sábado, 29 de maio de 2010

Matéria, antimatéria e existência



A ciência abre janelas para a realidade, mas nenhuma permite ver o que estaria além dessa realidade


NA SEMANA passada, manchetes traziam novas do Fermilab, o enorme acelerador de partículas situado nas vizinhanças de Chicago, nos EUA: "Nova pista para explicar nossa existência", escreveu Dennis Overbye, do "New York Times".

Interessante, esse título. Vários leitores escreveram reclamando da aparente necessidade de misturar ciência e religião até mesmo quando se trata de um experimento da física de partículas. Overbye cita Joe Lykken, um excelente físico teórico do Fermilab: "O anúncio não é equivalente a ver a face de Deus, mas os dedos do pé de Deus". 

Lykken estava zombando de George Smoot, o prêmio Nobel que, ao revelar os resultados das investigações de sua equipe sobre as propriedades da radiação cósmica de fundo, produzida quando surgiram os primeiros átomos, afirmou que era como "ver a face de Deus". 

Será que a existência de matéria e de antimatéria tem algo a ver com Deus? E, se não tiver, por que essa mania de invocar Deus quando se fala de cosmologia?

Smoot não é o único. O também vencedor do Nobel Leon Lederman escreveu um livro com Dick Teresi chamado "A Partícula de Deus". 

Stephen Hawking, no seu "Uma História do Tempo", afirma que encontrar uma teoria final é como "conhecer a mente de Deus". Essas afirmações nos dizem não só algo sobre a expectativa do público, mas também sobre o papel cultural que físicos, especialmente aqueles trabalhando em questões ligadas a "origens", exercem. Sou tão culpado quanto eles, já que minha pesquisa trata de origens. Será que a física é a nova teologia? 

De jeito algum. Confundir a prática da ciência com a religião é um erro grave. Por outro lado, a física moderna trata de assuntos que, por milênios, eram província exclusiva da religião. A cosmologia tenta construir uma narrativa que nos conta a história do cosmo. Esta história deve começar assim que o conceito de tempo passa a fazer sentido. 

Portanto, a cosmologia não quer apenas explicar por que o Universo é do jeito que é, mas por que o Universo é. Se tivermos sucesso, entraremos numa nova era da história das ideias: ao ser capaz de explicar a Criação, a razão humana seria equacionada com... sim, a mente de Deus! Vemos que não é tão surpreendente assim encontrarmos essa metáfora nos textos científicos. 

Ela revela ao menos parte das ambições do empreendimento cosmológico. Revela também, como argumentei em "Criação Imperfeita", a necessidade de exorcizarmos essa metáfora da ciência. Ela não só confunde as pessoas como está errada.

A questão do excesso de matéria em relação à antimatéria é essencial. Caso as duas existissem em pé de igualdade, não estaríamos aqui: quando matéria e antimatéria colidem, desfazem-se em radiação. 

Portanto, o resultado do Fermilab, que reforça resultados antigos, mostra que a versão atual da física das partículas é incompleta. Por outro lado, a descoberta não tem nada a ver com os dedões de Deus ou outra parte da anatomia divina. 

Ela é um triunfo da inventividade humana, irrelevante para a teologia. A ciência certamente abre muitas janelas para a realidade. Mas nenhuma delas nos permite vislumbrar o que ocorre além da realidade. 

domingo, 23 de maio de 2010

O raio cinquentão

A história da invenção do laser é um exemplo da competição ferrenha que existe na área acadêmica

DUAS SEMANAS atrás, meu filho de 16 anos me pediu um dinheiro emprestado. Queria desenvolver um "projeto": construir um laser portátil capaz de emitir luz azul. "Pai, posso vender muito mais barato do que os preços comerciais. E não tem nada mais lindo que um laser azul!"

Dito e feito. Dez dias depois, lá estava ele com seu laser azul. Fora o orgulho paterno (eu, com 16 anos, jamais saberia construir um laser), pensei na longa trajetória do laser, que neste ano faz 50 anos de vida. Uma estrada tortuosa liga a ideia original de Einstein, de 1916, à invenção do meu filho.

Em 1916, Einstein escreveu ao seu amigo, Michele Besso: "Uma luz esplêndida iluminou minha mente com respeito à emissão e absorção de radiação". Tudo começa com o modelo do átomo, onde elétrons giram em torno do núcleo em órbitas distintas. Eles podem pular para uma órbita mais externa ou para uma mais próxima do núcleo. Cada órbita tem uma energia fixa. Se luz externa, com energia correta, se chocar com os elétrons em uma dada órbita, pode induzi-los a pular para uma órbita mais elevada.

Imagine que a luz seja feita de pequenas partículas, os fótons. Os elétrons "comem" os fótons e sobem de órbita: este é o processo de "absorção espontânea". Ou eles podem descer de órbita, emitindo fótons.

Einstein entendeu que isto pode ocorrer de duas formas: espontaneamente, ou provocado por luz externa -emissão estimulada. É este o processo chave no laser, sigla em inglês para "amplificação de luz pela emissão estimulada de radiação".

