mola propulsora de cada um de nós em nossas vidas. Existe aqui uma visão anticonformista, de lutar contra a mesmice que marca nosso dia a dia. Na pesquisa científica, o novo é imperativo: temos de inventar um pouco mais do mundo todos os dias, por assim dizer, dado que não sabemos o que existe além do que sabemos.
Claro, cientistas não têm a liberdade do poeta ou do pintor, visto que o mundo que "inventam" é uma descrição do mundo que existe, ao menos do modo como o percebemos através de nossas observações. Afinal, nosso objetivo é entender a natureza: a última palavra é sempre dela, mesmo que sejamos forçados --e com frequência-- a descartar ideias que têm grande apelo e beleza.
São nessas outras estrelas, ou melhor, nos planetas à sua volta, que podem existir outros seres vivos, talvez mesmo outros seres pensantes. A sonda Voyager 1 leva consigo uma placa revestida em ouro, repleta de sons e informações sobre a Terra, sua posição, os seres que nela vivem, nossas obras culturais, línguas etc. O projeto foi obra de Carl Sagan, que queria usar esta oportunidade para, quem sabe, anunciar aos nossos vizinhos que não estão sozinhos no espaço.
Apesar da sonda ter pouquíssima chance de ser encontrada por outra civilização (são mais de 50 mil anos até a estrela mais próxima), o gesto é essencialmente simbólico: reflete nossa esperança de que não estamos sozinhos no Cosmo, de que outros seres pensantes existem, de preferência amantes da vida e da criatividade.

domingo, 15 de setembro de 2013

Mais dez importantes questões da ciência

Na coluna da semana passada, escrevi sobre o livro "Big Questions in Science", que acaba de ser publicado na Inglaterra listando 20 desafios importantes da ciência moderna, ao menos segundo os autores, Hayley Birch, Mun Keat Looi e Colin Stuart.
Hoje, completo com mais dez questões.
1. Qual o mistério dos números primos? Números primos são aqueles divisíveis só por si mesmos ou por um, como 2,3,5,7,11,13,17... O comércio via internet, com a necessidade de assegurar números de contas e cartões de crédito, usa-os rotineiramente. Há séculos, matemáticos estudam suas propriedades.
Mesmo que Euclides tenha demonstrado em torno de 300 a.C. que existem infinitos números primos, existem muitas questões em aberto. Por exemplo, a hipótese de Riemann, matemático alemão do século 19, que mostrou que o número de primos até um certo valor (até 100, por exemplo) está relacionado com as propriedades da "função zeta de Riemann". Se a hipótese for resolvida, a segurança da internet pode ser comprometida.
2. Como vencer as bactérias? O abuso de antibióticos está deixando as bactérias cada vez mais resistentes. Essa guerra pode ser ganha? O sequenciamento genético nos dá uma vantagem, permitindo isolar novos antibióticos. Mas novas mutações são inevitáveis.
3. Existe um limite na velocidade dos computadores? Um iPhone tem maior poder computacional do que o aparelho que levou os astronautas à Lua em 1969. Isso não pode continuar indefinidamente. Materiais como o grafeno e o computador quântico podem ser o futuro.
4. Será que curaremos o câncer? "Câncer" são centenas de doenças diferentes. Não há uma cura, mas muitas. A genética nos dá uma nova visão da doença. A batalha é longa e, quanto mais vivermos, maior será a probabilidade de que algo dê errado. No meio tempo, 50% dos cânceres são evitados com medidas como não fumar e evitar muito sol.
5. Qual o futuro dos robôs? Robôs fazem já tarefas domésticas e industriais. A questão é se teremos robôs capazes de pensar. Antes, devemos entender melhor a inteligência.
6. O que existe no fundo dos oceanos? Conhecemos só 10% de suas profundezas. Exploradores chegaram a 11 km, onde a escuridão é total e a água gélida não tem oxigênio. Mas foi só o começo de uma nova etapa da exploração da Terra.
7. O que há dentro do buraco negro? Buracos negros são a fase final de estrelas mais pesadas que o Sol, regiões onde a força da gravidade é gigantesca. Pouco sabemos do que ocorre em seu interior, pois precisamos de uma teoria combinando a gravidade e a física quântica.
8. Podemos viver para sempre? Avanços na medicina e na genética prometem revolucionar nossa relação com a morte. Porém, criam também questões morais e filosóficas bem complexas.
9. Como resolver o problema da superpopulação? A população mundial chegará a 9 bilhões em 2050. Como alimentar todo mundo? Comida feita em laboratório? Alimentos geneticamente modificados? Nosso futuro depende de nossas escolhas.
10. É possível viajar no tempo? Não conhecemos a natureza do tempo, mas as leis da física proíbem idas ao passado. Ao futuro, porém, é possível, se viajarmos próximos da velocidade da luz.

