domingo, 15 de outubro de 2000

Física com adrenalina

Quem acha que físicos ou outros cientistas levam uma vida pacata, reclusos em suas salas em universidades ou laboratórios, está muito enganado. A pesquisa em ciência é uma atividade extremamente competitiva, uma "corrida de ratos", como se costuma dizer nos Estados Unidos.
Isso porque em ciência, ao contrário das Olimpíadas, não existem medalhas de prata ou bronze. Ou você é o primeiro a encontrar a resposta a uma pergunta-chave ou a desvendar um novo fenômeno, ou é o último. A comunidade científica concede um "empate" quando dois ou mais grupos chegam a uma mesma conclusão quase que ao mesmo tempo. Mas isso é extremamente raro. Ao descobridor, fora a emoção de ter dado um passo avante no conhecimento humano, vêm as honras, prêmios, fama etc. Aos outros, a satisfação dúbia de ter confirmado os resultados de quem chegou ao degrau mais alto do pódio.

Da mesma forma que a cobiçada medalha de ouro incentiva os atletas a estar sempre se superando, a busca pelo conhecimento incentiva a competitividade científica. Agora mesmo, um excelente exemplo disso está ocorrendo no Centro Europeu de Física de Partículas em Genebra, Suíça, conhecido como Cern.

O Cern é um laboratório gigantesco, um consórcio entre vários países do mundo inteiro. Seu grande rival é o Fermilab, um laboratório norte-americano perto da cidade de Chicago. Ambos usam enormes aceleradores de partículas para estudar a estrutura da matéria a distâncias subnucleares, ou seja, dentro mesmo do núcleo atômico.

O objetivo desses laboratórios é descobrir os tijolos fundamentais que, combinados, resultam na matéria que compõe o Universo no presente e que o compunha na sua infância, quando as energias eram comparáveis às que regem os processos subnucleares.

Até o momento, a ciência já descobriu 12 partículas fundamentais da matéria, uma delas o familiar elétron. A elas juntam-se as partículas que transmitem as forças entre esses tijolos de matéria, que recebem o nome pouco poético de bósons de calibre. Esse conjunto de partículas de matéria e de força é conhecido como "modelo padrão de partículas".

Existe uma outra partícula no modelo padrão chamada bóson de Higgs, em homenagem ao físico escocês Peter Higgs. Essa partícula é o centro das atrações no Cern e no Fermilab. Isso por dois motivos: primeiro, ela é a partícula que, segundo o modelo padrão, gera a massa de todas as outras partículas. Segundo, porque ela ainda não foi descoberta. Na verdade, nós nem sabemos se ela existe!

No Cern, o acelerador que vem procurando pelo bóson de Higgs chama-se Grande Colisor de Elétrons e Pósitrons, ou LEP. O LEP funciona há 11 anos e tem contribuído muito na busca pelo Higgs. Ainda não o achou explicitamente, mas pôs um limite mínimo na sua massa. Até abril deste ano, o LEP havia concluído que o Higgs tem uma massa no mínimo 108 vezes maior que a do próton.

Em abril a coisa mudou de figura. Os cientistas do Cern acharam alguns sinais que aparentemente indicavam a presença do elusivo bóson de Higgs, com massa cerca de 115 vezes maior que a do próton. Para isso, eles tiveram que puxar o LEP até o seu limite de funcionamento, já que achar partículas de maior massa requer colisões de maior energia.

Esse furor todo ia de encontro a um problema burocrático, pois o LEP estava para ser fechado no início de outubro, para dar lugar à construção de outra máquina muito mais poderosa.
Mas como deixar passar uma oportunidade dessas? Serão necessários pelo menos sete anos até a nova máquina ficar pronta e, nesse meio tempo, o Fermilab terá maiores energias e poderá detectar o Higgs conclusivamente.

A pressão da possível descoberta é tão grande que a diretoria do Cern resolveu adiar o fechamento do LEP até o dia 2 de novembro, na esperança de que seus cientistas dobrem o número de eventos semelhantes aos que indicaram a presença do Higgs. Quanto maior o número de eventos, melhor a qualidade estatística dos dados e, portanto, maior a probabilidade de uma detecção real. Com poucos eventos fica difícil separar o Higgs de outras pistas falsas.

Claro, se outros eventos com gosto de Higgs aparecerem até 2 de novembro, vai ser difícil convencer os cientistas do Cern de que sua máquina terá de ser desmantelada para dar lugar a uma outra. Por outro lado, se o Cern atrasar a construção nova, muito dinheiro será perdido. Será que encontrar o Higgs antes dos norte-americanos justifica milhões de francos suíços gastos? Enquanto isso, os cientistas no Cern trabalham dia e noite, com muita adrenalina, para resolver o mistério da massa.

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