sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sonhos de uma teoria final




Está na hora de nós aceitarmos limites sobre o que se pode conhecer do Cosmo


Em 1992, o vencedor do Nobel de física, Steven Weinberg, publicou um livro com o título da coluna de hoje. Nele, Weinberg expressou a visão de que, por trás da aparente diversidade do mundo natural, existe uma união que pode ser revelada por meio das leis da física. Segundo Weinberg, todas as manifestações do mundo material podem ser expressas através de leis quantitativas que derivam de uma teoria que explica tudo o que existe, a Teoria Final. Seria o triunfo definitivo do reducionismo.
 
A ideia não é nada nova. Suas origens são bem mais antigas do que a própria ciência ou mesmo a filosofia ocidental. Em religiões monoteístas, o mundo e seus habitantes são criação de um Deus. Se tudo vem de Deus, tudo tem a mesma origem. Essa unidade aparece mesmo em crenças onde não existe uma divindade central, como o conceito de Brahma no politeísmo hindu, ou na figura do Buda, no budismo. Com o desenvolvimento das rotas de comércio entre a Ásia e a Europa no século 6º a. C., essas ideias influenciaram os primeiros filósofos da Grécia Antiga, os pré-socráticos.

Tales, o primeiro deles, instituiu a ideia de que tudo o que existe no mundo é feito de um único tipo de matéria, propondo assim uma unificação material. "Tudo é água", disse ele, sugerindo que as diversas expressões da matéria revelam-se nas propriedades da água, sempre transitória.
 
Esse monismo, a noção de que a diversidade aparente das coisas é ilusória e de que existe uma unidade fundamental, é o conceito-chave da busca pelo "campo unificado", a expressão moderna da Teoria Final.

Na física, teorias unificadas se referem apenas aos constituintes fundamentais da matéria, as chamadas partículas elementares, como o elétron, os quarks (integrantes dos prótons e nêutrons) e suas interações.
 
Seria ingênuo supor que um conhecimento das partículas de matéria e das forças que elas exercem umas sobre as outras poderia dizer algo sobre o clima terrestre, o funcionamento do cérebro ou a duplicação de DNA. Essas questões têm de ser abordadas através de outros métodos, expressos através de leis muito diferentes que regem esses domínios específicos.
 
Mas, mesmo dentro do seu limite de atuação, será que a noção de que podemos chegar a uma teoria final da matéria e de suas propriedades faz sentido? Tudo o que sabemos hoje sobre as partículas e suas forças está no Modelo Padrão: existem 12 tipos de partículas de matéria e quatro forças entre elas: gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca.
 
Uma teoria unificada da matéria demonstraria que essas forças são, na verdade, manifestação de uma só. Essa unificação só apareceria em altíssimas energias, muito além do que podemos testar com experimentos atuais. Vamos supor que uma teoria unificada dessas forças exista, quem sabe uma versão futura da teoria das supercordas. Eu diria que mesmo essa teoria jamais poderia ser considerada uma teoria final. E por quê?
 
Porque sabemos apenas aquilo que podemos medir. Todo o conhecimento científico que temos do mundo natural depende dos nossos instrumentos de observação. Mesmo que esses instrumentos avancem em sua precisão, jamais poderão ter precisão perfeita. Existem barreiras tecnológicas e mesmo conceituais para isso. Sendo assim, jamais poderemos conhecer a totalidade dos fenômenos materiais para nos certificar de que nossa teoria cobre tudo o que existe. Estamos cercados de uma escuridão perene, que demarca o limite do que sabemos sobre o mundo. Uma teoria final significaria um conhecimento absoluto, o que é uma impossibilidade. É hora de aceitarmos nossas limitações.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Os parâmetros cósmicos




Análise de "eco" do Big Bang traça retrato detalhado do Universo atual


Com frequência, recebo mensagens de leitores um tanto desconfiados com as asserções que os cientistas fazem sobre o Universo.
 
"Como é que vocês sabem que o Big Bang ocorreu? Como vocês podem medir a idade do Universo, ou quantas estrelas existem?", perguntam eles. Esse ceticismo é saudável e válido.
 
Afinal, a própria ciência só funciona porque a comunidade científica checa de forma incessante as asserções de colegas e os resultados de seus experimentos. Sem isso, a ciência perderia a sua universalidade, a sua aceitação como descrição válida dos fenômenos naturais. Portanto, é importante que os cientistas justifiquem publicamente as suas afirmações sobre o cosmo.
 
Recentemente, o grupo que opera o satélite WMAP (sigla inglesa de Sonda Wilkinson de Anisotropia de Micro-ondas), da Nasa, publicou os resultados de sete anos de análise de dados. O instrumento é capaz de medir as propriedades da radiação que banha o Universo, os fótons que foram liberados quando os primeiros átomos teriam sido constituídos, em torno de 380 mil anos após o Big Bang, ou seja, há uns 13,7 bilhões de anos.
 