A história da invenção do laser é um exemplo da competição ferrenha que existe na área acadêmica, especialmente quando laboratórios privados, com fins lucrativos, participam da corrida.

Mesmo que a ideia de como construir o primeiro laser tivesse ocorrido a Charles Townes quando trabalhava na Universidade Columbia, a competição veio de físicos trabalhando nos laboratórios da Hughes e da Bell, a companhia de telecomunicações. Em 1954, Townes (e, independentemente, Nikolai Basov e Aleksandr Prokhorov) havia inventado o maser, um laser no qual a radiação é de micro-ondas. Para transformar o maser num laser, era preciso estimular átomos capazes de emitir na luz visível, o que alguns físicos achavam ser impossível.

O truque era usar um sistema de espelhos que fizessem a luz passar várias vezes através de um gás, mantendo elevada a população de átomos em estados excitados. Estes átomos poderiam, então decair, emitindo dois fótons: um que o elétron havia "comido" ao subir de órbita e outro que veio da luz que estimula seu decaimento. Esses fótons, por sua vez, causariam a queda de outros elétrons e, com isso, uma enxurrada de fótons seria emitida, todos com a mesma energia (e cor).

Em 1960, Theodore Maiman, do laboratório Hughes, usou um cristal de rubi para construir o primeiro laser. No mesmo ano, Ali Javan e colaboradores, do Bell, construíram outro, usando uma mistura dos gases hélio e neônio. Na alta Guerra Fria, o laser foi inicialmente visto como uma arma. Hoje, é usado para gravar CDs e DVDs, em fibras ópticas, em leitoras de supermercados e, claro, nas minhas aulas, na espetacular cor azul, graças ao meu filho.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

The imperfect universe: Goodbye, theory of everything

FIFTEEN years ago, I was a physicist hard at work hunting for a theory of nature that would unify the very big and the very small. There was good reason to hope. The great and the good were committed. Even Einstein, who recognised that our understanding of reality is necessarily incomplete, had spent the last 20 years of his life searching for a unified field theory that would describe the two main forces we see acting around us - gravity and electromagnetism - as manifestations of a single force. For him, such a mathematical theory represented the purest and most elegant expression of nature and the highest achievement of the human intellect.
Fifty-five years after Einstein's death, the hunt for this elusive unified field theory continues. To physicist Stephen Hawking and many others, finding the "theory of everything" would be equivalent to knowing the "mind of God". The metaphor is not accidental.

Modern critics say that Einstein and other giants of 20th-century physics (including Wolfgang Pauli, Erwin Schrödinger and Werner Heisenberg) failed because their models didn't include all particles of matter and their fundamental interactions. Factor them in, they argue, and we stand a much better chance of success. Dreams of a final theory (as a book on the subject, by Nobel laureate Steven Weinberg, was titled) live on, stronger than ever.

But are we really getting any closer? Do we dare ask whether the search is fundamentally misguided? Could belief in a physical theory that unifies the secrets of the material world - a "hidden code" of nature - be the scientific equivalent of the religious belief in oneness held by the billions who go to churches, mosques and synagogues every day?

Even before what we now call physics existed, ancient Greek philosophers pondered whether the diversity of nature could radiate from a single source, a primal substance. Thales, regarded by Aristotle as the first philosopher in the Greek tradition, proposed that everything was made of water, a substance he believed represented nature's dynamic essence. Later, Pythagoras and his followers believed that nature was a mathematical puzzle, constructed through ratios and patterns that combine integers, and that geometry was the key to
deciphering it.

The idea of mathematics as a fundamental gateway to nature's secrets re-emerged during the late Renaissance. Galileo Galilei, René Descartes, Johannes Kepler and Isaac Newton made it clear that the mathematical description of nature succeeds only through the painstaking application of the scientific method, where hypotheses are tested by experiments and observations and then accepted or rejected. Physics became the science of the "how", leaving the "why" for philosophy and religion. When Newton was asked why matter attracts matter with a strength that weakens with the square of the distance, he answered that he "feigned no hypotheses"; it was enough to provide a quantitative description of the phenomenon.

That, however, is only half the story. To Newton, God was the supreme mathematician and the mathematical laws of nature were Creation's blueprint. As science advanced, the notion that god interfered explicitly with natural phenomena faded away, but not the idea that nature's hidden code lay in an all-encompassing mathematical theory. Einstein's "God" was far removed from Newton's, as he famously said: "I believe in Spinoza's God who reveals himself in the orderly harmony of what exists." His search for a unified field theory was very much a search for the essence of this natural god.

Modern incarnations of unified field theories come in two flavours. The more traditional version, the so-called Grand Unified Theory (GUT), seeks to describe electromagnetism and the weak and strong nuclear forces as a single force. The first of these theories was proposed in 1974 by Howard Georgi, of Harvard University, and Sheldon Glashow, now at Boston University. The more ambitious version seeks to include gravity in the unification framework. Superstring theory tries to do this by abandoning the age-old paradigm that matter is made of small, indivisible blocks, substituting them with vibrating strings that live in higher-dimensional spaces.

