domingo, 9 de maio de 2004

A realidade dual

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Aristóteles, em seu cosmo centrado na Terra, dividiu a realidade física em duas partes: abaixo da Lua e da Lua para cima. Abaixo da Lua, tudo era composto de quatro elementos -terra, água, ar e fogo. Esse era o mundo das transformações e mudanças. Da Lua para cima, tudo era feito de uma quinta substância, ou essência, o éter. O éter, supôs Aristóteles, era imutável, eterno.
Essa divisão do mundo persistiu até que, na Renascença, Copérnico, Galileu e Kepler defenderam que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmo. A transição se completou com a teoria da gravitação universal de Newton, que mostrou que a mesma lei da gravidade operava na Terra e no céu: assim na Terra como no céu, versão científica. A unificação de Newton suplantou a dualidade aristotélica. E assim tem sido na história da física, dualismos sendo suplantados por teorias mais avançadas.

No início do século 20, um outro dualismo assaltou a física e, portanto, a explicação da realidade em que vivemos. (Leitores podem discordar de que a física explique a realidade em que vivemos. Refiro-me apenas à realidade física do mundo, do espaço e do tempo e das interações entre objetos inanimados.) Uma nova teoria, a mecânica quântica, foi proposta, quase que forçadamente, para explicar o bizarro comportamento dos átomos e das moléculas.
As regras que regem o comportamento dos objetos de dimensões atômicas são muito diferentes das que regem o comportamento que percebemos no nosso dia-a-dia. Em particular, o mundo clássico, o mundo das nossas percepções imediatas, é um mundo de certezas e de previsões concretas. Sabemos que, se uma bola cair de uma certa altura, ela vai se chocar com o chão após um intervalo de tempo.

Já o mundo quântico é um mundo de incertezas e probabilidades: não podemos afirmar ao certo qual caminho um elétron percorrerá ao viajar de um ponto a outro do espaço, apenas quais os mais prováveis.

Será que esse dualismo entre o mundo clássico e o mundo quântico irá também desaparecer com o surgimento de uma nova teoria, como desapareceu o dualismo aristotélico? E que teoria seria essa?

Aqui, as opiniões dos físicos estão divididas. Existe um grupo que afirma que a transição entre o clássico e o quântico é contínua e que a teoria quântica é realmente fundamental: o mundo clássico está contido nela, no limite em que os objetos são grandes o suficiente.

Caso isso seja verdade, todas as teorias da física devem ter uma formulação compatível com o mundo quântico, inclusive a da gravidade. Ou seja, a teoria que descreve as interações entre as pessoas e a Terra, entre a Terra e o Sol e mesmo a expansão do Universo deve ter uma formulação quântica, baseada em probabilidades.

Não vemos esse comportamento quântico da gravitação porque ele só se manifesta a distâncias muito pequenas. Cálculos indicam que essas distâncias são da ordem de milionésimos de trilionésimos de um núcleo atômico, impossíveis de observar hoje ou em futuro próximo. Céticos dizem que as propriedades quânticas da gravitação são inobserváveis. Se esse for o caso, o problema fica complicado: uma teoria física tem de ser testável para ser aceita.

O outro grupo diz que a realidade é dual: existe um mundo clássico e um mundo quântico, e eles são disjuntos. Não existe razão para tentar uni-los em uma única descrição. A atração gravitacional entre dois prótons é perfeitamente desprezível quando comparada com a repulsão elétrica entre eles. Portanto, a gravitação não tem um papel relevante no mundo do muito pequeno e deveria ser deixada de lado.

O físico Freeman Dyson é partidário dessa filosofia, conforme afirmou em artigo recente para a "New York Review of Books" (edição de 13 de maio de 2004). Essa posição, bastante pragmática, me parece incompatível com a cosmologia moderna: se o Universo está hoje em expansão, ele era muito menor no passado. Em um certo ponto, ele foi tão pequeno que todas as distâncias eram subatômicas. Como não incluir a gravidade nessa descrição do cosmo? Parece-me que esse dualismo também irá cair um dia. Qual teoria conseguirá tal feito é assunto para outro domingo.


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