domingo, 4 de agosto de 2002

A dramática história da Terra


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Tentar recriar o passado não é nada fácil. Especialmente quando a maioria das pistas deixadas foi metodicamente apagada pelo tempo, o grande inimigo da memória. O arqueólogo tenta reconstruir a história de uma civilização usando as poucas pistas que encontra -pedaços de vasos e urnas, pontas de flechas e lanças, partes de um túmulo ou de uma pedra funerária. O paleontólogo tenta reproduzir os detalhes da evolução da vida a partir de fósseis que, na maioria das vezes, mal reconstroem uma pata ou uma asa. Já o geólogo tenta recontar a história da Terra por meio do estudo metódico das rochas, por exemplo das variações em sua composição química e em sua estrutura cristalográfica, ou da maneira como elas se amontoam em camadas cuja ordem funciona como um relógio: as mais profundas são as mais antigas.

As três profissões lutam contra o mesmo inimigo, a decomposição e a erosão gradual dos materiais, que é extremamente acentuada aqui na Terra, devido ao enorme dinamismo de sua atmosfera. O desafio é extrair o maior número de detalhes usando o que ficou registrado nos diversos materiais. No caso do geólogo, na memória das rochas.

A geologia teve uma infância relativamente tranquila. No início do século 19, o britânico Charles Lyell publicou o livro "Princípios de Geologia", no qual propôs a doutrina conhecida como gradualismo (ou uniformitarianismo), segundo a qual as mudanças na crosta terrestre são extremamente lentas, imperceptíveis dentro de parâmetros humanos de tempo.
No final da década de 1960, essa visão ganhou grande ímpeto, com a verificação da chamada tectônica de placas, teoria que concebe a crosta terrestre formada por várias camadas rochosas, que flutuam lentamente em várias direções, com velocidades de alguns centímetros por ano, comparáveis à velocidade de crescimento das unhas.

O leitor pode facilmente verificar, comparando mapas da África e da América do Sul, como os continentes se encaixam um no outro, como peças de um quebra-cabeças. Segundo o gradualismo, os incidentes mais violentos na história terrestre se limitam a erupções vulcânicas, terremotos e mudanças climáticas, como grandes dilúvios ou eras glaciais. Hoje, sabe-se que essa visão conta apenas metade da história: a outra metade não tem nada de gradual.
Basta olharmos para a superfície da Lua com um par de binóculos para detectar, imediatamente, inúmeras crateras, cicatrizes das violentas colisões que marcaram a história do satélite. São mais de 30 mil crateras conhecidas, com tamanhos os mais variados.
É fácil reproduzir (muito modestamente) o que ocorre em uma colisão entre um asteróide ou um cometa e um corpo celeste sólido, como a Lua ou a Terra. O leitor pode fazer essa experiência na próxima vez em que visitar um lago ou uma praia: jogue pedras de tamanhos diferentes na água, com velocidades diferentes.

Primeiro se observa o deslocamento da água, marcado pela cavidade que circunda o ponto de impacto. Depois, vê-se uma coluna de água erguer-se no meio da cavidade, cuja altura cresce com a energia do impacto -quanto maior a energia, maior a sua altura. Finalmente, ondas circulares se propagam concentricamente a partir do ponto de impacto, dissipando a energia da colisão.

O que ocorreu na Lua ocorreu também na Terra (e em todos os planetas e luas do Sistema Solar), se bem que se conhecem menos de 200 crateras na superfície terrestre. A erosão aqui é mesmo extremamente eficiente, mas não é perfeita. Várias técnicas vêm sendo desenvolvidas para descobrir impactos do passado.

A chamada cratera do Meteoro, aberta há 50 mil anos nos EUA por um asteróide rico em ferro e níquel com 45 metros de diâmetro, é o exemplo mais bem-preservado de um impacto. Até 1960, acreditava-se que a cratera houvesse sido deixada por uma erupção vulcânica. Mas a análise das rochas locais mostrou um processo de vitrificação típico das altíssimas temperaturas que ocorrem durante um impacto (mais de 1.500C).

Outro método é o das imagens de satélites: o lago Mistatin, no Canadá, revelou-se na verdade uma cratera de 38 milhões de anos. A ilha central no lago é o que restou da coluna criada pelo impacto. Até mesmo a desordem no campo magnético das rochas pode acusar um local de impacto.

Gradualismo e catastrofismo oferecem mais do que uma visão complementar do passado terrestre: essas doutrinas mostram que criação e destruição também são complementares, e que nós não estaríamos aqui sem uma combinação dos dois.

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