Like all good physical theories, GUTs make predictions. One is that the proton, the particle that inhabits all atomic nuclei, is unstable. For decades, experiments of increasing sensitivity have looked for decaying protons and failed to find them. As a consequence, the models have been tweaked so that protons decay so rarely as to be outside the current reach of detection. Another prediction fared no better: bundled-up interacting fields called magnetic monopoles have never been found.

For superstrings, the situation is even worse. In spite of its mathematical elegance, the theory is so detached from physical reality that it is exceedingly difficult to determine what a measurable string effect might be.

I now think that the very notion of a final theory is faulty. Even if we succeed in unifying the forces we know, we can only claim to have achieved partial unification. Our instruments have limits. Since knowledge of physical reality depends on what we can measure, we will never know all there is to know. Who is to say there are only four fundamental forces? Science is full of surprises. Much better to accept that our knowledge of physical reality is necessarily incomplete. This way, science is understood as a human enterprise and the "mind of God" is exorcised once and for all.

I now think that the very notion of a final theory is faulty

Ever since the discovery of parity violation in the weak interaction over 50 years ago, experiments in particle physics have shown us that our hopes for perfection are just that - hopes. Symmetries are violated left and right; in nature, unlike in John Keats's famous poem, beauty isn't always truth.

But there's more. I propose that fundamental asymmetries are a necessary part of our universe, that they determine our very existence. Consider the following. The universe had to have special properties to keep on expanding for 14 billion years. And particles of matter had to dominate those of antimatter soon after the big bang, or the universe would consist mostly of radiation.

Life itself is a product of imperfections, from the spatial asymmetry of amino acids to mutations during reproduction. Asymmetries forged the long, complex and erratic path from particles to atoms to cells, from simple prokaryotic cells without nuclei to more sophisticated eukaryotic cells, and then from unicellular to multicellular organisms.

The history of life is deeply enmeshed with the earth's environmental changes, from the increase of oxygen availability, to the advent of plate tectonics that help regulate carbon dioxide. Life (not to mention intelligence) in the extraordinarily complex forms we have come to know is probably quite rare, a product of asymmetries, imperfections and accidents.
In the end, giving up on a final theory won't make doing physics - or science - less exciting. Nature has plenty of mysteries to keep us busy for a very long time.


domingo, 16 de maio de 2010

A natureza das leis



As leis da natureza foram inventadas pelo homem ou forçadas pelo mundo ao redor?


O que nós, cientistas, estamos querendo dizer quando falamos em "leis da natureza"? A questão é bem mais complicada do que parece ser. Não será no curto espaço desta coluna que farei jus à ela, mas temos que começar de algum lugar. Aí vai.

Autoridades tanto na ciência quanto na filosofia têm posições antagônicas com relação à natureza das leis da natureza. Antes de apresentar minhas opiniões, eis algumas outras.

Max Planck, grande físico alemão que inventou o conceito do quantum em 1900 e ganhou o prêmio Nobel da Física em 1918, escreveu que "existe um mundo real, e ele é independente dos nossos sentidos".

Para ele, "as leis da natureza não foram inventadas pelo homem, mas sim forçadas sobre ele pelo próprio mundo natural. São a expressão de uma ordem racional do mundo".

Planck acreditava que não inventamos essas leis, mas que as descobrimos. Se seres extraterrestres existissem, portanto, descobririam as mesmas leis. Poderiam representá-las de forma diferente, mas sua essência seria idêntica.

Essa postura supõe a existência de um saber universal: existe um único corpo de conhecimento que, dado tempo suficiente, vai ficando cada vez mais claro.

A posição de Planck ressoa com a dos que acreditam que Deus criou o mundo e suas leis. De fato, a primeira menção das leis da natureza aparece num texto de Descartes, em que ele afirma que as leis da natureza são uma criação divina.

A maioria dos pensadores, entretanto, discorda da visão de Planck. O próprio Albert Einstein dizia que nossas teorias são "ficções", no sentido de que podem existir duas ou mais explicações equivalentes sobre o mesmo fenômeno. "O caráter fictício das [teorias científicas] fica óbvio quando vemos que duas diferentes, cada qual com as suas consequências, concordam em grande parte com a experiência", disse.

O físico americano Richard Feynman escreveu que "como nada pode ser expresso precisamente, toda lei científica, todo princípio cientifico, toda asserção sobre os resultados de uma observação é uma espécie de sumário que deixa de lado os detalhes". Ou seja, nossas teorias são apenas aproximações da realidade.

Os filósofos Karl Popper e Thomas Kuhn vão ainda mais longe (Kuhn talvez um pouco longe demais). Popper escreveu que teorias científicas "não são um resumo de observações mas invenções-conjecturas propostas para serem julgadas e, se discordarem das observações, eliminadas".

Entrando no debate, o que podemos dizer sobre as leis da natureza?

Não há dúvida de que observamos padrões regulares na natureza, do micro ao macro. Alguns desses padrões podem ser expressos matematicamente. Porém, quando físicos afirmam, por exemplo, que "a energia é conservada", sabem que essa lei só é estritamente válida dentro da precisão de suas medidas.

E mesmo que a precisão de nossos instrumentos e medidas melhore com o passar do tempo, sempre haverá um limite. Consequentemente, jamais podemos afirmar que a "energia é conservada" em termos absolutos.