Antes de ir adiante, uma explicação. Fótons são as partículas de luz ou, mais apropriadamente, as partículas de radiação eletromagnética (RE). (A luz é apenas uma forma de RE; outras familiares, mas invisíveis aos olhos, são os raios X e as radiações ultravioleta e infravermelha.)
 
No final da década de 1940, o físico George Gamow e colaboradores sugeriram que, se o Cosmo tivesse sido muito quente e denso na sua infância, deveria estar banhado em RE. Mesmo que, no passado, essa radiação tivesse sido muito energética, com o passar do tempo e a expansão cósmica ela foi perdendo energia, de modo a ser hoje bem fraca, o que quer dizer bem fria. Gamow previu que essa radiação hoje deveria ter uma temperatura de alguns graus acima do zero absoluto, o equivalente a 273C negativos.
 
Em 1964, essa radiação foi descoberta, e ela apresentava justamente as propriedades previstas por Gamow. Ela vem da junção de elétrons e prótons para formar átomos de hidrogênio, o elemento químico mais abundante no Universo. Sabendo a energia de atração do elétron e do próton no hidrogênio, é possível calcular a temperatura em que essa junção ocorre; usando a expansão do Universo, é possível datar quando a junção ocorreu, a gênese dos primeiros átomos. Resultado? Uns 380 mil anos após o "bang".
 
Essa radiação cósmica de fundo, como é chamada, é um fóssil da infância cósmica. Como todo fóssil, seu estudo permite a reconstrução de um período no passado remoto. É desse estudo, e de outros de natureza astronômica (por exemplo, estudando galáxias e suas propriedades), que podemos fazer afirmações quantitativas sobre o Universo. O WMAP mediu as propriedades dos fótons dessa radiação com precisão de uma parte em 100 mil, um feito realmente notável.
 
Eis alguns resultados: idade do Universo, 13,7 bilhões de anos; fração de matéria comum (feito a nossa, composta de prótons e elétrons), 4,41% da total; fração de matéria escura (que não brilha e não é composta de prótons e elétrons), 21,4% da total; fração de energia escura (responsável pela aceleração da expansão cósmica, de natureza desconhecida), 74,2%.

As medidas do WMAP concordam com outras, extraídas de forma diferente. A conclusão é clara: essas são as propriedades do nosso Universo. Vemos, também, o quanto ainda não sabemos; o que são a matéria e a energia escuras que parecem dominar a composição cósmica? Ao abrirmos uma nova janela para o céu, a vista se estende além do nosso alcance. Temos muita estrada pela frente.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Stevie Wonder, Lucrécio e o medo




Estamos cercados por uma escuridão perene


O que Stevie Wonder e Lucrécio, o poeta romano que escreveu "A Natureza do Universo", têm em comum? Mais do que você imagina. Na semana passada, enquanto corria perto da minha casa, ouvi a música "Superstition", de Stevie Wonder. O refrão me chamou a atenção: "Quando você acredita em coisas que não entende, então você sofre; a superstição não é o caminho".

Eis o que Lucrécio escreveu sobre o mesmo tópico, mais de 2.000 anos atrás: "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus".
 
Lucrécio estava propondo um novo modo de pensar o mundo, baseado na filosofia atomística dos pré-socráticos Leucipo e Demócrito. "Pense", diria Lucrécio, "tente encontrar explicações para os fenômenos naturais dentro da própria natureza; não é necessário atribuí-los a causas sobrenaturais". A canção de Stevie Wonder diz algo semelhante, de modo bem mais popular e divertido.
 
Com a chegada da ciência, os mecanismos da natureza tornaram-se mais transparentes. O papel de Deus como criador e controlador do mundo foi diminuindo de importância: a natureza seguia certas leis racionais, que os homens podiam descobrir. Claro, existiam muitas questões em aberto: a morte, a vida, o mistério da alma e o da criação do mundo.

No final do século 18, a fixação iluminista pela razão começou a falhar. Os românticos acusaram os cientistas de tirarem o encanto da natureza com suas equações, de "desfiarem o arco-íris", nas palavras do poeta John Keats. Na verdade, as coisas não eram tão simples; como escreveu Richard Holmes no excelente "A Era do Encanto" (do inglês "The Age of Wonder"), os românticos tinham enorme fascínio pela ciência, especialmente quando lidava com as questões mais profundas. Esse é o mesmo fascínio pela ciência que atrai o público hoje.
 
(E, claro, muitos cientistas também.) Mesmo que a tecnologia digital tenha uma influência muito maior no cotidiano, livros sobre buracos negros e o Big Bang vendem bem mais do que os sobre as maravilhas tecnológicas.
 
Vemos mistérios no céu e na terra e queremos desvendá-los. Será que a ciência pode dar cabo dessa missão? Será que pode explicar "tudo"?

