domingo, 2 de janeiro de 2005

O desafio criacionista

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

No ano passado, um físico colega meu, Lawrence Krauss, visitou minha universidade. Krauss é um conhecido popularizador de ciência, autor de livros como "A Física de Jornada nas Estrelas". Saímos para almoçar e a conversa caiu no tema do criacionismo. Krauss foi categórico: "Só o ato de debater com criacionistas lhes dá uma credibilidade que não merecem". Eu discordei. "Larry, acho que essa atitude radical só piora as coisas. Se cientistas, sempre prontos a debater entre si, não se dignarem a ir a público para expor as limitações do criacionismo, como iremos vencer?" "Perda de tempo", replicou. "Eles não estão dispostos a ouvir. É pregar para surdos."

"É verdade que existe uma minoria radical que não vai mesmo mudar de idéia", respondi. "Mas a maioria das pessoas é razoável. Se argumentos claros forem apresentados, acho que irão ouvir sim. Ninguém quer ser chamado de burro ou se sentir roubado de sua fé.

Invocar Deus para preencher lacunas em nosso conhecimento não avança o saber

Porque é isso, percebe? As pessoas acham que, quanto mais a ciência avança, menos justificativa têm para acreditar em Deus. E isso é algo que poucos podem suportar."

Em 2004, o criacionismo explodiu no Brasil. Vertentes já existiam. Mas a decisão de Rosinha Garotinho, governadora do Rio de Janeiro, de impor o ensino do criacionismo na rede pública, teve uma ressonância enorme na mídia. Uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da revista "Época", publicada no último dia 3, soou o alarme: 31% dos brasileiros acreditam que Deus criou o ser humano como somos hoje nos últimos 10 mil anos (nos EUA o número é assombroso: 55%); 54% acreditam que o ser humano vem se desenvolvendo ao longo de milhões de anos, mas sob a direção e intervenção de Deus; e 75% crêem que o criacionismo deve substituir a evolução no currículo escolar!

Os números refletem, de forma trágica, o estado da educação científica no Brasil. Mas o que é mais relevante é que pessoas educadas também simpatizam com as idéias criacionistas. A governadora é um exemplo, mas existem muitas outras. (Espero que a decisão dela não tenha sido apenas política, querendo se aproveitar de um eleitorado evangélico crescente.)

Neste curto espaço não posso entrar em muitos detalhes. Talvez o faça aos poucos, retornando ao tema. O argumento-chave do criacionismo e do design inteligente é que a evolução não pode ser definitivamente provada com os dados que existem, os fósseis de espécies extintas. Segundo a teoria, os indivíduos de uma população têm variações genéticas. Essas raras mutações ocorrem por acaso. A complexidade observada nas espécies é produto da seleção natural, que favorece as variações mais bem adaptadas ao ambiente. Os criacionistas dizem que existem buracos demais, que a complexidade do ser humano não pode ser explicada apenas por mutações e seleção natural. Somos, segundo eles, produto de um criador, que tinha planos bem claros.

O design inteligente vai contra a premissa fundamental da ciência, a sua objetividade através da validação empírica. Cientistas propõem teorias. Essas teorias são passíveis de verificação. A genética provou a origem comum do gene. Jamais teremos todas as respostas, mas temos muitas. E cada vez mais. Invocar Deus para preencher lacunas em nosso conhecimento não avança o saber. É preciso ter coragem para aceitar nossas limitações.

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