De fato, na prática não existem asserções de caráter absoluto, nem mesmo no contexto das ciências físicas. Construímos modelos que descrevem a realidade que medimos da melhor maneira possível.

Como humanos, vemos o mundo sempre fora de foco. Os óculos que inventamos melhoram a qualidade da imagem, mas sempre existirão detalhes que escaparão ao nosso olhar. O mundo é o que vemos dele.

domingo, 9 de maio de 2010

O porquê e o como


Será que a ciência pode explicar o propósito das coisas?



Na famigerada guerra entre ciência e religião, uma distinção comum é afirmar que a ciência explica "como" as coisas são e não o "porquê". Mas vale a pena pensar: será que esse é realmente um modo eficiente de discriminar entre ciência e religião? Ou será que confunde as coisas ainda mais? 

Para chegar a uma conclusão, talvez seja uma boa ideia começar ilustrando essa distinção com alguns importantes exemplos históricos. Quando Galileu afirmou que objetos em queda livre são acelerados em direção ao chão independentemente de suas massas, não estava preocupado em questionar o "porquê" de os objetos caírem, mas sim o "como". 

Através de experimentos detalhados, mostrou que a distância percorrida por um objeto em queda é proporcional ao quadrado do tempo que ele gasta no percurso, obtendo assim a primeira relação matemática descrevendo um movimento que acontece por causa da gravidade terrestre. 

Cerca de 80 anos mais tarde, Isaac Newton elaborou sua importante lei da gravitação universal. Ele mostrou que dois objetos com massa se atraem com uma força que se reduz com o quadrado da distância entre eles. 

Logo após a publicação do livro, algumas pessoas fizeram críticas a Newton. Elas afirmavam que essa misteriosa "ação à distância" entre o Sol e a Terra ou entre a Terra e a Lua (ou entre você e seu computador ou jornal) tinha algo de sobrenatural, alguma coisa meio fantasmagórica. Newton, então, respondeu: "Ainda não pude descobrir a causa dessas propriedades da gravidade a partir de fenômenos, e não arrisco qualquer hipótese, pois o que não é deduzido de fenômenos deve ser chamado de hipótese, e hipóteses não pertencem à filosofia experimental." 

Ou seja, hipóteses que não podem ser testadas não são científicas. Portanto, se não temos nada testável a dizer sobre o porquê da atração gravitacional entre duas massas, é suficiente usar a teoria da gravidade para descrever a atração entre as massas sem explicar por que ela ocorre. 

Newton usou sua teoria para prever o retorno do cometa Halley, explicar as marés, entender o formato achatado da Terra, calcular a precessão dos equinócios, e muito mais. 

Essa abordagem de Newton acabou por definir a ciência do "como". Realmente, é difícil contemplar a ciência operando de uma forma diferente. 

Atribuir causas ocultas a fenômenos naturais, eventos que não podem ser verificados experimentalmente, não acrescenta nada à descrição científica desses fenômenos. 

Podemos incluir também a teoria da relatividade geral de Albert Einstein. Ele mostrou que a atração entre corpos com massa pode ser interpretada como consequência da curvatura do espaço em torno deles. 

Mas, mesmo aqui, não sabemos por que os objetos encurvam o espaço à sua volta. Porém, resolvendo as equações da teoria, podemos descrever o quanto ele é encurvado e como objetos se comportam nessa geometria. 

Será que a ciência poderia explicar o porquê das coisas? Focando na física, me aventuro a dizer que não poderia. Arrisco até dizer que questões do tipo "por que" sequer conseguem chegar a ser científicas. 

Se o porquê significa propósito, a física tem pouco a colaborar. Podemos validar experimentalmente as leis da natureza, como "energia é conservada", mas não sabemos por que ela é, afinal, conservada. 

Se você afirmar que caso contrário não estaríamos aqui, não estará dizendo muita coisa. A ciência já é bem complexa se ocupando só com o "como" das coisas. Para o porquê, temos todo o resto. 

segunda-feira, 3 de maio de 2010





entevista
REVISTA ÉPOCA
Cientista Pop


Marcelo Gleiser, 46 anos, esteve no Brasil pela última vez no final de junho, para o lançamento em São Paulo de Micro Macro, uma coletânea de 600 páginas de suas colunas na Folha de S.Paulo. A seguir, alguns trechos de sua entrevista de três horas a ÉPOCA.
 O Prazer da Descoberta
Você está trabalhando num problema, tentando encontrar uma solução. Faz uma simulação, não sabe o que vai acontecer. Surge um padrão de organização inesperado e uau, que mistério é esse que estou vendo aqui. Com a matemática é o mesmo. A resposta vai vindo, vai se aproximando, você sente que está chegando, vai sentindo aquela adrenalina subindo e quando vem você fala: É isso. Você é o primeiro no mundo, na História, a ver isso. Ser o primeiro a ter visto essa conexão, mesmo que não seja a Teoria da Relatividade, (minha pesquisa é bem mais humilde que isso), é um pequeno passo, uma pequena contribuição sua para o conhecimento humano.