Como argumento em detalhe em meu novo livro "Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza", que sai em meados de março, a ciência jamais poderá explicar a realidade por completo. Uma das razões é que simplesmente não podemos conhecer tudo o que existe.

O que sabemos do mundo material é obtido de duas formas: por meio dos nossos sentidos -vemos o Sol, sentimos calor, vemos as cores, ouvimos sons... (mesmo aqui existe um problema, já que nossa percepção da realidade pode ser distorcida)- e, de forma indireta, com nossos instrumentos.

Os limites do conhecimento dependem da precisão desses instrumentos que, apesar de aumentar sempre, é limitada. Ou seja, existe uma região "lá fora", além do que podemos medir, além do que podemos saber.

Mesmo que o círculo do conhecimento cresça sempre, essa região sempre existirá. Estamos cercados por uma escuridão perene. Nossas teorias contam apenas parte da história. Será que devemos então abandonar Stevie Wonder e Lucrécio e abraçar o medo? Não! Quando paramos de perguntar, estagnamos: o círculo do conhecimento passa a nos apertar. Se paramos de perguntar, o desconhecido deixa de ser um desafio e transforma-se num monstro. Talvez nunca saibamos todas as respostas; mas, ao tentar, permanecemos livres.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O estranho multiverso



Como explicar um universo no meio de uma paisagem de universos?


Para quem acha que o nosso Universo (ao menos a parte que podemos ver e estudar com nossos instrumentos) é já bem complicado, gostaria de apresentar o multiverso. Na melhor tradição borgiana, o multiverso é como a Biblioteca de Babel: imagine uma entidade parteira de universos de todos os tipos, alguns absurdamente diferentes do nosso, outros semelhantes. Em alguns, as leis da natureza são distintas das daqui. Em outros, são as mesmas, mas as partículas de matéria têm massas e carga elétrica diferentes.

No multiverso, o tempo não existe. Existe apenas a coexistência dos muitos universos, cada qual com suas propriedades. Universos vão surgindo aleatoriamente, sem qualquer causa determinada, cada qual com seu espaço e seu tempo. Dentre eles está o nosso, especial por ter sido capaz de gerar entidades vivas.
 
O leitor deve estar se perguntando, com razão, de onde vem uma ideia dessas. Afinal, não é todo dia que ouvimos coisas desse tipo, um multiverso repleto de universos. Antes de mais nada, devo afirmar que a ideia habita, ainda, os cantos mais esotéricos das regiões mais especulativas da física teórica: não sabemos se o multiverso existe. Nem é claro que seja possível saber da sua existência, o que faz a física se confrontar com dilema um tanto inquietante: se uma ideia não pode ser confirmada, será que faz parte do cânone da ciência?

Deixando essa questão inconveniente de lado, existem duas correntes de pensamento que levam à ideia do multiverso. Hoje falaremos de uma delas, a hipótese das supercordas, candidata a uma teoria que unificaria as quatro forças fundamentais da natureza, usando um conceito revolucionário: as entidades básicas da matéria não são partículas submicroscópicas mas, sim, pequenas "cordas" que, ao vibrar de diferentes formas, geram as partículas que compõem tudo o que existe. A analogia aqui é com uma corda de violão, que pode gerar notas diferentes vibrando com comprimentos diversos: cada "nota" seria uma partícula.
 
As supercordas vêm sendo exploradas seriamente desde 1984. Apesar da falta total de confirmação experimental, muitos acreditam que sejam o novo Eldorado da física, uma revolução em andamento. Dentre as suas peculiaridades, a teoria só faz sentido se formulada em nove dimensões espaciais, portanto seis a mais do que as que vemos à nossa volta.
 
Para justificar a invisibilidade dessas dimensões a mais, é suposto que sejam minúsculas, indetectáveis pelos nossos instrumentos. O ponto relevante aqui é que geometrias com seis dimensões podem ser muito complicadas. Cada geometria gera uma física diferente quando vista em três dimensões. Nossa realidade material seria determinada pelo arranjo geométrico dessas seis dimensões ocultas.

A existência de um "superespaço" é imaginada, o lar de todas as configurações geométricas possíveis dessas seis dimensões extra, cada qual gerando uma realidade física diferente. O nosso mundo corresponde a uma única solução, a uma geometria específica. O conjunto dessas geometrias coexistindo no superespaço, em torno de 10500 delas, é o multiverso.
 
Ninguém sabe ainda como determinar as propriedades desse multiverso. Cá entre nós, talvez nem seja possível determinar essas propriedades. Mas se for levado a sério, o multiverso representa um desafio: como explicar a existência do nosso Universo no meio dessa paisagem semi-infinita de universos? Será que nós, seres humanos, somos especiais? Ou será que somos apenas um acidente cósmico? Aqui, as opiniões divergem e meu espaço para hoje acaba...