domingo, 8 de setembro de 2013

As 20 (ou 10) mais importantes questões da ciência

Um livro acaba de ser publicado na Inglaterra listando os 20 desafios mais importantes da ciência moderna, ao menos segundo os autores, Mun Keat Looi, Hayley Birch e Colin Stuart ("Big Questions in Science"). Apesar de toda lista desta natureza ter uma dose de arbitrariedade, eis as primeiras 10 delas, com comentário.
1. Do que é feito o Universo? Conhecemos apenas 5% da composição cósmica. Os átomos dos quais somos feitos são a minoria absoluta --95% consiste de "matéria escura" e "energia escura", cuja composição continua um mistério.
2. Como surgiu a vida? A vida surgiu na Terra em torno de 3,5 bilhões de anos atrás. Como que átomos, combinados em moléculas, atingiram um nível de complexidade em que essas moléculas formaram o primeiro sistema "vivo"?
3. Estamos sós no Universo? Hoje, sabemos que a maioria das estrelas têm planetas girando à sua volta. Será que a vida está presente em algum deles? Em muitos? E essa vida, seria inteligente ou simples? Se existe vida inteligente na nossa galáxia, por que ainda não temos confirmação definitiva?
4. O que nos torna humanos? Temos três vezes mais neurônios do que um gorila, mas nossos DNAs são quase iguais. Por outro lado, muitos animais têm linguagem rudimentar, usam ferramentas, reconhecem-se no espelho; seria nossa cultura, nosso polegar, a descoberta do fogo, o que nos tornou humanos?
5. O que é o consciente? Como que o cérebro gera a mente, nossa capacidade de termos autoconsciência, de podermos escrever poesias e sinfonias? E por que o consciente existe, qual a sua função evolutiva?
6. Por que sonhamos? Passamos um terço de nossas vidas dormindo e ainda não entendemos por que sonhamos. Terão alguma função essencial ou são apenas imagens aleatórias de um cérebro em repouso parcial?
7. Por que a matéria existe? De acordo com as leis da física, a matéria não deveria existir sozinha; cada elétron, cada próton, deveria ter seu companheiro de antimatéria, como gêmeos. O problema é que matéria e antimatéria, quando se encontram, desintegram-se em radiação. Se ambos existissem em pé de igualdade, não estaríamos aqui. Ninguém sabe a razão para essa assimetria da natureza.
8. Existem outros universos? Ou o nosso é único? Se existirem outros universos, poderiam ter propriedades diferentes do nosso. Como podemos saber se existem?
9. Onde poremos todo o carbono? Com a industrialização, a quantidade de carbono na atmosfera vem aumentando, causando o efeito estufa. O que faremos para reverter ou desacelerar esse processo?
10. Como conseguir mais energia do Sol? A energia solar, em tese, é a melhor das fontes. Como otimizar sua extração para resolver a questão da energia? Será que a fusão nuclear controlada vai se concretizar?
Devido ao espaço, terei que parar por aqui. Felizmente, leitores da coluna sem dúvida reconheceram todas essas questões como parte de nossos temas usuais. E assim seguiremos!

domingo, 1 de setembro de 2013

Sol novo, Sol velho

Você gostaria de se ver mais velho? Se houvesse um espelho mágico capaz de mostrar sua imagem em uma, duas ou mais décadas, você olharia?
Imagino que a opinião seria dividida, uns tantos sim, outros tantos não. Afinal, ver o futuro teria repercussão sobre como viveríamos no presente, o que criaria uma série de paradoxos estranhos.
Se no futuro eu me visse gordo e resolvesse fazer uma dieta, emagreceria? Se emagrecesse, não estaria mudando o futuro? E será que isso é possível? Afinal, o espelho me mostrou gordo... Ou, quem sabe, o futuro não seja um apenas, mas feito de múltiplas opções, como no conto de Jorge Luis Borges "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam".
Deixando essas preocupações um tanto humanas de lado (voltaremos a elas em outro dia), o fato é que em astronomia, ao menos, ver o futuro e o passado é extremamente útil.
Tanto assim que um time internacional de astrônomos, liderados pelo brasileiro Jorge Meléndez, da USP, vem buscando estrelas semelhantes ao Sol, mais velhas e mais novas, para que possamos aprender sobre a evolução da nossa estrela-mãe. Para tal, o grupo usa o gigantesco telescópio em Paranal no Chile conhecido como VLT (do inglês Very Large Telescope, "Telescópio Muito Grande"), do ESO (Observatório Europeu do Hemisfério Sul), um consórcio de 15 países com vários instrumentos de grande alcance e precisão. O Brasil deve ratificar sua presença como membro oficial do ESO ainda este ano.
Em artigo de abril publicado no prestigioso "Astrophysical Journal Letters", com TalaWanda Monroe, também da USP, como primeira autora, o grupo revela dados de duas estrelas "gêmeas" do Sol, uma bem mais nova, a 18 Scorpii, e outra bem mais velha, a HIP 102152. Ou seja, um olho no nosso passado e outro no nosso futuro ou, ao menos, no futuro do Sol.
HIP 102152, com 8,2 bilhões de anos, é bem mais velha do que o Sol, que tem 4,6 bilhões de anos. A questão de maior importância para o público é se o Sol é uma estrela típica ou atípica. É bom sabermos, pois nossa sobrevivência na Terra depende do Sol e da sua estabilidade.
Caso seja uma estrela normal, dentro de sua classificação (estrelas aparecem em classes diferentes, dependendo da sua massa, temperatura etc.), o Sol continuará a gerar luz por muitos bilhões de anos, em torno do dobro da sua idade. Caso não seja normal, as coisas podem complicar. E, se complicarem, a vida na Terra poderá estar em apuros mais cedo do que gostaríamos.
Estudando 21 elementos químicos presentes nas três estrelas, o grupo mostrou que o Sol é uma estrela normal. Em particular, que o elemento lítio, que é bem mais raro no Sol do que em estrelas gêmeas mais novas, é destruído com o envelhecer da estrela: HIP 102152 tem aproximadamente a metade do lítio que temos aqui.
O grupo mostrou também que a HIP 102152 não tem planetas gigantes como o nosso Júpiter ou Saturno na região mais próxima dela, onde podem existir planetas rochosos como a Terra. Ou seja, da imagem do Sol idoso, aprendemos que o nosso Sol não foge à regra; o que possibilita que outros como ele tenham planetas como a Terra que, quem sabe, abriguem também formas de vida.