 'Agonia e Êxtase'
Uma coisa que eu aprendi com Ciência é exatamente o oposto do que as pessoas falam, que cientista é arrogante. Aprendi justamente a ser humilde. A Ciência mostra o quanto a gente não sabe sobre o mundo. E o quanto a gente é burro. É difícil, a gente sofre para resolver os problemas. Tem uma biografia do Michelângelo chamada 'Agonia e Êxtase', que é sobre isso. É muita agonia. Você não consegue resolver, se debate durante meses, acorda à noite. Eu durmo. Aí 3h da madrugada acordo e fico pensando. Aí vem aquela coisa catártica do êxtase. Caramba! Bate na mesa. Uau. Fiz um gol. A única emoção semelhante que eu tive foi quando fui campeão brasileiro de vôlei. Essa explosão de alegria. Mas é diferente, é mais metafísico. A descoberta científica é muito individual. É a felicidade absoluta durante alguns momentos. É um processo de ligação espiritual com o mundo que as pessoas que tomam drogas às vezes sentem também. Você transcende o eu. Durante alguns segundos de efusão você é mais do que só você. Você está ligado numa realidade que é muito maior do que você.


 A Rotina
Hoje tenho menos tempo para pesquisa do que há 10 anos. Acordo às 6h15 e vou dormir por volta de 23h. Divido meu tempo em blocos. Na universidade, dou dois cursos no inverno e um na primavera: isso significa três a quatro horas de aula por semana. Às terças e quintas só trabalho no romance e em um ensaio que estou escrevendo sobre Ciência e Teologia. Escrevo a coluna dominical da F. de São Paulo sempre na quarta-feira à noite. Vou pensando o que falar durante a semana, se falta idéia leio a Science, a Nature. Pesquiso às segundas, quartas e sextas. Nos finais de semana trabalho um pouco, mas também escalo montanha, passeio de caiaque, sou muito ligado à natureza.


 O Primeiro Best-Seller ('Dança do Universo')
Sempre gostei muito de escrever, mas nunca achei que ia escrever como faço hoje. Comecei a dar um curso em 1993, 1994, cujo apelido é 'Física para poetas', sobre a compreensão do Universo e da Física através dos tempos. Toda a história desde os pré-socráticos até hoje. Sempre gostei muito de História. Fui pesquisar e descobri que não tinha um livro sobre tudo isso. Pensei: 'Vou escrever esse livro. O Freeman Dyson (autor de Disturbing the Universe), um dos físicos mais importantes do século XX, estava visitando Dartmouth e nos apegamos muito. Eu acho que a coisa mais importante da vida é encontrar o mentor certo, que vai te carregar, que vai te ensinar como ir à fundo no que você quer. Ter mentores e ser um mentor é uma das coisas mais importantes da vida. E O Freeman me adotou. 'Por que voce não escreve o primeiro capítulo e mostra para mim?', disse ele. Eu escrevi e mostrei. Ele adorou. E aí aconteceu.


 O Sucesso
O corte da minha vida foi em 1994, quando ganhei o prêmio do Bill Clinton. A mídia brasileira ficou muito interessada nesse negócio, teve até festa na Embaixada. Virou uma explosão. Quando vim lançar o livro no Brasil fui dar minhas primeira palestra no Planetário, no Rio. Estava uma chuva desgraçada, um trânsito infernal. Pensei: não vou conseguir chegar na minha palestra. Quando consegui chegar, descobri que o trânsito era por causa da minha palestra. Tinha 900 pessoas e o auditório só abrigava 300. As pessoas ficaram do lado de fora, na chuva. Foi estranho e fantástico. Primeiro, existia interesse. Segundo, o público era jovem. Terceiro, me dava uma responsabilidade enorme. Porque aqui no Brasil ou você é ator de novela ou é músico ou jogador de futebol, mas quantas pessoas conhecem um cientista? E isso sempre foi uma pena porque a nossa vida depende do nosso conhecimento científico. A gente vive numa sociedade profundamente tecnológica, as decisões políticas são fundamentais para todos os cidadãos. Questões como Energia Nuclear, Transgênicos e Genética afetam a vida de todo mundo. Como uma sociedade vai decidir seu futuro se não conhece Ciência?


 Escola e Educação
Percebi que as crianças tem um interesse enorme por Ciência até a puberdade. Aos 12, 13 anos passam a olhar para outros lugares. (risos) Depois o interesse só volta aos 20 anos. Por que o céu é azul? Por que as estrelas brilham? Por que faz calor no verão e frio no inverno? O que é um arco-íris? São coisas do cotidiano que ninguém sabe. Aí a criança vai para a escola e o que ensinam? O movimento retilínio uniforme, a fórmula tal, decora e aplica isso e aquilo. Ou seja: não aprende nada sobre o mundo. É chatérrimo. Dar aula de Ciência é explicar o que está acontecendo ali fora, na realidade. Tem de levar as crianças para fora da escola. Por exemplo: amarra uma pedra num barbante e estuda o movimento pendular. Ah, a escola não tem recursos, é a desculpa. Todo mundo consegue arrumar um barbante e uma pedra. Eu cresci no Rio de Janeiro e estudei numa escola particular boa, mas nunca fiz experiência científica. Só a do feijão no algodão molhado. Achei fascinante.


 A Infância
Minha mãe morreu quando eu tinha seis anos em circunstâncias trágicas. Isso deixou um vão muito grande. Eu era o terceiro, caçula, portanto, e temporão. Depois meu pai casou novamente, quando eu tinha 10 anos, e ganhei mais um irmão. Com essa perda emocional muito grande, fiquei meio outsider. Meio à margem das coisas. Nunca fui uma criança complicada, mas eu tinha um fascínio muito grande pela morte. É estranho falar nisso, vira propriedade pública. Colecionava história em quadrinhos de vampiros, de monstros, era louco por essas coisas. Por que vampiros? Óbvio que eu estava tentando estabelecer uma ponte emocional com o além. Pegava um ônibus sozinho lá em Copacabana e ia para o centro da cidade pesquisar na Biblioteca Nacional. Tinha uma mala preta que eu escondia embaixo da cama. Morria de medo que meu pai descobrisse e pensasse que eu fosse louco. Lá estavam todas as minhas anotações sobre vampiros. Eu queria ser o primeiro judeu vampiro. Para entrar num plano que minha mãe existisse também. Criar uma espécie de compensação pela perda. Também colecionava insetos na casa que tínhamos em Teresópolis onde passávamos os finais de semana, férias. Aprendi a caçar morcegos. Tinha interesse na morte e nas questões de origem.
#Q#


 A Adolescência
Antes de ser cientista eu fui uma pessoa meio mística, ligada em Filosofia, adorava (Carl) Jung. Com 14 anos comecei a ler e fiquei super junguiano por um tempo. Ao mesmo tempo eu estudava numa escola muito boa, a Princesa Isabel, e era da turma dos Gasparzinhos, dos Cdfs, assim chamados porque eram branquinhos por não pegar sol. Tive bons professores na área de Física. Comecei então a perceber que a Ciência também me dava respostas para as grandes questões. Sempre tive uma desilusão muito grande com a Religião. Me lembro que quando eu era adolescente percebi claramente que tinha duas opções na minha vida. Uma era me tornar uma pessoa profundamente mórbida. A outra era virar a página e tentar criar a partir da perda. Sou uma pessoa da luz, não uma pessoa das trevas, apesar de ter gostado dos vampiros. Esse processo todo da descoberta da luz veio porque passei pelas trevas. Acho que fui até o fundo do buraco para perceber que a resposta não estava lá. A resposta não estava em descobrir a vida após a morte, estava em descobrir a vida que estava acontecendo aqui e agora. Então eu me entendi como pessoa.


 A Perda da Mãe
Acho que você não consegue nunca se separar do seu passado. As pessoas dizem que passou e vão em frente, mas é uma besteira. Você é produto do seu passado, que dita suas escolhas - e você é produto de suas escolhas. As experiências que aconteceram na minha vida forjaram o meu caminho. O que faço é tentar entender a realidade de uma forma que transcende as coisas do dia-a-dia. Porque no cotidiano as coisas acontecem, crescem, morrem, vão embora. Mas existem coisas no universo que passam por tempos muito maiores que 70, 80 anos. Você cria, então, uma ponte que vai muito além do humano. Nós somos todos feitos de estrelas. Todo o carbono, o manganês, o cálcio que tem no seu corpo, tudo isso veio de uma supernova que explodiu perto da nebulosa solar, a 5 bilhões de anos. Quando você se coloca como um ser cósmico, a perda se transforma em algo mais aceitável porque você percebe que é a lei do universo. Quando você destrói alguma coisa, outra coisa é criada. Muito do que eu sou hoje se deve ao fato de ter perdido minha mãe aos seis anos. Hoje eu tento criar por causa dessa destruição. Existe um mecanismo de constante compensação. Quando você perdeu algo muito importante, passa o resto da sua vida tentando criar para equilibrar a balança. Não consigo ficar sem criar, sem trabalhar, sem escrever. Preciso desse processo. Sou produto dessa perda.


 Hélio Pelegrino
Quando eu tinha 20 anos havia uma professora na PUC que era ex-mulher do Hélio Pelegrino. Ele era meu ídolo na época. Perguntei se ela me arrumava uma entrevista que eu queria ser psicanalizado pelo Hélio. Aí consegui, fui lá, contei alguns dramas, tristezas, mas na época eu já estava ligadão em Física, já estava fazendo pesquisa, estava no terceiro ano de faculdade. Aí ele me falou um negócio muito legal. Que eu não precisava de Psicanálise. Que para ele a coisa mais importante na vida era você ter uma coisa que ele chamava de 'pró-cura'. Que através da sua 'procura' você se 'auto-cura'. E ele achava que eu tinha encontrado um caminho, que era esse, de procurar através da ciência. Falou que eu não ia ganhar muito com Psicanálise. Então, como se revoltaram meus amigos que faziam análise: 'Pô, o cara te deu alta na entrevista…' Saí de lá meio decepcionado, porque eu queria muito fazer análise. A pró-cura. Hoje em dia eu vejo isso com uma clareza muito grande. É isso. Procurar.


 Terapia
Só fiz terapia durante seis meses, depois do meu divórcio. Eu estava morando na Califórnia, era pós-doc na universidade de Santa Bárbara. Queria fazer análise com um junguiano. Procurei nas páginas amarelas. Só tinha uma psicanalista junguiana, era uma mulher. Fui lá e era uma gaúcha. Fiz análise por seis meses em porguguês com uma analista junguiana gaúcha, na Califórnia. Foi importante, foi legal. Especialmente no que se referia ao meu realcionamento com outras mulheres, em que a perda da mãe afetava e tal.


A Música
Eu adorava música. Comecei a tocar violão seriamente. Toco até hoje, antes de qualquer outra coisa eu queria ter sido músico. Mas meu pai disse que como músico eu ia morrer de fome, ele era muito duro. E essa coisa da música com a Ciência, a idéia de que existe ritmo em tudo, é uma coisa que já ressonava na minha cabeça de uma forma até inconsciente. Que o mundo é cheio de música, a natureza é cheia de ritmos. Que existe uma certa dança das coisas. Comecei a mudar meu pensamento místico com um pensamento mais aplicado.


 A Religião e a Ciência
Respeito a tradição judaica, compreendo a sua importância, mas para mim não significa nada. Ao contrário, hoje em dia estou cada vez mais materialista, mas é um materialismo místico. A busca científica é uma entrega ao desconhecido, ao mistério com 'M', é essencialmente uma busca espiritual. Porque você está lidando com as questões que vão definir quem é você como ser humano. Nesta procura, que você faz às cegas, apalpando o desconhecido, você está inventando o que significa ser você, como você se encaixa neste universo que aparentemente não dá a menor bola para a gente, que faz pouco caso dos vivos mas afinal de contas é o universo que criou a vida de alguma forma. E acho que a ciência cria essa ponte entre nós, pessoas, e nós, seres naturais, parte dessa unidade cósmica. Essa paixão que queima, que arde dentro das pessoas que querem ser cientistas é uma paixão essencialmente espiritual. É a busca espiritual atrás de grandes respostas. Tem até uma frase que eu escrevi mais ou menos assim: a minha busca é alimentada pelo fogo místico, espiritual, mas que usa o olho da razão. Esse casamento me satisfaz profundamente, me sinto uma pessoa completa. Não preciso procurar no sobrenatural as explicações. Porque para mim o fato de não entender tudo é fundamental porque é exatamente o que me faz crescer.

 Ser Cientista
Existem dois tipos de pessoas, as que fazem e as que compram o que as outras fazem. Me sinto uma das pessoas que estão fazendo. O dia-a-dia não me afoga. Posso sempre olhar para cima e me lembrar que existe o céu. Então posso pensar que é uma droga ter mais uma reunião do departamento para falar besteira ou que furou pneu do carro ou que tem de aparar grama - detesto aparar grama. Mas tento não me levar por isso. Quando estou aparando a grama, que eu detesto, estou pensando no meu projeto pessoal, como posso explicar tal coisa de uma forma que as pessoas entendam, porque para mim isso é uma missão, é uma responsabilidade social. Existem poucos cientistas que se preocupam com a educação pela Ciência e acho uma pena. Por vários motivos. As pessoas tem de saber porque o dinheiro do contribuinte, o imposto, está sendo gasto para o cara estudar buracos negros, por exemplo. Porque é importante estudar as estrelas. Na medida que vou me tornando mais maduro, percebo cada vez mais essa necessidade social do cientista ter uma voz pública, especialmente agora que estamos vivendo esses tempos obscurantistas Se os cientistas saírem fora desse debate a gente vai perder, já estamos perdendo. Os criacionistas já estão controlando a maior potência do mundo. Bush ganhou as eleições por causa desse trabalho da Direita. E isso já está acontecendo aqui também. Os cientistas não podem se dar ao luxo de não participar desse debate. Senão vamos perder.


 A Importância de Olhar para as Estrelas
Você passa a perceber quem é você, de onde veio, do que é feito. Percebe que existe um processo, que você é resultado de bilhões de anos de Evolução, de transformação de processos naturais, sem nenhum Criador, só pelas interações que existem nos sistemas naturais. É uma diversidade fantástica. Então não existe nada tão mágico que não possa ser real. Contanto que obedeça às leis da Natureza. Não precisa procurar explicações sobrenaturais, a Natureza já é bruxa o suficiente. É só você olhar para ela com olhos lúcidos. Acho que a Ciência fornece essas lentes, essa visão de mundo para que as pessoas possam se maravilhar com o que existe – e não com o que não existe. Nós somos a parte do Universo que pensa sobre nós e sobre o Universo. Isso nos torna extremamente importantes. Temos consciência do que somos. Isso é uma coisa quase que sagrada. Então temos uma missão não só de preservar a nossa vida, mas de como difundir ela pela galáxia. Os ETs somos nós. Nós é que vamos nos espalhar.


 Política e Princípios
Sou democrata na política americana. Doei 400 dólares para a campanha do (John) Kerry. Não aceito bolsa de pesquisa dos órgãos militares americanos. A Defesa, Marinha, Exército, Aeronáutica… dão dinheiro à beça. Tenho vários colegas que usam estas bolsas, eu jamais aceitei ou tentei conseguir. Só aceito da Nasa e da National Science Fundation.


 Mudança de Área
Estou mudando minha área de pesquisa para Astrobiologia. O estudo da vida na terra e em outros planetas. Mudar de área em Ciência é muito complicado. É como um romancista que resolve virar poeta. A área que eu estava é muito abstrata, cansei um pouco, quero fazer uma coisa um pouco mais aplicada. Acho que muito da pesquisa dessa área são modelos que não vão ter relevância para o futuro, para nada. Especula-se muito na Física Teórica com coisas que você não sabe se existem. E essa é uma área fascinante, que está explodindo agora. Estou fascinado. É uma área da ciência multidisciplinar, posso usar minhas ferramentas teóricas, matemáticas nesta área. Não é que eu vou ficar estudando Bioquímica agora, vou dar minha contribuição como Físico. O pulo não é tão grande assim. Na verdade meu interesse mais geral em Ciência é como a natureza gera complexidade, como é possível a partir de coisas simples, partículas, átomos, você criar moléculas, macro-moléculas, sistemas complicados, estrelas, galáxias, pessoas. A partir de interações entre elas. Então esse processo de complexificação gradual da Natureza é a minha área de pesquisa. Como você tem passagens de moléculas orgânicas que começam com carbono, hidrogênio… como se auto-organizam para formar processos mais complicados até poderem se replicar, que é o mais importante.

domingo, 2 de maio de 2010

Ciência, ética e escolhas





Na nossa profissão, devemos seguir uma regra básica: "Nunca minta"



Na semana passada, tive o prazer de ciceronear a escritora e filósofa Rebecca Newberger Goldstein, que veio à Dartmouth dar uma palestra sobre seu último livro, o romance "36 Argumentos para a Existência de Deus, Uma Obra de Ficção".
Goldstein é famosa pela sua habilidade de tratar de assuntos cabeludos de filosofia e ciência dentro da narrativa ficcional de um romance.

O livro é excepcional em vários níveis. Seu estilo é brilhante e extremamente engraçado, uma descrição contagiante e sincera do mundo acadêmico, da busca pela glória, da inevitável inveja profissional, da competição entre as escolas e da vaidade intelectual que tanto colore as discussões em tópicos que vão desde a mitologia grega à existência do Multiverso (ou seja, de infinitos universos).

Como o título informa, o livro trata também da questão da existência de Deus. Mas, para nós aqui nesta coluna, ao menos no contexto do tema de hoje, que é a ética, o livro é principalmente sobre escolhas.

Somos produto das escolhas que fazemos ao longo da vida. É bem verdade que, às vezes, as escolhas são feitas à nossa revelia. Por exemplo, quando falha a saúde, ou devido a pressões econômicas.

Por falta de emprego, um pacifista com um doutorado em física pode se ver forçado a trabalhar na indústria armamentista. Por outro lado, pode fazê-lo por opção, por ser um patriota.

Como Goldstein sugeriu, temos um cerne pessoal (estou criando esse termo) que funciona de forma bem específica.

Podemos até deduzir as posições que um conservador ou um liberal tomarão numa variedade de questões, desde a liberação da maconha até a regulação das práticas do mercado de capitais. A correlação das escolhas é bem forte, produto desse cerne pessoal, que "guia" nossas decisões.

Será que a ética é parte desse cerne pessoal? Especulo que sim. Algumas pessoas têm padrões éticos mais elevados do que outras. Não há dúvida de que esses padrões podem ser influenciados por eventos na vida, pela educação, por relações etc. Mas alguns casos são mais flexíveis do que outros.

E os cientistas? São menos dados a cometer fraudes do que outros profissionais? Na nossa profissão, devemos obedecer a uma regra ética básica: "Nunca minta".
De fato, mentir em ciência é uma péssima ideia. Mais cedo ou mais tarde, a comunidade exporá a sua fraude e sua carreira estará arruinada. É bem simples, na verdade: a natureza não tolera trapaças.

Quem lembra, por exemplo, da história da fusão a frio? (Veja pt.wikipedia.org/wiki/Fusao-a-frio) Inocentemente, gostaria de acreditar que essa regra do não mentir deveria valer para todas as profissões.

No entanto, é o contexto que determina a aplicação de princípios éticos. Mesmo que você se considere um indivíduo extremamente ético, pode sofrer terríveis pressões para contrariar suas próprias regras.

É fácil pensar em exemplos, desde os mais dramáticos (os alemães que "tinham" de se juntar aos nazistas) aos mais amenos (o estudante que cola na prova do vestibular). A moralidade de um pessoa pode ser medida pela resistência que oferece a essas pressões, permanecendo fiel aos seus princípios éticos. Trapacear é construir a sua própria prisão.

Se ser livre é poder escolher ao que se prender, gostaria de acreditar que, quanto mais seguimos princípios morais elevados, mais livres somos.